sábado, 12 de agosto de 2017

4260) As ilhas fantásticas (12.8.2017)




(a Terra com a ilha de Robinson Crusoe no centro)



Às vezes uma idéia vai passando de escritor em escritor e sofrendo transformações que acabam se perdendo da memória. Às vezes conhecemos o primeiro e o último elo da corrente, mas não sabíamos da existência dos elos intermediários que ligam um ao outro. Ou então sabíamos da existência deles, mas não sabíamos que formavam uma corrente.

Foi o que aconteceu comigo ao ler o artigo de John Pielmeier sobre viagens marítimas e literárias, que pode ser lido na íntegra aqui:


Farei um resumo, porque a história é interessante.

Em 1704, houve uma discussão séria a bordo do navio inglês Cinque Ports, envolvido numa guerra com a Espanha. O navio estava circulando a América do Sul, e o capitão foi questionado pelo mestre de navegação, Alexander Selkirk, para quem o navio estava com a estrutura comprometida e naufragaria em breve. Selkirk recusou-se a continuar, e foi deixado numa ilha na costa do Chile, com apenas um mosquetão, um machado, uma faca, uma panela, uma Bíblia, alguns cobertores e roupas. (Ele tinha razão: o navio de fato afundou, pouco tempo depois.)

Nessa ilha ele ficou de 1704 a 1709, e depois de ser resgatado sua história ficou famosa na imprensa. Surgiu daí, em 1719, o romance Robinson Crusoe de Daniel Defoe, a história de um sujeito que sobrevive sozinho numa ilha deserta, considerado o primeiro romance realista inglês. O livro de Defoe se inspirou parcialmente na história de Selkirk, e incluiu um mapa da ilha, baseado numa descrição feita por Selkirk a um jornalista.


Muitos anos depois, Robert Louis Stevenson (1850-1894), contando para seu enteado histórias de piratas e batalhas, serviu-se do mapa de Selkirk como fonte inicial de inspiração para criar a sua própria ilha imaginária: A Ilha do Tesouro (1883), que é, tal como o Robinson Crusoe, uma das histórias de aventuras mais conhecidas do mundo.



Stevenson, que era um grande escrevedor de cartas, manteve uma correspondência com um jovem escritor, escocês como ele: J. M. Barrie, seu grande fã. E coube a Barrie, anos depois, criar uma outra ilha, modelada nas outras: a ilha de Neverland, que no Brasil conhecemos como Terra do Nunca, a ilha onde Peter Pan se esconde do Capitão Gancho e para onde leva Wendy e seus irmãos.

O  livro que no Brasil conhecemos como Peter Pan é Peter and Wendy (1911), romance inspirado na peça de teatro com que Barrie iniciou essa história de sucessos. É, como os livros anteriores, uma das histórias infanto-juvenis mais conhecidas do mundo.



O artigo de John Pielmeier descreve uma pequena epifania que ele experimentou em 2014, quando ao viajar de navio com a esposa fez uma parada na pequena ilha onde ficou Selkirk, hoje batizada de Ilha de Robinson Crusoe. Eles passearam pela ilha, que é bastante montanhosa, e subiram até um dos pontos mais altos. E ele diz:

Havia algo estranhamente familiar naquela visão. De repente, eu me dei conta de que: 1) Selkirk havia descrito a ilha para um jornal de Londres; 2) essa descrição inspirou o mapa de Defoe; 3) esse mapa serviu de base para o mapa da Ilha do Tesouro, de Stevenson; 4) o qual por sua vez foi imitado por Barrie.

Como eu sabia disso? A prova estava diante dos meus olhos. Lá, na abertura da baía, ficava o navio do Capitão Gancho, e logo depois, quando chegamos ao topo da montanha, avistei sem dificuldade a Lagoa das Sereias ao sul, e o promontório onde ficava a aldeia dos índios, a noroeste. Eu estava caminhando na Terra do Nunca.

