segunda-feira, 5 de junho de 2017

4241) Bob Dylan: a aula do Nobel (5.6.2017)



Conferência Nobel sobre Literatura 2016
Bob Dylan
Gravada em 4 de junho de 2017 - Los Angeles, CA
Tradução: Braulio Tavares


Assim que recebi este Prêmio Nobel de Literatura, comecei a imaginar de que maneira precisa minhas canções se relacionam com a literatura.

Eu queria refletir sobre isto e ver onde era a conexão. E vou tentar articular essas reflexões para vocês.

Provavelmente vou fazer isso usando muitos rodeios, mas espero que o que eu vou dizer valha a pena, e explique minhas intenções.

Se eu me reportar ao início de tudo, acho que tenho de começar com Buddy Holly.

Buddy morreu quando eu tinha por volta de 18 anos, e ele tinha 22. No momento em que o ouvi cantar pela primeira vez, senti que tínhamos afinidade.

Senti que havia uma relação, como se ele fosse um irmão mais velho. Cheguei até a achar que eu me parecia com ele.

Buddy tocava a música que eu amava – a música que eu cresci escutando: country western, rock’n’roll e rhythm and blues.

Três correntes musicais diferentes que ele misturava e destilava num único gênero. Uma marca.

E Buddy escrevia canções – canções que tinham belas melodias e versos cheios de imaginação. E ele cantava muito bem – cantava em muitas e diferentes vozes.

Ele era o arquétipo. Tudo que eu não era e que queria ser. Eu o vi somente uma vez, e isto foi poucos dias antes da sua morte.

Tive que viajar 100 milhas para vê-lo tocar, e não me decepcionei.

Ela tinha força, era eletrizante, tinha uma presença dominadora. Eu estava a apenas dois metros de distância. Ele era hipnótico.

Eu olhava o rosto dele, as mãos, o modo como ele marcava o ritmo com o pé, seus grandes óculos de armação preta,

Os olhos por trás dos óculos, o modo como segurava a guitarra, a postura de pé, o terno caprichado.

Olhei tudo nele. Ele parecia ter mais do que 22 anos.

Algo nele parecia ser permanente, e ele me transmitia uma enorme convicção.

Então, de repente, a coisa mais estranha aconteceu. Ele me olhou direto, no fundo dos olhos, e me transmitiu alguma coisa.

Algo que eu não sabia o que era. E aquilo me arrepiou por inteiro.

Acho que foi apenas um ou dois dias depois disto que o avião dele caiu.

E alguém, alguém que eu nunca vira antes, me deu um álbum de Leadbelly, o disco que tinha a canção “Cottonfields”.

Aquele disco mudou minha vida, naquele local e naquele momento. Me transportou para um mundo que eu jamais teria conhecido.

Era como se tivesse havido uma explosão. Como se eu estivesse andando na escuridão e de repente tudo ao meu redor se iluminasse.

Era como se alguém tivesse imposto as mãos sobre mim. Eu devo ter tocado aquele disco umas cem vezes.

O disco era de um selo de que eu nunca tinha ouvido falar, e dentro havia um folheto com anúncios de outros artistas daquele selo:

Sonny Terry e Brownie McGhee, os New Lost City Ramblers, Jean Ritchie, grupos de cordas.

Eu nunca tinha ouvido falar em nenhum deles. Mas deduzi que se pertenciam ao mesmo selo de Leadbelly eles tinham que ser bons, então eu precisava ouvi-los.

Eu queria saber tudo a respeito deles e tocar aquele tipo de música. Eu ainda amava a música que crescera ouvindo, mas, naquele momento, eu a esqueci.

Nem pensava mais nela. Naquele momento, ela tinha ficado lá para trás.

Eu ainda não tinha ido embora de casa, mas estava impaciente. Queria aprender aquela música, e conhecer as pessoas que a tocavam.

Finalmente saí de casa, e comecei a aprender a tocar aquelas músicas. Eram diferentes das canções de rádio que eu vinha escutando até então.

