quarta-feira, 24 de abril de 2024

5055) Os prêmios literários (24.4.2024)




Os prêmios literários funcionam de maneira semelhante aos prêmios cinematográficos, musicais, teatrais, etc. Um grupo de jurados se reúne e escolhe as melhores obras, geralmente as obras lançadas num período específico (o ano tal, etc.). Os jurados mudam a cada ano. A obra que foi premiada agora, pelo grupo X, talvez não o fosse no ano passado, ou no ano que vem, avaliada por outras pessoas. 
 
Comento às vezes que “ser indicado é equivalente a ganhar”. Não é mera diplomacia. Se cinco obras são indicadas, ou dez, isto quer dizer que o júri poderá dar o “Grande Prêmio” a qualquer uma delas, pois chegando a este ponto são igualmente merecedoras. Mas... vale aqui a regra de que “todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”. E o Oscar vai para Fulano de Tal. 
 
No interior desta situação básica, há muitas variantes. 
 
Por exemplo: um prêmio literário que se destina a obras publicadas é diferente de um prêmio concedido num concurso para obras inéditas, inscritas sob pseudônimo. São processos de natureza muito diferente. 
 
No primeiro caso, estão sendo julgadas obras conhecidas por todos. O nome do autor(a) pode pesar na escolha. 
 
No segundo caso, de obras que concorrem sob anonimato, julga-se o texto pelo texto – embora muitas vezes seja possível saber quem o escreveu. (Autores que concorrem sob pseudônimo têm variadas maneiras, explícitas ou indiretas, de indicar aos jurados qual foi o livro que inscreveram. Sempre existe alguém, com ou sem desconfiômetro algum, que tenta exercer este tipo de pressão.) 




Os prêmios de ficção científica dos EUA são atribuídos a textos de diferentes extensão: os critérios geralmente são “Melhor Romance” (“Best Novel”), “Melhor Novela” (“Best Novella”), “Melhor Noveleta” (“Best Novelette”), “Melhor Conto” (“Best Short Story”). 
 
Essa subdivisão é problemática, sim, do ponto de vista literário, mas os organizadores cravam um critério numérico que todo mundo aceita, e isto ajuda a colocar cada texto em sua gavetinha. Na última vez que chequei, os parâmetros estavam assim: 
 
Conto: até 7.500 palavras.
Noveleta: entre 7.500 e 17.500 palavras.
Novela: entre 17.500 e 40.000 palavras.
Romance: de 40.000 palavras em diante.
 
(Prêmios cinematográficos adotam uma regra parecida, fazendo a divisão entre curta, média e longa metragem.) 
 
A dificuldade aumenta quando partimos para conceitos mais amplos, porque “Melhor Conto de FC” e “Melhor Conto de Fantasia” acabam sendo questionáveis. Há incontáveis textos que, a depender de uma interpretação subjetiva, podem ser vinculados a um gênero ou ao outro. É da natureza da literatura, e muitos autores fazem de propósito – não para aperrear os júris, mas para ensinar ao leitor que um mesmo texto pode ser lido de várias maneiras.  
 
(Digressão: Aliás, a discussão “Isto é fantasia ou ficção científica?” é uma das areias-movediças conceituais que espreitam o viajante incauto nessa floresta secular, sombria. Quem pisa nesse terreno dificilmente volta para a discussão sobre o livro propriamente dito.) 
 
Saindo da FC e olhando o caso dos prêmios em geral, segmentados por gênero literário: aparentemente é simples dividi-los em “Prosa”, “Poesia”, “Ensaio”, “Não Ficção”, “Biografia”, etc. Do ponto de vista literário, esses critérios nunca são vistos do mesmo modo. Sempre há um livro renitente que pode ser visto como prosa ou como poesia, como ficção ou como não ficção, e assim por diante. Ainda bem. 
 
Devemos erguer um brinde às Exceções, que nos mostram o quanto de arbitrário e circunstancial existe na aparente objetividade das Regras. 
 
Já vi, mais de uma vez, algum autor ver seu nome na lista de indicações a um prêmio e dizer baixinho algo como (estou parafraseando!): “Mas meu livro não é poesia! É uma meditação, um ensaio fragmentado, constelar, sobre as virtualidades do existir, num século de estilhaçamento de conceitos!...”.  E eu aconselho: “Rapaz, se tu tás dentro do trem, pouco importa o vagão!”.  





(Jonathan Lethem)


Dentro da própria ficção científica existe uma discussão (puxada por Jonathan Lethem) sobre quais teriam sido os caminhos do gênero se o Prêmio Nebula de 1973 tivesse sido concedido não a Encontro com Rama de Arthur C. Clarke, como de fato aconteceu, mas a O Arco-Íris da Gravidade de Thomas Pynchon, que também estava entre os indicados. 
 
Mais detalhes aqui:
https://hipsterbookclub.livejournal.com/1147850.html
 
Aproveito para lembrar que até Jorge Luis Borges já foi indicado para este prêmio de FC, e fico imaginando sua reação sarcástica se tivesse ganho. (Foi com “Utopia de um Homem Cansado”, em 1976; Borges perdeu para “Catch that Zeppelin!” de Fritz Leiber, um grande escritor hoje esquecido.) 
 
A existência de obras ambíguas dessa natureza produziu centauros conceituais como o termo “literary science fiction”, contraposto a “genre science fiction”, ambos já fazendo parte do vocabulário resenhístico de revistas como a Locus
 
Existem muitos jovens (=pessoas mais novas do que eu) em busca de um tema para tese ou dissertação acadêmica. Se eu tivesse mais anos pela frente eu me dedicaria a estudar esse curioso fenômeno dos gêneros literários, que são cistos populares dentro da literatura “propriamente dita” (há um esnobismo deliberado nesta expressão). 
 
O texto impresso, pós-Gutenberg, ao mesmo tempo popularizou o livro (onde havia 100 cópias manuscritas de uma obra passou a haver 100.000 impressas) e o elitizou (o livro impresso também não é acessível a todo mundo –  somente a quem é alfabetizado e tem algum dinheiro). 
 
Os prêmios literários são apenas uma entre muitas instâncias em que existe a literatura literária (uma espécie de Sala Vip para quem preenche uma série de requisitos) e a literatura de gênero, ou popular, ou popularesca, ou de massas, ou de entretenimento. A primeira delas inveja as vertiginosas vendagens da segunda. A segunda inveja a visibilidade, a respeitabilidade e as honrarias concedidas à primeira. 
 
Um prêmio é importante? Sem dúvida. Há prêmios em dinheiro que podem equilibrar as finanças de um autor para o resto da vida. (Este, claro, é o ponto de vista de um septuagenário.)
 