Esse pequeno episódio ilustra muito bem o modo como as idéias literárias vão passando de mente em mente. E como uma das forças motoras principais da literatura é: A vontade de escrever algo parecido com o que a gente gostou de ler.

Esse rastreamento emocional feito por John Pielmeier me trouxe à mente um romance de FC de Philip K. Dick, Time Out of Joint (1959), onde de certa forma temos um indivíduo que vive numa “ilha” onde a civilização é recriada à sua imagem e semelhança.



Ragle Gumm vive numa típica cidadezinha norte-americana dos anos 1950. Mora “de favor” coma irmã e o cunhado, e sobrevive ganhando prêmios de um concurso do jornal local, onde ele precisa adivinhar, diante de um diagrama enorme, em que quadradinho vai aparecer o “homenzinho verde”. Todo dia ele acerta. E todo dia ganha uma merrequinha de grana que paga suas cervejas e ajuda na feira de casa.

Acontece que na realidade Ragle Gumm é O Homem Mais Importante do Mundo (título da edição portuguesa do livro).

Ele tem uma capacidade quase sobrenatural de perceber padrões, de enxergar regularidades em fenômenos aleatórios. O ano em que vive, na verdade, é 1998, a Terra está em guerra com a Lua, e ele é a única pessoa que consegue prever onde cairão os próximos mísseis disparados pela Lua (=o lugar onde aparecerá o homenzinho verde).

Acontece que o estresse dessa responsabilidade o projetou num surto psicótico onde ele sonha que está de volta a um passado paradisíaco da década de 1950. E para continuar contando com as “previsões” dele, o governo militar da Terra constrói uma cidadezinha artificial onde Gumm imagina que é apenas um tiozão desocupado resolvendo quebra-cabeças de jornal.

A certa altura do livro, Ragle Gumm está conversando com a irmã e o cunhado e tem o seguinte diálogo:

– Talvez o vendedor use alguma marca pessoal – disse Ragle. – Algo como: “Norman G. Selkirk, Vendedor de Tuckers”. Mas de qualquer maneira, eu lhe repasso para você ficar sabendo.
Margo disse:
– Por que usou o nome “Selkirk”?
– Não sei – disse ele. – Escolhi um nome ao acaso.
– Não existe acaso – disse Margo. – Freud demonstrou que existe sempre uma razão psicológica. Pense bem no nome “Selkirk”. Ele lhe lembra o quê?
Ragle pensou um pouco.
– Talvez eu tenha visto o nome quando folheei o guia telefônico. – Essas malditas associações de idéias, pensou ele. Como nas pistas do concurso. Não importava o quanto a pessoa se esforçasse, jamais ia conseguir ter tudo sob controle. Elas é que o controlavam. – Achei! – disse ele finalmente. – O homem em cuja história se baseou o livro “Robinson Crusoe” se chamava Alexander Selkirk.
– Não sabia que o livro se baseava em algo – disse Vic.
– É, sim – disse Ragle. – Houve um náufrago de verdade.
– Por que será que você pensou nele? – comentou Margo. – Um homem vivendo sozinho numa ilha minúscula, criando sua própria sociedade à sua volta, seu próprio mundo. Todos os seus utensílios, roupas...
– Porque – disse Ragle – eu passei dois anos numa ilha assim, durante a II Guerra.


Na verdade, Ragle está vivendo num mundo como o de Robinson Crusoe, um mundinho feito à medida dele, e ao mesmo tempo está vivendo numa Terra do Nunca, porque ele é o “menino que não quer crescer”, um homem que quer viver eternamente em 1959, tomando cerveja e paquerando a mulher do vizinho. Ele não quer admitir que é um adulto, que está em 1998, e é o homem de quem depende o resultado de uma guerra  interplanetária.

A referência a Selkirk mostra que Philip K. Dick tinha consciência da primeira influência (como Selkirk, Ragle pede para abandonar um projeto que sabe condenado ao fracasso); não dá para saber em que medida ele sabia que também estava contando em Time Out of Joint uma nova versão da história de Peter Pan.