Eram mais vibrantes, mais cheias de vida. Nas canções do rádio, um artista podia emplacar um sucesso como quem joga dados ou cartas, mas no mundo folk isso não tinha importância.

Tudo ali fazia sucesso. Tudo que era preciso ali era ser bom de verso e saber tocar a melodia. Algumas daquelas canções eram fáceis, outras não.

Eu tinha um jeito natural para as antigas baladas e os country blues, mas todo o resto eu tive que aprender do zero.

Eu tocava para públicos pequenos, às vezes não mais do que quatro ou cinco pessoas numa sala ou numa esquina.

Era preciso ter um repertório amplo, e era preciso saber o quê tocar, e em que momento.

Algumas canções eram intimistas, outras você tinha que gritar para poder ser ouvido.

Ouvindo os antigos artistas folk e cantando suas canções, você aprendia o vernáculo deles. E o internalizava.

E você canta os ragtime blues, as canções de trabalho, os cânticos marítimos da Georgia, as baladas dos montes Apalaches e as canções de vaqueiro.

Você escuta os aspectos mais sutis, e aprende cada detalhe.

Você aprende como são as coisas. Puxar a pistola e guardá-la de novo no bolso.

Abrir caminho no meio do trânsito, falar no escuro. Você aprende que Stagger Lee era um sujeito mau e que Frankie era uma boa menina.

Você aprende que Washington era uma cidade burguesa, e você escuta a voz grave e profunda do profeta João em Patmos e você vê o Titanic afundar num riacho lamacento.

Você fica amigo do rebelde andarilho irlandês e do rebelde rapaz da colônia. Você escuta os tambores surdos e os pífanos que tocam devagar.

Você vê o lúbrico Lord Donald enfiar a faca na esposa, e vê que os corpos de tantos camaradas seus estão envoltos em linho branco.

Eu já estava de posse do vernáculo. Eu sabia a retórica.

Nada daquilo se perdeu: os recursos, as técnicas, os segredos, os mistérios, e eu conhecia também todas as estradas desertas por onde aquela música viajou.

Eu podia fazer aquilo tudo se conectar e se mover com a correnteza dos meus dias.

Quando comecei a escrever minhas próprias canções, o linguajar folk era o único vocabulário que eu conhecia, e foi o que usei.

Mas eu tinha outra coisa. Eu tinha mestres, e sensibilidade, e uma visão do mundo bem informada. Já tinha isso há algum tempo. Aprendi isso na escola fundamental.

Dom Quixote, Ivanhoé, Robinson Crusoe, Uma História de Duas Cidades e todo o resto – as leituras típicas do ensino fundamental, que nos forneciam um modo de encarar a vida,

um entendimento da natureza humana, e um padrão com que comparar as outras coisas.

Eu trazia isso tudo comigo quando comecei a escrever minhas letras. E os temas daqueles livros acabaram desaguando em muitas das minhas canções, conscientemente ou sem intenção.

Eu queria escrever canções diferentes de tudo que já houvesse sido escutado, e esses temas eram fundamentais.

Há livros específicos que permaneceram comigo desde que eu os li na escola, quando garoto, e gostaria falar a respeito de três deles.

Eles são Moby Dick, Nada de Novo na Frente Ocidental e A Odisséia.

Moby Dick é um livro fascinante, um livro cheio de cenas de alta dramaticidade e de diálogo dramático. É um livro que impõe exigências ao leitor.

O enredo é linear.

O misterioso Capitão Ahab, o capitão de um navio chamado Pequod, é um egomaníaco com uma perna de pau, perseguindo sua nêmese, a grande baleia branca Moby Dick, que arrancou sua perna.

E ele a persegue por todo o Atlântico, rodeando a extremidade da África e indo até o Oceano Índico.

Ele persegue a baleia em ambas as faces da Terra. É um objetivo abstrato, nada que seja concreto ou definido.

