domingo, 11 de fevereiro de 2018

4313) Como começar uma história (11.2.2018)




Existem mil regras para começar uma história. Cormac MacCarthy dizia que nunca se deve começar um livro descrevendo o clima que faz. Certamente para fugir àquele clichê mais que famoso de Edward Bulwer-Lytton: “Era uma noite escura e tempestuosa...”.

Melhor do que inventar fórmulas (e do que segui-las) é escolher começos que nos parecem bons e fazer aquela pergunta crucial: Por que isto é bom?

Digressão: sempre que faço oficinas, aconselho aos participantes que interrompam uma leitura sempre que gostarem ou não gostarem de algo. E que se perguntem: “Por que isto é bom? O que o torna ‘algo bem escrito’? E se me pareceu mal escrito, por que foi?”  Fazer essas perguntas nos ajuda a entender os efeitos produzidos em nós pela escrita alheia. Em geral, a gente gosta mas não pára pra pensar, e acaba sem saber por que gostou.

O conselho mais universal sobre o começo de uma história, seja conto ou romance, é a teoria do “gancho” (“hook”): algo que agarra a atenção do leitor e não permite que ele afaste os olhos da página daí em diante.

O começo de uma história, segundo essa teoria, tem que ser o que em certa época a gente chamava de “começo Mike Tyson”, ou seja, desde a primeira palavra o texto tinha que partir para cima do leitor como o feroz Tyson partia, ao soar do gongo, pra cima dos seus adversários: batendo sem parar, sem lhes dar tempo para respirar sequer.

A literatura Romântica do século 19, principalmente aquela voltada para o Fantástico, era mestra nesses começos “de arregalar os olhos”.

É verdade! Sou nervoso, muito, terrivelmente nervoso; sempre fui e sou-o ainda. Mas por que me chamam vocês de louco? A doença aguçou os meus sentidos, ao invés de destruí-los, de amortecê-los. Acima de tudo, era o meu sentido da audição o mais agudo de todos. Eu escutava todas as coisas que havia entre o céu e a terra. Escutava muitas coisas no inferno. E como, então, estarei eu louco? Esperem! E observem com que saúde mental, com que tranquilidade, eu lhes contarei minha história por inteiro.
(Edgar Allan Poe, “O Coração Revelador”, 1843, trad. minha)

Meu Deus! Meu Deus! Finalmente vou escrever o que me aconteceu! Conseguirei fazê-lo? Atrever-me-ei? É coisa tão estranha, tão inexplicável, tão incompreensível, tão louca!
(Guy de Maupassant, “Quem sabe?”, 1890, trad. Ondina Ferreira)

Aberturas assim contrastavam com os começos bucólicos das histórias rurais e os começos burocráticos dos contos urbanos. Arrebatavam o leitor numa montanha-russa de efeitos. Era o Romantismo reagindo à austeridade racional do Realismo, e abrindo o caminho para uma literatura do subjetivo que viria a ser chamada de Expressionismo, cem anos depois, e já num outro tom de voz.

Criar um mistério logo no primeiro parágrafo, contudo, é uma técnica que os seguidores de Poe e Maupassant não menosprezaram. Um deles era H. P. Lovecraft, no qual já vemos uma certa contenção descritiva, mas buscando o mesmo efeito:

Eu repito, cavalheiros, sua inquisição é infrutífera. Detenham-me aqui para sempre se quiserem, confinem-me ou me executem, se precisam de uma vítima para apaziguar a ilusão que chamam de justiça; mas eu não posso dizer nada além do que já disse. Tudo o que consigo lembrar eu já lhes contei com perfeita sinceridade. Nada foi distorcido ou ocultado, e se algo permanece vago é por causa das nuvens escuras que cobriram minha mente – dessas nuvens e da natureza nebulosa dos horrores que as atraíram sobre mim.
(H. P. Lovecraft, “O depoimento de Randolph Carter”, 1919, trad. Francisco Inocêncio)

O “gesto narrativo” é o mesmo, o gesto de agarrar o leitor como o Velho Marinheiro do poema famoso de Coleridge agarrava um transeunte, em desespero, precisando a todo custo despejar sobre alguém a história que o atormentava.

William Sloane (1906-1974) foi um obscuro professor e editor literário que nos anos 1930 produziu dois notáveis romances de terror, muito elogiados por Stephen King na introdução à edição conjunta dos dois, The Rim of Morning (New York Review Books, 2015).

Sobre o primeiro deles, To Walk the Night (1937) já escrevi aqui:


O segundo, The Edge of Running Water (1939), começa com um parágrafo que traduzo abaixo.

O homem para quem está história é narrada pode estar ou não estar vivo. Se está, não sei o seu nome, nem onde mora, nem coisa alguma a seu respeito, exceto que existe algo que é vital para mim e que preciso contar-lhe. É um método de comunicação estranho e desajeitado, este expediente de escrever um livro inteiro sem ter sequer a segurança de que ele chegará às suas mãos, e no entanto não sei de outra maneira de preveni-lo. Acho que existe uma chance razoável de dar certo. Algum dia, talvez numa livraria, talvez numa biblioteca, ele pode encontrar um exemplar desta narrativa. Ou alguém que ele conhece a mencionará distraidamente e ele se sentirá induzido a procurar e ler este livro. As pessoas sempre dão um jeito de ter acesso a coisas que são de suprema importância para sua vida e seu trabalho. O que me perturba não é a possibilidade de que ele nunca encontre esta mensagem, mas a de que o faça quando já for tarde demais.

Este é um típico começo criador de suspense sem nada revelar sobre o enredo: ele trata da importância do enredo para alguém. A história precisa ser lida por alguém que o autor desconhece. Por que? Que mensagem tão importante é esta?

Por outro lado, o autor controla essa tensão melodramática usando distanciamento. Não há súplicas, gritaria, pontos de exclamação. Ele fala com calma da importância da mensagem, sugere hipóteses, divaga um pouco sobre as circunstâncias em que o livro pode ser lido... E no final volta a aumentar a tensão ao usar esta velha e infalível fórmula verbal: a expressão “antes que seja tarde demais”.

Há outras maneiras de criar um mistério na abertura do livro. Uma delas é narrar um fato espantoso, e depois retroagir no tempo, levando o leitor junto consigo, e mostrar como foi que aquilo aconteceu.

Um exemplo clássico disto é a abertura famosa de A Judgement in Stone (1977; no Brasil, Um assassino entre nós), de Ruth Rendell:

Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever.

Na primeira frase a autora descreve o episódio final e clímax do romance, no maior exemplo de “auto-spoiler” que alguém pode imaginar. Ela troca a surpresa pelo mistério, no entanto, porque a partir desta frase inicial o leitor passa a perguntar: Como é que uma coisa tão absurda pode acontecer? E o livro responde.

São “iscas” muito mais sutis e que para mim funcionam muito melhor do que os começos delirantes (mas datados – até que alguém me prove o contrário) dos antigos mestres.







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