Há prêmios onde a remuneração é modesta, ou simbólica; mas a repercussão é grande, junto à imprensa e ao público. Um prêmio pode fazer decolar uma obra de valor que até então estava na obscuridade. Foi o que aconteceu com Jorge Luís Borges ao ganhar na Europa o Prêmio Formentor, aos 61 anos. Do dia para a noite o mundo inteiro tomou conhecimento dos contos que ele tinha escrito vinte anos atrás. 
 
Cada prêmio tem seu viés. Voltando ao território da ficção científica, o Prêmio Hugo é votado pelos fãs, pelos leitores, no contexto da Convenção Mundial de FC que se realiza todo ano. É um prêmio de popularidade, por assim dizer. O Prêmio Nebula é votado pelos membros da SFFWA, entidade que reúne escritores, editores, críticos, etc., nos campos da FC e da fantasia; é um prêmio mais exigente em termos literários (em tese, pelo menos). 
 
Eu tenho uma simpatia especial pelo Prêmio Philip K. Dick, concedido anualmente ao melhor livro inédito publicado em formato de bolso (“paperback”). Dick foi um grande escritor que publicou, nesse formato “de pobre”, livros que hoje são clássicos da FC, re-publicados em edições de luxo, caríssimas. Quem primeiro reconheceu seu talento, e apostou nele, foi o livro de bolso. 
 






domingo, 21 de abril de 2024

5054) A arte do spoiler (21.4.2024)



 
Um spoiler, quando falamos de filmes, livros, etc., é a revelação de uma informação antes da hora, estragando o prazer do mistério ou do suspense. 
 
A expressão mais próxima em português seria “desmancha-prazeres”, cujo inconveniente é ser mais longa e ter uma latitude maior de significado. Um desmancha-prazeres pode ser, por exemplo, uma pessoa que vai com a gente para uma festa, ou um passeio, e reclama o tempo todo. 
 
Procurei agora (e não achei) na Internet o meu exemplo de spoiler preferido, muitas vezes citado. Um antigo desenho do “Amigo da Onça”, de Péricles, em O Cruzeiro. Ele mostra o sádico personagem saindo de uma sessão de cinema e dizendo, enquanto passa pelos espectadores que entram na sala: “O assassino é o pai da moça... O assassino é o pai da moça...” 



(O "Amigo da Onça", de Péricles)
 

A história de mistério policial deve ser o gênero de narrativo que mais depende (ou que invariavelmente depende) do fato de uma informação crucial precisar ser ocultada ao leitor até o último capítulo, quando Sherlock Holmes ou Hercule Poirot reúne os suspeitos, explica a história toda e aponta o culpado. 
 
Mesmo assim, há inúmeras obras não-detetivescas que dependem de mistérios, dúvidas, incertezas. Histórias onde não sabemos ao certo o que aconteceu. Um fato remoto na infância de alguém. Um episódio de que todo mundo evita falar. A verdadeira identidade de uma pessoa. Às vezes, a própria identidade de quem está contando a história. 
 
No final, vem a revelação, mas o objetivo maior da narrativa não é a resposta em si, mas o longo período de incertezas e dúvidas, que é compartilhado pelo leitor, e que tem sua função dramática. 
 
Revelar o final antes da hora pode estragar a experiência de quem, na leitura, precisa justamente saborear todas as possibilidades, versões e hipóteses, antes de receber a resposta final. É um prazer específico que se extrai de alguns tipos de narrativa. 
 
Mas nem sempre o spoiler estraga o prazer da leitura. Muita gente até gosta. Uma curiosa pesquisa constatou que para muitas pessoas a informação tida como “desmancha-prazeres” as levava a gostar mais das histórias – desde que a revelação fizesse parte do texto, e não fosse uma “dica” dada por alguém, fora do livro. 
 
Aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2016/10/4168-o-suspense-e-o-spoiler-9102016.html



 
No útil websaite LitHub, um texto de Jonathan Russell Clark discute o que ele considera “o spoiler mais famoso de todos os tempos”, o prólogo de Shakespeare para a tragédia Romeu e Julieta. Nesse prólogo, em forma de soneto, a platéia é informada de que “um casal de desafortunados amantes tira a própria vida”. Clark considera que essa revelação, feita no instante mesmo em que as cortinas se abrem, é uma estratégia brilhante do autor. 
 
Primeiro, diz ele, porque nesta peça, mais do que em muitas outras, o final trágico é de cortar o coração, porque poderia tão facilmente ter sido evitado. Se uma desgraça tão catastrófica desabasse inesperadamente para a platéia, ela talvez reagisse mal; mas a peça já se abre dizendo como acaba, o que esvazia um pouco o impacto negativo. 
 
Por outro lado... isto não nos impede de torcer para que o casal fique junto, mesmo sabendo que eles não vão ficar. E quando o desfecho-mau acontece (diz Clark), não nos queixamos do Autor, que foi leal conosco, e sim de nós mesmos, da nossa esperança ingênua. E culpamos a injustiça do mundo – o que é (diz ele) o objetivo de toda a grande literatura. 



(Casino)
 

Existe também o falso spoiler preparado pela narrativa. No filme Casino (1985) de Martin Scorsese, Robert DeNiro faz um gangster que logo na primeira cena entra no carro, liga a ignição e o carro explode em chamas. Em seguida, o filme volta no tempo, em flash-back, para nos mostrar a razão do crime. Lá pelas tantas é que somos informados de que o bandido escapou da explosão. 
 
É um recurso usado tantas vezes que já estamos calejados. Um filme que começa com o protagonista sendo enterrado, fuzilado, enforcado, etc., já entrega de bandeja que aquilo não passa de uma encenação. O “nosso herói” certamente vai ressurgir vivinho da silva daí a pouco, e vai explicar o truque que usou para enganar seus perseguidores. 
 
Isto vale, contudo, para filmes mais leves, filmes de aventura, de entretenimento. Num filme de pretensões mais realistas, um fato crucial mostrado perto do início dificilmente será desmentido depois. 
 
O spoiler será, sempre, um desmancha-prazeres? Não necessariamente. Podemos ler várias vezes um livro onde há algum tipo de mistério esclarecido no final, alguma surpresa que nos pegou desprevenidos apenas na primeira vez, alguma reviravolta da narrativa que nos espantou mas não irá nos espantar na repetição da leitura. Por que? 
 
Para Clark, um spoiler sempre se refere a “o que acontece”, mas as grandes histórias dizem respeito ao “como acontece” e ao “por que acontece”.  E estes aspectos podem ser trabalhados pelo autor com tal riqueza de elementos que a releitura sempre trará novidades. Diz ele: 
 
“A alquimia das melhores histórias está em sua consistência: uma conexão de elementos mínimos, infinitesimalmente trançados entre si e com o amálgama que os une; está nas idas e vindas entre o que está acontecendo de fato, os motivos por que está acontecendo, e as razões que tornam tudo isto importante.” 