Ele chama Moby Dick “o Imperador”, e a vê como a encarnação do mal. Ahab tem esposa e filho lá em Nantucket, e fala de vez em quando sobre eles.

A gente pode antever o que vai acabar acontecendo.

A tripulação do navio é formada por homens de diferentes raças, e aquele que primeiro avistar a baleia receberá uma moeda de ouro.

Há uma porção de símbolos do Zodíaco, alegorias religiosas, estereótipos. Ahab encontra outros navios baleeiros, e pressiona os capitães pedindo informação sobre Moby.

“Vocês a viram?”  Há um profeta maluco, Gabriel, em um dos navios, e ele prediz a desgraça final de Ahab.

Ele diz que Moby é a encarnação do deus dos Shakers, e que mexer com ela conduz ao desastre. Diz isso ao capitão Ahab.

Outro capitão de navio, o capitão Boomer, perdeu um braço lutando com Moby Dick. Mas ele suporta isto, e está feliz por ter sobrevivido.

Ele não consegue aceitar a sede de vingança de Ahab.

Esse livro mostra como homens diferentes reagem de maneiras diferentes à mesma experiência.

Há muita coisa do Velho Testamento, de alegorias bíblicas: Gabriel, Raquel, Jeroboão, Bilda, Elias,

Nomes pagãos também: Tashtego, Flask, Daggoo, Fleece, Starbuck, Stubb, Martha’s Vineyard. Os pagãos são adoradores de ídolos.

Alguns adoram pequenas imagens de cera, outros adoram imagens de madeira. Alguns adoram o fogo. Pequod é o nome de uma tribo indígena.

Moby Dick é uma história de aventura marítima. Um dos homens, o narrador, diz: “Chamai-me Ismael”.

Alguém lhe pergunta de onde ele é, e ele diz: “Não está em nenhum mapa. Os lugares de verdade nunca estão”.

Stubb não atribui significado a nada, diz que tudo está predestinado. Ismael tem vivido em navios a vida inteira.

Ele chama os navios de sua Harvard e Yale. Ele se mantém distanciado das pessoas.

Um tufão atinge o Pequod. O capitão Ahab acha que aquilo é um bom agouro. Starbuck pensa que é um mau agouro e pensa em matar Ahab.

Assim que a tempestade passa, um tripulante cai do mastro e se afoga, dando um prenúncio do que está para acontecer.

Um pastor Quaker, um pacifista que é na verdade um voraz homem de negócios, diz a Flask,

“Alguns homens que recebem ferimentos são conduzidos para Deus, outros são conduzidos para a amargura.”

Tudo se mistura ali. Todos os mitos: a Bíblia judaico-cristã, os mitos hindus, as lendas britânicas, São Jorge, Perseu, Hércules – todos são caçadores de baleias.

Mitologia grega, a atividade arrepiante de retalhar uma baleia.

Muitos fatos deste livro, conhecimentos geográficos, sobre óleo de baleia (bom para a coroação dos reis), as famílias nobres da indústria da baleia.

O óleo da baleia é usado para ungir os reis.

A história da baleia, a frenologia, a filosofia clássica, as teorias pseudo-científicas, as justificativas para a discriminação—

Tudo é jogado ali dentro, e nada é sequer um pouco racional.

Gente culta, gente inculta, a busca de ilusões, a busca da morte, a grande baleia branca. Branca como um urso polar, branca como o homem branco, o imperador, a nêmese, a encarnação do mal.

O capitão insano que perdeu a perna anos atrás tentando atacar Moby com uma faca.

Vemos apenas a superfície das coisas. Podemos interpretar o que jaz por baixo dela da maneira que quisermos.

Tripulantes andam pelo convés escutando sereias, e tubarões e abutres seguem o navio. Lendo caveiras e rostos como quem lê um livro.

Aqui está um rosto. Vou pô-lo à sua frente. Leia se puder.

Tashtego diz que morreu e nasceu de novo. Seus dias extra são um dom.

