segunda-feira, 4 de setembro de 2017

4266) O Caminhante-na-Terra (4.9.2017)



A literatura (e seus desdobramentos, entre eles o cinema, os quadrinhos, a filosofia) funciona à base de repetições e variantes, trazendo sempre uma mistura do que é conhecido e nos proporciona segurança, e do que é desconhecido e nos desperta a curiosidade.

É assim com certos personagens ou tipos recorrentes que fazem parte da nossa memória cultural, porque para onde a gente se vire dá de cara com uma variante deles.

Eu estava relendo um dos livros problemáticos de Philip K. Dick, A Maze of Death (1970). Digo problemáticos porque tem uma história fascinante, mas talvez seja um dos livros escritos mais descuidadamente pelo nosso grande Maluco Beleza californiano.

Em todo caso, essa aventura dark e sinistra (que já foi chamada pela crítica de “O Caso dos Dez Negrinhos no espaço interplanetário”) é uma das tentativas mais interessantes de Dick em produzir uma religião artificial.

Tanto quanto o “mercerismo” de Do Androids Dream of Electric Sheep (1968), os pesadelos fundamentalistas em Eye in the Sky (1957) e todas as fantasias cósmico-teológicas da fase final de sua vida, começando com The Divine Invasion e Valis (ambos de 1981).



Em A Maze of Death, um grupo de colonistas terrestres num planeta remoto professa uma religião própria baseada num livro sagrado chamado “The Book of Specktowsky”, relativo ao filósofo que a concebeu.

O humor californiano de PKD sempre dilui qualquer pomposidade possível em seus conceitos, de modo que esse equivalente da Bíblia ou do Corão intitula-se na verdade Como Eu Me Ergui Dentre Os Mortos Em Minhas Horas Vagas e Você Também Pode, um saboroso tempero de ironia para um livro que traz a Verdade Suprema.



A religião pregada por Specktowsky tem, é claro, pontos em comum com o cristianismo, e postula a existência de quatro manifestações da Divindade: o Mentufaturador, o Intercessor, o Caminhante na Terra e o Destruidor das Formas. No momento, é o terceiro deles que me interessa.

O Caminhante na Terra (“the Walker-on-Earth”) é uma entidade que se materializa e vem em socorro dos humanos em momentos de necessidade. Por exemplo, no capítulo 2 ele surge como “um homem, ou pelo menos algo como um homem. Um vulto vestindo um robe solto, com cabelos longos caindo sobre seus ombros escuros e maciços.” Aborda um personagem prestes a partir num voo interplanetário e lhe diz que não pegue aquela nave, que está com defeito, pegue outra.

O Caminhante vai embora do mesmo jeito que aparece. Comparado à mitologia cristã ele se assemelha mais a um anjo do que a um dos membros da Santíssima Trindade. Os anjos nos guardam, nos aconselham, nos dão avisos, evitam que façamos bobagem e assim por diante.

No entanto, o modo elusivo e arredio como ele se comporta lembra outro tipo de caminhante: o Judeu Errante, que escarneceu de Cristo e foi condenado a caminhar sem paz pelo mundo afora, até o dia do Juízo Final.



Caminhar pelo mundo significa entrar em contato com Deus-e-o-Mundo. O Judeu Errante não é um eremita escondido no fundo de uma loca. Ele caminha, ele se mistura, mas sem nunca ter um contato real com quem quer que seja.

Como disse Castro Alves:

Viu povos de mil climas, viu mil raças,
e não pôde, entre tantas populaças,
beijar uma só mão...
(“Ahasverus e o Gênio”, 1868)

O Caminhante-na-Terra de PKD parece ter um pouco disso. Ajuda a todo mundo, mas não pode se aproximar de ninguém. Meia hora, uma hora de conversa, e ele desaparece para sempre.

As sincronicidades da Literatura Comparada me levaram a no mesmo dia enfiar no draive um DVD de um filme que eu não via há décadas, Queimada (“Burn!”, 1969). É um filme bastante glauberrochiano de Gillo Pontecorvo, descrevendo de forma até didática certos mecanismos do colonialismo no século 19, especificamente o modo como a Inglaterra financia secretamente a independência de um pequeno país negro do Caribe, apenas para tirá-lo de baixo da asa de Portugal e trazê-lo para a sua.



Quem se encarrega disso é Marlon Brando, com uma improvável peruca loura mas um à-vontade notável no papel desse agente provocador que manipula ditadores, revolucionários e capitalistas na mesma medida em que os serve. Ele é um aventureiro, um indivíduo de têmpera superior mas de personalidade instável; eu o compararia a Richard Francis Burton e a T. E. Lawrence, o da Arábia.



Acontece que no filme o personagem de Brando se chama “Walker”. Dizem que é em homenagem a um personagem real, William Walker, que andou aprontando naquela época pela Nicarágua.

Não havia como não ver no Walker de Brando uma espécie de Judeu Errante, destinado a caminhar de país em país a soldo de Sua Majestade Britânica, erguendo e derrubando líderes populares, interferindo, seduzindo, doutrinando, armando, financiando, e depois sumindo de vez para ir fazer o mesmo em outro grotão perdido do Terceiro Mundo.

Como outro Walker: aquele encarnado pelo Fantasma, de Lee Falk, um dos ídolos meio esquecidos da minha infância. The Phantom vive também no meio de pigmeus africanos, como um colonialista qualquer, trazendo-lhes os benefícios da inserção no Mercado.

Ele veste uma dessas roupas colantes e coloridas de super-herói dos quadrinhos, mas quando visita a civilização o faz de chapéu, óculos e sobretudo – e se faz chamar de “Mr. Walker”. Porque ele é no fundo o Fantasma-Que-Anda, “the Ghost-Who-Walks”.  Imortal, como o Judeu Errante.



Outro herói (este conheço pouco) que se aproxima dessa equação “judeu errante / herói mascarado” é o Phantom Stranger (DC/Vertigo).


É interessante o paralelismo desse arquétipo. Ele é uma divindade que desce até os mortais para interferir na sua vida, e é um europeu que desce até o Terceiro Mundo para fazer o mesmo (sempre de forma ambígua). E é sempre alguém de fora, um outsider, que não pertence àquele lugar. (O Fantasma de Lee Falk tem domicílio fixo numa selva, como Tarzan; não vive errando de mundo afora; mas continua a ser, sempre, um “despaisado” alguém sem pátria, alguém de fora.)

Lévi Strauss dizia (com outras palavras) que um mito não corresponde a nenhuma de suas versões, mas aos traços que se reforçam quando todas as versões são superpostas. Os arquétipos literários têm essa mesma característica.

Quem é o Caminhante-na-Terra? Não sabemos (o autor não o revela), mas ele nos parece familiar porque tem traços do Fantasma de Lee Falk e de Lawrence da Arábia; de um anjo desterrado e de um agente-provocador branco em continente negro; de alguém que não morre mas que nunca viveu; de Richard Francis Burton e do judeu errante de Castro Alves, “invejado, a invejar os invejosos”.