 
É por isto que mesmo os mistérios detetivescos cujo desfecho eu já conheço podem ser lidos sem susto. Já sei quem matou as vítimas em histórias como O Mistério da Laranja Chinesa de Ellery Queen, ou Madball de Fredric Brown, ou The Three Coffins de John Dickson Carr, ou O Assassinato de Roger Ackroyd de Agatha Christie. E daí? 
 
Essa revelação específica deixou de ser importante. No trajeto até ela, contudo, há uma série de pequenas revelações, pequenas conotações, detalhes secundários mas relevantes, que me motivam a ler de novo; e há o prazer de acompanhar a mestria com que o autor soube tecer tudo aquilo, e que é equivalente a escutar pela enésima vez uma sinfonia somente pelo prazer de ver como tantos efeitos diferentes foram amarrados num todo que faz sentido e que dá prazer. 
 
 
 
 





quinta-feira, 18 de abril de 2024

5053) Drummond: "Outubro 1930" (18.4.2024)




Entre os poemas do livro de estréia de Carlos Drummond (Alguma Poesia, 1930), este longo poema parece se destacar de todos os demais, e ao mesmo tempo permanecer invisível. Certamente estou “comendo mosca” estes anos todos, mas de tantas análises e críticas que já li sobre a poesia de Drummond lembro de pouquíssimas menções a “Outubro 1930”. 
 
É um poema um tanto longo, embora distante de ser um dos mais longos de Drummond. É um dos mais longos deste livro, contudo, e sua principal característica é a sua forma heterogênea, aparentemente desconjuntada. Uma estrutura quebrada, feita (propositalmente) de pedaços que parecem apenas se justapor uns aos outros, sem se encaixar com justeza. 



De propósito, é claro. O mês de outubro de 1930 foi o mês da famosa “Revolução de 30” que derrubou o governo de Washington Luís e levou Getúlio Vargas a passar 15 anos no poder. (Depois ele voltou, mas é outra história). A gota dágua, o fato desencadeador desse conflito militar foi o assassinato do “presidente” (governador) da Paraíba, João Pessoa, morto pelo seu desafeto João Dantas em 26 de julho. 
 
Estes fatos se articulam de maneira especial com a obra de Drummond, nesse tempo um poeta inédito de 28 anos (que ele completaria em 31 de outubro). 
 
Na “Cronologia” que figura em sua Obra Completa da Ed. Aguilar (1967), lê-se, no item referente a esse ano: 
 
Auxiliar de gabinete de Cristiano Machado, Secretário do Interior, ao irromper a Revolução de Outubro, que transforma aquela paragem burocrática em centro de operações militares; passa a oficial-de-gabinete, quando seu amigo Gustavo Capanema substitui Cristiano Machado. 
 
Drummond pegou em armas, no conflito? Certamente que não. O poema fala nas mortes, nos soldados, nas trocas de tiros, mas as imagens autobiográficas provavelmente são trechos assim: 
 
(...)
De 5 em 5 minutos um ciclista trazia ao Estado-Maior um feixe de telegramas contendo, comprimida, a trepidação dos setores. O radiotelegrafista ora triste ora alegre empunhava um papel que era a vitória ou a derrota. Nós descansávamos, jogados sobre poltronas, e abríamos para as notícias olhos que não viam. olhos que perguntavam. Às 3 da madrugada, pontualmente, recomeçava o tiroteio. 
 
É a rotina dos que, distantes das trincheiras, se encarregam das comunicações. Alguém já disse (nesse contexto bem século 20) que, na guerra, um telegrama na hora certa vale tanto quanto uma bala no lugar certo, e é verdade.  Drummond é o “funcionário deitado” a que ele próprio se refere; e seu poema, mesmo com as habituais ironias de jovem irreverente, tem o tom de quem está dentro dos acontecimentos, e não apenas observando-o de fora. 



(Recife, 1930)
 

Há um trecho especialmente real e tocante, um desses “flashes” que dispensam teorizações e mostram a crueza da guerra, como um Gif-animado em que vemos a mesma cena brutal, sem som, repetindo-se indefinidamente: 
 
Olha a negra, olha a negra,
a negra fugindo
com a trouxa de roupa,
olha a bala na negra,
olha a negra no chão
e o cadáver com os seios enormes, expostos, inúteis.
 
Morte gratuita, no meio da rua, que pelo menos a mim traz à lembrança uma cena famosa do cinema, a morte da personagem de Anna Magnani em Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini. 
 
Aqui, a cena:
https://www.youtube.com/watch?v=FNnSUpm7CgM
 
Além do estado de guerra, emerge do poema um sopro de alerta histórico e geográfico, a sensação de “um Brasil se fazendo”, um país sendo consertado na-marra por quem se impacientou com sua situação até há pouco. Surge aqui, talvez pela primeira vez, uma imagem recorrente nos primeiros livros de Drummond: a enumeração de nomes de lugares, nomes talvez exóticos, de localidades remotas, mas que se somam uns aos outros e pressionam o poeta, como que dizendo: “Nós também somos Brasil.” 
 
A esta hora no Recife,
em Guaxupé, Turvo, Jaguara,
Itararé,
Baixo Guandu,
Igarapava,
Chiador,
homens estão se matando
com as necessárias cautelas.  
 
São os nomes que chegam nos telegramas. A guerra civil torna-se uma forma curiosa de irmanação patriótica, em que o poeta sente-se confusamente unido às pessoas desses lugares, de alguns dos quais certamente nunca ouvira falar antes da chegada dos telegramas de campanha. 
 
O poema tem um registro irregular, onde a agulha salta da angústia para a ironia, da compaixão para o desinteresse, e se encerra com um sentimento arraigado no poeta, uma mistura de ceticismo e resignação: 
 
Deus vela o sono e o sonho dos brasileiros.
Mas eles acordam e brigam de novo.
 
Fiquei sabendo que este poema apareceu apenas a partir da 2ª. edição do livro, e só então sua presença se encaixou no meu entendimento, porque me parece (não tenho informações mais precisas) que Alguma Poesia teve sua primeira edição antes do conflito armado. A “Cronologia” da Aguilar registra assim: 
 
1930.  Publica Alguma Poesia (500 exemplares), sob o selo imaginário de Edições Pindorama, criado por Eduardo Frieiro. A edição é facilitada pela Imprensa Oficial do Estado, mediante desconto na folha de vencimentos do funcionário. Amigos oferecem-lhe um jantar comemorativo, em que é saudado por Milton Campos. 
 
Do ponto de vista da técnica, o mais interessante deste poema é que ele, sozinho, inaugura na obra de Drummond um formato fragmentado a que o poeta iria recorrer várias vezes no futuro. Não se trata apenas de um poema longo (Drummond gosta de poemas longos), mas de um poema heterogêneo, composto de partes que do ponto de vista formal têm pouca relação entre si. 
 
“Outubro 1930” mostra, alternadamente, estrofes em verso e trechos em prosa. O verso não obedece a métrica fixa, mas reitera em cada linha uma extensão regular – é verso com intenção de verso, para maior contraste com o trecho seguinte, uma série de frases em prosa que parecem querer rebentar a camisa-de-força do verso para comunicar de forma instantânea a urgência dos acontecimentos. 
 
Esse tipo de estrutura heterogênea, misturada, irregular, tem a ver com uma certa concepção do poema que podemos talvez chamar de “cubista”, lembrando o costume de artistas como Pablo Picasso ou Georges Braque de colar, sobre a pintura a óleo, fragmentos meio aleatórios de folhas de jornal, fotografias, papéis de embrulho, provas tipográficas...  


(Picasso, Garrafa de Vieux Marc, Copo, Violão e Jornal, 1913)

 
Era uma pintura invadida e interferida por fragmentos indisciplinados do mundo moderno, “ruídos” que irrompem no interior da estrutura pacífica, milenar, da pintura clássica. Aqui, dá-se o mesmo com a poesia, cuja estrutura é forçada a assimilar a prosa não-poética do mesmo jeito que a sociedade era forçada a assimilar a guerra civil. 
 
Drummond continuou, ao longo da vida, a explorar esses poemas longos em que se misturam, como em colagens cubistas, poesia metrificada, prosa, poesia livre, trechos de diálogo, transcrições de documentos reais ou fictícios... 

Há bons exemplos da riqueza de recursos desse método em poemas como “O voo sobre as igrejas” (Brejo das Almas), “Nosso tempo” e “América” (A Rosa do Povo), “Os bens e o sangue” (Claro Enigma), “A um hotel em demolição” (A Vida Passada a Limpo) e certamente muitos outros. 



 




segunda-feira, 15 de abril de 2024

5052) Papai está falando sozinho (15.4.2024)

 

Era uma turma alegre, estávamos conversando na mesa de um bar, cedinho da noite. De repente, um celular sobre a mesa acendeu e vibrou. Um dos meus amigos atendeu, foi até a porta em busca de melhor sinal. Voltou apressado, jogou na mesa duas ou três notas amassadas, sem nem olhar, como fazem os americanos nos filmes. “Já vai?”, perguntei. E ele, afastando-se, por cima do ombro: “Papai caiu.”
 
Na vida dos adultos jovens surge muitas vezes esse período que pode ser chamado “a Era de Dâmocles”. (Dâmocles era aquele grego que mandava botar uma espada pendurada sobre a cabeça dos convidados.)  A espada pode cair a qualquer instante. “Papai” leva uma queda, se machuca um pouco ou nem tanto, precisa ser levado não sei onde, recebe cuidados, curativos, admoestações. E tudo volta ao normal.
 
Até o dia em que noutro bar, noutra festa, noutra reunião de trabalho, brota a mensagem seguinte: “Papai caiu de novo”.
 
É a vida, não é mesmo? Porque uma coisa é cuidar de um bruguelo ou de uma pirraia de fraldas, que bambeia e desaba por cima da quina mais próxima, abre o bué, mas com meia hora de panacéias e carinhos nem se lembra do acontecido. E outra coisa é cuidar de um latagão ou de uma matrona cuja mente tem sempre metade da idade do corpo, e quer continuar a conviver com escadas, chuveiros, prateleiras de cima.
 
Existe outro momento, contudo, também digno de atenção, e este às vezes vem antes.
 
“Papai está falando sozinho.”
 
Eu já vivi isto, muita gente por aí deve ter vivido o mesmo. Muitíssimo frequente nos aposentados e nas pessoas que trabalham em casa. A gente passa no corredor e ouve vozes no quarto de dormir. Vozes no plural? Não, apenas uma, mas dirigindo-se a um suposto interlocutor.
 
– Mas quem diabo mexeu nesse armário... eu sempre deixo essa camisa pendurada do lado esquerdo, quem foi que botou lá na outra ponta?
 
A gente bota a cabeça na porta:
 
– Tudo bem aí?...
 
– Não tem nada bem. Toda vez que eu vou na padaria alguém entra no quarto e tira minha roupa do lugar.
 
Outras vezes o passante-no-corredor arrisca uma olhada e vê o sujeito sentado na escrivaninha, rabiscando apressadamente numas folhas de papel e murmurando coisas como:
 
– Mas é claro... perdi foi meu tempo... essa porra não podia dar certo nunca desse jeito.. tu é burro, meu camarada, tu é muito burro.
 
– Papai?... Tá falando com quem?
 
– Com o imbecil que lhe botou no mundo.
 
Este caso clínico tem um lado-reverso dos mais interessantes, porque existem (em igual proporção) mulheres que falam sozinhas, mas ninguém repara – porque em geral são as mamães, as donas de casa que passam o dia entregues a tarefas domésticas, arrumando, espanando, aspirando, dobrando, limpando, lavando, cozinhando... E falando em voz alta, em altos brados, como num filme italiano.
 
Essas tarefas exigem que ela seja quase onipresente, num segundo está à beira do fogão experimentando um caldo na pontinha de uma colher-de-pau, e dois segundos depois está limpando o banheiro, cuja descarga nem terminou de jorrar e ei-la forrando a cama de casal e entucando as beiras do lençol embaixo do colchão.
 
Como ela está ao mesmo tempo em todos os lugares, está sempre falando, e quem está na sala imagina que ela fala com quem está no terraço, quem está no terraço imagina que é com alguém no corredor, e por aí vai.
 
– Eu não sei de que adianta a pessoa ter meia dúzia de pessoas dentro de casa, porque são cinco pra desarrumar e uma escrava sozinha pra botar as coisas nos cantos... Custa nada botar de volta de onde tirou? Custa, porque esticar o braço é trabalhoso, e eu tenho que vir esticar o meu. A criatura come um pão, mas cadê que ajunta o farelo e joga fora? Não, eu tenho que largar o leite derramando e vir varrer o farelo dela. O outro termina o almoço e acha que faz um grande favor botando o prato na pia, mas não tem nem energia pra derramar no lixo a metade que não comeu...
 
– Mamãe?... Tá falando com quem?...
 
– Com as minhas vizinhas, as almas do Purgatório.
 
É um sintoma generalizado nas pessoas da terceira idade, e acho que aqui chegamos a um detalhe crucial. Por que os jovens não falam sozinhos, e os velhos sim? Creio que em parte é porque os jovens têm medo de serem vistos como doidos, incapazes, ou (mais modernamente) drogados.
 
Todo jovem cultiva a obsessão e o trauma da normalidade externa. Por dentro, o rapaz quer ser Sylvester Stallone ou Ney Matogrosso, não importa: por fora ele sabe que precisa se parecer com rapaz-de-propaganda-de-banco, porque se não vai acionar gatilhos. E a mocinha sente-se no fundo uma Salomé ou uma Rosa Luxemburgo, também não importa: tudo que se exige dela é que seja normal, e depois case.
 
Velhice é outra coisa. Quando um cara entra no terço final da existência, ele percebe pela primeira vez que pode se parecer com ele mesmo. Que o mundo não dá um vintém pelas opiniões dele, e muito menos pelo comportamento. Um jovem sente-se de certo modo responsável pelo mundo. Mesmo sabendo que a tarefa é dantesca, ele respira fundo e procura estar à altura, como um pai de trigêmeos. A velhice começa depois que ele percebe que em vez de tapinhas nas costas o mundo preferiu lhe dar um pé na bunda.
 
No Nordeste existe um comparativo muito a propósito: “Fulano está mais perdido do que cachorro que caiu da mudança”. A mudança é o mundo: virou esquinas, pegou atalhos, furou semáforos, acelerou, deu banda, rompeu pela contramão... e cada sujeito de 60 anos ficou sentado zonzo na poeira, pensando:
 
 – Agora danou-se, mesmo que o pé pudesse pisar direito eu não ia alcançar mais nunca.
 
– Falando com quem, papai?...
 
A enorme sensação de desobrigamento e alívio se traduz num senso lúdico do momento, e um detalhe importante é o retorno prazeroso de um tipo especial de cisão psíquica. Em momentos assim, o sujeito é capaz de simplesmente ser, e este é o Eu no. 1; é capaz de se observar, e quem observa é um Eu no. 2; e é capaz de comentar o que observa com um interlocutor suposto, que podemos chamar de Eu no. 3, embora geralmente, para efeitos estilísticos assuma a figura dos “amigos imaginários” que a pessoa tinha na infância.
 
Sei que parece delirante, e proponho agora um argumento mais pragmático. Todo professor e professora sabe que quando os nossos pirralhinhos repetem uma lição em voz alta aprendem e memorizam melhor do que quando fazem apenas a “leitura silenciosa”. Por que? Ora, porque a memória não passa de uma rede de conexões entre os neurônios, e produzimos milhões delas por dia. A maioria se dissipa após o uso. Dissimam-se mais lentamente quando envolvem diferentes partes do corpo.
 
Quando lemos um conjunto de informações, isto envolve apenas o olho e o cérebro, e nossa memorização repousa nas conexões entre estes dois. Porém quando repetimos em voz alta precisamos usar a garganta, as cordas vocais, a língua, etc., sem falar no fato de que o ouvido também está registrando tudo. Em vez de uma ou duas redes de sinais, temos uma dúzia. É mais difícil de se dissipar.
 
Quando uma pessoa está resolvendo mentalmente um problema, ela na verdade está produzindo algun minúsculos “euzinhos”, cada qual dando uma opinião. Todos são ele, todos representam modos-de-ver dele próprio, mas precisam deliberar.
 
O cara vai viajar, está fazendo a mala. E falando sozinho.
 
– Caramba, é uma semana só, não vou precisar de tantas calças... vou com uma, e vai outra na mala. E esse casaco aqui está ocupando metade do espaço, melhor ir vestido... Mas vestido com ele, num calor desse?  Ora, tanto faz, Uber tem ar condicionado, aeroporto também, avião... Vai, vai vestido. Danado é caber esse sapato... Não, não preciso de dois pares. Vai o que vai no pé e acabou-se.
 
– Papai?... Tudo bem aí?
 
E nem vou me referir ao fato de que indivíduos que escrevem literatura, que escrevem para teatro ou cinema precisam sentir (com a boca, a língua, os lábios, as cordas vocais) como essas frases vão ser fisicamente pronunciadas. Diálogo imaginado em silêncio está sujeito a mil armadilhas. A gente só percebe que está jogando um travalíngua no colo da atriz quando pronuncia ele em voz alta, a tempo de ser corrigido.
 
“ – Saia daqui, Dr. Axel. Imediatamente. Não convoquei esta reunião para que o senhor venha se beneficiar de privilégios hierárquicos”. Privilégios hierárquicos?! Quem diabo no mundo fala desse jeito, caramba!?  “Não lhe chamei para esta reunião para que o senhor venha passar na minha cara a posição que ocupa...” Menos pior. Sei não...
 
– Falando sozinho de novo, papai?...
 
Ele vai responder, enfarruscado:
 
– Tenho é que falar sozinho mesmo, porque preciso de um interlocutor à altura.
 
Não liguem – é mera bazófia, mera jactância. Ele está, como um rádio-astrônomo, tentando fazer contato com uma forma de vida inteligente no fundo do silêncio cósmico de si mesmo. É uma inteligência, viva, confusa, brilhante, inquieta, com quem ele conversou a vida inteira, mas que agora está se afastando com as galáxias, demora cada vez mais para responder... Mas... é a vida!  Quem somos nós para reclamar da expansão do universo?
 
 


[ voz que fala na cabeça ]
 
 
 
 







sexta-feira, 12 de abril de 2024

5051) "O Problema dos 3 Corpos" (12.4.2024)




Acabei de ver as duas adaptações, para série de TV, deste romance de Cixin Liu, muito elogiado e premiado por aí, certamente o primeiro livro de ficção científica chinesa a produzir um impacto tão grande no Ocidente. 
 
A tradução em inglês, feita por Ken Liu, ganhou o Prêmio Hugo de Melhor Romance, em 2015, e também foi indicada para o Prêmio Nebula (que acabaria sendo concedido nesse ano a Aniquilação, de Jeff Vandermeer). 
 
A série chinesa foi lançada em 2023, com 30 capítulos (pode ser vista no YouTube, com legendas em inglês). A série norte-americana foi lançada este ano, com 8 capítulos na primeira temporada. Ambas as adaptações são competentes, com grandes momentos, e ambas têm coisas que não estão muito bem resolvidas, como qualquer série de TV. 
 
Vale a pena vê-las? Sem dúvida. Qual das duas? Difícil responder, porque são dois resultados “fílmicos” muito diferentes. 




A série chinesa (dirigida por Lei Yang) tem um desenvolvimento mais arrastado. Alguns temas (como o das “contagens regressivas” implantadas nos olhos dos personagens) são esticados longamente, enquanto na série norte-americana isto é resolvido num vapt-vupt. 
 
Do mesmo modo, a série chinesa explora com muitas ramificações as atividades dos os grupos de “devotos” dos alienígenas (“Fronteiras da Ciência”, os Adventistas, os Redencionistas, os Sobreviventes...) e suas brigas internas, o que produz vários subplots de espionagem, assassinatos, etc. 



(Yu Hewei)


O elenco chinês é em geral muito bom: o detetive meio fanfarrão mas esperto (Yu Hewei) é um dos melhores. A exceção é a “Sala de Guerra” cheia de canastrões ocidentais usando farda e condecorações; nenhum presta. As expressões são forçadas, os diálogos ocos. 



(Liam Cunningham e Benedict Wong)
 

O elenco norte-americano oscila bastante, porque tem momentos um tanto novela-das-sete, mas eu gosto do detetive de Benedict Wong, da cientista Jess Hong (“Jin”) e do cientista Jovan Adepo (“Saul Durand”). Encontrei velhos conhecidos de Game of Thrones (outro projeto de Benioff & Weiss): Liam Cunningham (o “Mestre Davos”, voltando agora como o implacável comandante Wade) e John Bradley (“Samwell Tarly”, aqui como o milionário Jack Rooney). 
 
O ponto em que a série chinesa dá de goleada na norte-americana, contudo, é justamente na criação da personagem Ye Wanjie (interpretada por Ziwen Wang, na juventude, e Jin Chen, idosa) a cientista cujo pai é morto pela Guarda Vermelha maoísta, mas depois é aproveitada, pelo seu talento, na Base da Costa Vermelha. Ali ela irá trabalhar na antena emissora e, mais tarde, lançar o chamado para os alienígenas. Existe nesta versão da história uma sensação real de tempo passado por ela na Red Coast Base. Acompanhamos sua subida na carreira profissional, sua relação com os chefes imediatos, o acesso aos aparelhos, a mensagem, a decisão final de deixar oculta a resposta dos extraterrestres. 



(Jin Chen, como “Ye Wanjie”)


Ye Wanjie é o personagem central dessa narrativa, um personagem complexo que me deu vontade de ler o livro. (Não que o livro não tenha, certamente, outras qualidades.) Não é uma vilã convencional; suas motivações são complexas, e a imensa tensão emocional e intelectual da personagem é bem explorada com muitos pequenos episódios esclarecedores. Isto fica faltando na série norte-americana, onde ela não passa de uma personagem secundária, mesmo sendo a deflagradora da trama. 
 
Em geral, ambas as séries fazem escolhas com o pensamento no público que pretendem atingir. Os jovens cientistas chineses são contidos, travados, e quando destravam endoidecem. 
 
(Ambas as séries, aliás, recorrem ao batido clichê do “cientista pirado” que se dá o trabalho de cobrir todas as paredes e o chão com rabiscos matemáticos; isto virou no cinema de hoje um equivalente ao “laboratório gótico” dos velhos filmes de terror, com tubos de ensaio espumando e retortas soltando vapor.) 




Os jovens cientistas ocidentais têm todos os cacoetes dos personagens jovens da TV. Os namoros instáveis, as amizades à base de rompimentos e reaproximações, as piscadelas humorísticas na direção da platéia. Esse tipo de personagem compõe o que a gente poderia chamar de “realismo estatístico”. Cacoete de Hollywood? Nem tanto; tem até alguma herança do “realismo socialista”, com sua busca de personagens típicos vivendo situações típicas e tomando decisões típicas.  
 
As duas séries tratam de modo parecido e diferente um dos episódios mas vigorosos, em termos de dramaticidade e de efeitos especiais: a emboscada no Canal do Panamá. 
 
Na adaptação chinesa, o procedimento de ataque ao navio é antes longamente discutido, explicado, exemplificado, e o suspense que experimentamos resulta da expectativa em ver se um plano tão mirabolante vai dar certo. 
 
Na adaptação Netflix, sabemos que o navio vai ser atacado, mas o roteiro não revela como vai ser exatamente. Cada detalhe que surge é uma surpresa, e aos poucos entendemos a tecnologia usada pelos atacantes. 
 
Uma solução é certa, a outra é errada? Acho que não. Como tantas vezes acontece, tanto o suspense quanto a surpresa têm seu valor dramático, mas dependem acima de tudo da eficiência narrativa de quem dirige. E nos dois casos, são cenas bem sucedidas. 
 
Outro aspecto cientificamente simpático do enredo é a larguíssima janela de espera pela chegada de uma frota estelar alienígena. Soa mais realista do que aquelas histórias em que tudo acontece num piscar de olhos. “Naves foram construídas, e anos depois os humanos desembarcavam no planeta Zargon-14...” 
 
A longa viagem da frota bélica dos Tri-Solarianos (ou “Santi”) na direção da Terra me trouxe à lembrança a Guerra das Malvinas nos anos 1980, quando após a invasão argentina às ilhas a Primeira-Ministra Margareth Thatcher despachou uma “força tarefa” que viajou pelo Atlântico durante semanas, com o mundo na maior expectativa, até entrar em choque com as tropas argentinas. Uma guerra não acontece de repente; precisa de um vasto deslocamento de forças, tropas, veículos... Antes do primeiro tiro, a guerra já começou. 
 
É imensa a estante de obras de FC em que alienígenas ultra-poderosos são vistos como deuses. Arthur C. Clarke dizia que toda tecnologia suficientemente avançada fica indistinguível da mágica. De certo modo, o que adoramos religiosamente se confunde com o que não somos capazes de explicar de maneira racional. 



("Tatiana Haas")
 
Um dos melhores personagens da série Netflix é “Tatiana Haas” (Marlo Kelly), a jovem seguidora da seita dos “adoradores dos alienígenas”, uma matadora que tem o olhar vidrado e o sorriso fixo dos verdadeiros fanáticos. Sua equivalente, na série chinesa, é a mocinha de boné branco (cujo nome não consegui localizar) que destronca o pescoço de um assassino profissional com a facilidade de quem abre uma cerveja long-neck. 
 
Fanatismo político, fanatismo religioso, e fanatismo científico são colorações diferentes de uma mesma psicose. (Eu ia incluir também o fanatismo futebolístico, o fanatismo literário, etc., etc., mas por enquanto não é preciso.) Durante milênios a Humanidade olhou para o céu, fazendo perguntas e esperando respostas. Acho que foi Blaise Pascal quem disse: “O silêncio eterno desses espaços infinitos me dá medo.” As religiões são um conjunto de possíveis respostas. A busca por alienígenas, também. Ninguém quer aceitar a responsabilidade de ser a única inteligência do Universo. 




A obra de Cixin Liu é uma trilogia. O título em inglês, Remembrance of Earth’s Past, alude a Marcel Proust, e pode ser traduzido como Em Busca da Terra Perdida. Os três volumes são The Three Body Problem (2006), The Dark Forest (2008) e Death’s End (2010). Enquanto a série chinesa se detém no primeiro volume, trechos importantes do segundo e do terceiro foram transpostos para a série Netflix, que pode ser considerada mais representativa da trilogia como um todo. 
 
Pelo que as duas séries apresentaram, creio que vale a leitura dos livros, até por exprimir uma visão “chinesa” dos grandes problemas do gênero. A literatura é sempre uma expressão individual, mas também-sempre contaminada por ambiente social, leituras, interações, nosso inevitável mergulho no coletivo. Assim como existe em toda sociedade um “espírito do Tempo” (Zeitgeist) existe também um “espírito do Espaço” (Raumgeist?...) – que deve ser o que se chama por aí de nacionalismo. 
 
Às vezes me perguntam como escrever ficção científica “brasileira”. Respondo que a melhor maneira é ser pessoal como escritor. Não é ser “narcisista”, nem “autobiográfico”; é projetar-se por inteiro em tudo que lhe interessa: como escritor, como leitor, como pessoa. O resultado, mesmo que a ação transcorra em Betelgueuse ou no Século 2222, terá algo de brasileiro, que nem o próprio escritor estava percebendo. 
 
 





terça-feira, 9 de abril de 2024

5050) Seis portais (9.4.2024)




Os pesquisadores do Sistema de Portais Aleatórios divulgaram há poucos dias em seu website alguns achados do ano de 2023, mantendo, como sempre, uma margem de segredo para evitar a interferência de curiosos. 
 
1
Um provador de roupas na loja de departamentos Griggs em Atlanta (Georgia) foi descoberto como portal, quando certos tipos de roupas são experimentados ali. O pesquisador Alex Allen, ao se olhar no espelho experimentando um casaco de frio, viu abrir-se à sua frente o portal, que o conduziu para uma esquina nevada, de madrugada, numa cidade deserta, onde as únicas luzes acesas eram as dos postes de iluminação pública. No dia seguinte, levou várias roupas ao provador, e ao experimentar uma camisa de seda colorida o portal se abriu para um boliche quase vazio, onde um homem idoso arremessava bolas uma atrás da outra, sem conseguir grande resultado. Em ambos os casos o pesquisador sentiu o portal muito instável e percebeu que agarrar com força o tecido da roupa o mantinha aberto tempo suficiente para poder voltar. 
 
2
Uma descoberta curiosa foi feita por um casal de pesquisadores de Belém do Pará. Num edifício semi-abandonado no centro da cidade, mas ainda parcialmente em atividade, um elevador de cargas aciona em certas ocasiões (mas sempre, pontualmente, ao meio-dia) um portal que leva os passageiros da cabine, instantaneamente, do andar térreo para (sempre) o vigésimo-primeiro andar, onde funcionou até poucos anos atrás um laboratório de artefatos eletrônicos. Os pesquisadores veem alguma possível correlação entre os dois fatos. O portal só se manifesta na subida, e na volta é preciso descer todos os andares, ou então usar o elevador social, ainda em funcionamento, utilizado pelos funcionários de algumas empresas que estão se preparando para mudar de endereço ou fechar as portas. 
 
3
Um  parque municipal em Toulouse (sul da França) exibe em seu setor norte uma gruta artificial, montada com rochas de verdade e rochas “cenográficas”. A gruta se abre em algumas galerias por onde é possível caminhar (geralmente passeando com crianças) ao longo de corredores de pedra. Um pesquisador percebeu a vibração de um portal numa reentrância das rochas de papel-machê, e ao penetrar nele percebeu que ele conduzia a uma gruta idêntica, com poucas diferenças de detalhe, numa região selvagem e aparentemente desabitada, que ele julgou estar na África, observando a trajetória do sol e das estrelas. De volta à cidade, ele descobriu com surpresa que o arquiteto responsável pela gruta artificial a construiu baseando-se apenas em sua imaginação, sem consultar pesquisas ou imagens de qualquer gruta real. 
 
4
No banheiro da estação rodoviária de uma cidade do interior do Nordeste brasileiro, na terceira privada à esquerda de quem entra, está encalhado um portal-transiente que (de acordo com o relato do técnico local) “bruxuleia algumas vezes por dia, durante um ou dois minutos, e é quando a passagem fica aberta”. A descoberta foi feita inteiramente por acaso por um pesquisador amador de dezoito anos. Ao ser atravessado, o portal conduz a uma cidade de aspecto europeu, com arquitetura antiga, clima enevoado, frio intenso, e sempre à noite. O pesquisador atravessou o portal por quatro vezes, ao longo de um mês, mas não conseguiu identificar o país, ou o idioma local. Como de hábito, celulares não funcionam após o portal ser cruzado. O pesquisador não se afastou muito, com medo do portal se apagar e ele ficar preso nessa cidade. O ponto de saída se situa numa espécie de arena romana ou concha acústica em ruínas. Nenhuma pessoa à vista. 
 
5
Tem sido alternadamente elogiada e contestada a descoberta feita por Enrico Gambarotti, de Firenze, que em maio de 2023 informou à Central haver descoberto um portal em plena Ponte Vecchio, entre duas tendas (uma de roupas, outra de presentes e souvenirs). O portal conduzia a um edifício de escritórios, abandonado, num país que não se pôde identificar. O aspecto desconcertante na descoberta é que o edifício parecia estar às avessas, e ao emergir do portal o Pesquisador alega ter caminhado no teto o tempo inteiro, sendo que o piso, invertido, ficava sobre sua cabeça, com móveis, cadeiras, estantes, etc., tudo "de pernas para o ar".  Um objeto apanhado e depois solto no ar caía para cima, na direção do piso, mas no corpo do observador a força da gravidade parecia se exercer normalmente, como se ele estivesse em seu ambiente costumeiro. A descoberta de Gambarotti foi questionada pela própria Divisão Itália, quando se divulgou que a descoberta do portal foi feita por suas filhas gêmeas de 11 anos, Claudia e Chiara, que conseguiram surrupiar o Codificador, numa distração do pai, e voltaram contando essa história. Membros da Divisão Itália alegam que Gambarotti não cruzou pessoalmente o portal, e está apenas divulgando o que suas filhas lhe contaram, assustadíssimas. 
 
6
O pesquisador Vinicius Schroeder, de Bagé (Rio Grande do Sul) descobriu em sua cidade um portal precariamente situado na garagem de um edifício comercial, num trecho onde ninguém circula, um “espaço morto” entre as vagas de estacionamento e a subida da rampa. O portal só se tornou visível por emitir reflexos azulados de maneira aleatória. Penetrando por ele às 8 da manhã de um sábado, Schroeder se viu na área de serviço de um apartamento pequeno e abafado, habitado por uma família oriental que não se assustou com sua presença, e continuou entregue aos seus afazeres. Ele percorreu o apartamento inteiro, verificando que era pessoas de classe média baixa, pai, mãe, três filhos adolescentes, todos conversando entre si o tempo inteiro, sem demonstrar preocupação. Avistando na parede do quarto dos filhos (dois rapazes e uma moça, dormindo em beliches) um mapa da Malásia, concluiu que era ali a localização da moradia. A família pôs mais uma cadeira e mais um prato na mesa e o convidou para jantar (lá, já era noite), e ele tomou uma sopa de lentilhas acompanhada por chá preto e pão caseiro. 
 
 






sábado, 6 de abril de 2024

5049) A arte do conto policial (6.4.2024)



 
Tive uma idéia excelente para um conto policial. Eu sou, aliás, o rei das idéias.  Se fosse menos preguiçoso, poderia até ter chegado a ser o rei dos contos policiais, mas escrever, escrever mesmo, concretamente, é um trabalho braçal desnecessário. Muito mais agradável é ter uma idéia atrás da outra, sempre colocando uma pedra em cima da folha para que o vento não a leve, e seguindo adiante. Cada idéia da gente é uma folha. Basta abrir um arquivo, resumir a idéia, jogar um título, dar uma salvada rápida... A vida não foi feita para se perder tempo, nem o tempo foi feito para passar. A vida tem mais é que ser pra sempre. O tempo tem mais é que descansar.
 
A idéia é que um sujeito é encontrado morto em seu escritório. Um homem de certo poder político ou econômico, e tudo indica se tratar de um suicídio. Ele escreveu um bilhete e explodiu a cabeça com um tiro. A arma ainda está presa entre seus dedos imobilizados pela rigidez cadavérica. O detetive examina o bilhete, que diz algo como: “Lamento por todos, mas é o jeito”. 
 
Curiosamente, o bilhete do suicida está datilografado. Estranho, não? Se tem uma coisa em que um suicida geralmente capricha é esse recado final, que deve ser de autoria indiscutível. É aí que o contista precisa driblar as circunstâncias que ele mesmo preparou. 
 
O bilhete tem que ser datilografado, senão não tem história. Suponhamos então que o falecido era idoso, tinha um princípio de Parkinson ou equivalente, a mão tremia muito, e toda sua comunicação por escrito era feita à máquina. O leitor sagaz fareja aí uma preparação qualquer, mas leitores lebres precisam ter paciência com autores tartarugas. 



O detalhe é que a história se passa num mundo pré-computador, num mundo em que um sujeito com alguma grana teria ao seu dispor uma máquina de escrever elétrica. E ele tem uma, justamente por causa do Parkinson (o teclado é mais sensível – não precisa percutir a tecla, basta encostar). 
 
Essas máquinas elétricas tinham dois tipos de fita: a de algodão (mais barata) e a de polietileno. A de algodão rendia mais. Tal como as fitas das velhas máquinas mecânicas, a “Olivetti”, a “Remington”, era um algodão embebido em tinta que admitia várias “passadas”, observando que a cada passada a tinta diminuiria. 



(Fita de polietileno para máquina-de-escrever elétrica)


Já a fita de polietileno, acondicionada num cartucho, era uma faixa negra e estreita, em direção única, onde o martelinho de cada letra cortava o formato exato, colando aquela letrinha negra no papel, e voltava ao repouso enquanto a fita se movia meio milímetro de lado e aguardava a próxima martelada. 
 
Acho que não é preciso mais. Este conto devia ter sido escrito quando essas coisas eram novas. Tudo tem que ser escrito enquanto as coisas são novas. Quando a gente se dá conta, as coisas envelheceram mais rápido do que nós. A gente planeja, e fica tão orgulhoso de finalmente ter planejado alguma idéia engenhosa, mas aí tudo começa a se afundar no oceano pastoso das Coisas Que Não São Mais Assim. Afundam, e se nos apegarmos a elas, afundaremos junto. Uma injustiça com as coisas que eram reais quando nós éramos jovens. 
 
Agora, não, há uma proliferação injusta e afrontosa de novas coisas e nova gente nos empurrando para o fundo do palco, assumindo as luzes, tratando gente como nós como se fôssemos teias-de-aranha. E perguntando, com a arrogância dos desinformados: “O que é máquina-de-escrever elétrica? O que é liquid-paper? O que é orelhão? O que é telex? O que é laquê? O que é combinação? O que é rirri? O que é cabriolé?  O que é lábaro? O que é roscofe?”. 





Voltemos ao mundo das idéias, paraíso onde tudo brilha e nada perece. 
 
A idéia era que extraindo o cartucho de fita de polietileno, onde cada letra percute uma vez apenas, seria possível reconstituir em ordem reversa todas as palavras que tinham sido datilografadas naquela máquina. E assim o detetive descobre que dois bilhetes de suicida haviam sido escritos: o verdadeiro (que foi destruído), e o falso, que foi encontrado junto ao corpo. Não houve assassinato. Foi suicídio mesmo. O que houve foi que alguém descobriu o corpo, leu o bilhete (que o denunciava, ou o prejudicava de alguma forma, não importa, invento depois), e resolveu destruí-lo e escrever o outro, anódino, insípido, não comprometedor, que foi descoberto. 




O detetive faz os malabarismos retóricos de costume, exibe a fita de polietileno, soletra de trás para diante o bilhete que foi encontrado, último texto escrito naquela máquina, e num lance teatral, faz o mesmo com o penúltimo, o bilhete autêntico que foi destruído. E aí é só inventar quem era a família, quais as brigas internas (toda família de milionário tem brigas internas), os dramas da raça humana. Com um parágrafo final arrasador, digno de acompanhamento orquestral. 
 
É aí que o leitor moderno ergue a cabeça da página e pergunta, amuado: “Mas o que é polietileno?”. 
 
Mas agora sim!... E se a solução de um mistério detetivesco dependesse do criminoso (e o detetive, e o leitor, por tabela) entenderem a estrutura e o funcionamento de um candeeiro de querosene, ou de um alambique, ou de um moinho dágua? Quantas pessoas no mundo sabem como essas coisas funcionam? 



 
– Portanto, – diz o detetive, enquanto o falsificador, cabisbaixo, é levado em algemas para a gendarmeria local, – aproveitem o momento. Carpe diem. Escrevam sobre as coisas de hoje, antes que chegue o vendaval do Amanhã. O crime de vocês precisa de um pen-drive? Escrevam hoje – amanhã teremos o chip telepático. Escrevam hoje as suas histórias sobre essas novidades que nos parecem eternas: o tik-tok, o açaí com granola, o air-fryer, o podcast, a tatuagem, a dupla sertaneja. Parecem que vão ficar entre nós para todo o sempre? Tenho uma boa-má notícia: não vão. 
 
“Tudo passa. Só quem não passa, pelo que vejo, é a Seita dos Talibãs do Presente. Hoje em dia a gente não pode dizer, descuidadamente, “vou pegar um táxi” sem que algum espertinho erga o dedo bem satisfeito e corrija: “Um Uber!...”. 
 
São as mesmas pessoas que no meio de uma noitada ouvem a gente dizer: “Nos vemos amanhã”, e corrigem: “Amanhã, não – hoje!!! Já passou de meia-noite!!!”  E ainda apontam para o pulso, orgulhosas. 
 
“É um orgulho que até se justifica, porque essas pessoas vêm com o vendaval, com a folharada. São aquelas que têm a Engenhoca.16 mas a trocam imediatamente pela Engenhoca.17 mal ela desponta no mercado. E para elas, as dezessetes, tudo que for dezesseis é superado, anacrônico, desprezível. 
 
“Vieram com o vendaval, e (sejamos otimistas!) com o vendaval irão embora.”