Mas ele não foi salvo por Cristo, ele diz que foi salvo por outro homem, e um não-cristão ainda por cima. Ele parodia a ressurreição.

Quando Starbuck diz a Ahab que ele devia deixar para trás o que aconteceu, o capitão, zangado, retruca: “Não venha me falar de blasfêmia, homem, eu atacaria o sol se ele me insultasse”.

Ahab, também, é um poeta eloquente. Ele diz: “O caminho da minha idéia fixa está provido de trilhos do tamanho da bitola da minha alma”.

Ou esta frase: “Todos os objetos visíveis são máscaras de papel machê”. Frases poéticas boas de citar, insuperáveis.

Finalmente Ahab avista Moby, e os arpões são preparados. Os barcos descem para a água. O arpão de Ahab foi batizado com sangue. Moby ataca o barco de Ahab e o destrói.

No dia seguinte, ele avista Moby de novo. Os barcos descem novamente. Moby ataca o barco de Ahab novamente.

No terceiro dia, mais um barco. Mais alegoria religiosa. Ele se ergueu dos mortos. Moby ataca mais uma vez, chocando-se contra o Pequod e afundando-o.

Ahab se enrola nas cordas do arpão e é jogado para fora do barco, para o sepulcro nas águas.

Ismael sobrevive. Ele fica no mar, flutuando com um ataúde. E isto é tudo. É toda a história.

Este tema, e tudo que ele sugere, acabaria surgindo em várias das minhas canções.

Nada de Novo na Frente Ocidental foi outro livro que me marcou. Nada de Novo na Frente Ocidental é uma história de horror.

Este é um livro onde você perde sua infância, sua fé num mundo que faça sentido, sua preocupação com os indivíduos.

Você está preso num pesadelo. Arrebatado por um redemoinho misterioso de morte e de dor. Você está se defendendo da aniquilação.

Você está sendo varrido do mapa. Houve um tempo em que você era um jovem inocente que sonhava em ser pianista de concerto.

Houve um tempo em que você amava a vida e amava o mundo, e agora você os está reduzindo a pedaços com uma arma.

Dia após dia, os marimbondos o ferroam, e os vermes bebem seu sangue. Você é um animal encurralado. Não se encaixa em lugar nenhum.

A chuva cai, monótona.

Há intermináveis tiroteios, gás venenoso, gás dos nervos, morfina, faixas ardentes de gasolina, a caça febril por comida, a gripe, o tifo, a disenteria.

A vida desmorona ao seu redor, e as balas passam zunindo. Esta é a mais baixa região do inferno.

Lama, arame farpado, trincheiras cheias de ratos, ratos comendo os intestinos de homens mortos, trincheiras cheias de sujeira e excremento.

Alguém grita: “Ei, você aí, fique de pé e lute!”

Quem sabe quanto tempo essa loucura vai demorar? A guerra não conhece limites. Você está sendo aniquilado, e essa sua perna está sangrando demais.

Você matou um homem ontem, e conversou com o corpo dele. Você lhe disse que quando isto tudo terminar, você vai passar o resto da sua vida cuidando da família dele.

Quem ganha alguma coisa com isto? Os líderes e os generais ganham fama, e muitos outros têm lucros financeiros.

Mas é você quem faz o trabalho sujo. Um dos seus camaradas diz: “Espere aí, onde você está indo?” e você responde: “Me deixe em paz, eu volto num minuto”.

E você sai andando por entre o bosque da morte, à procura de um pedaço de salsicha. Você não entende como é que qualquer pessoa na vida civil possa ter algum propósito na vida.

Todas as preocupações deles, os seus desejos – você não consegue compreendê-los.

Mais metralhadoras disparam, mais pedaços de corpos pendem dos arames farpados, mas pedaços de braços e pernas e cabeças onde as borboletas pousam sobre os dentes,

Mais feridas horrendas, o pus brotando dos poros, ferimentos no pulmão, ferimentos grandes demais para um corpo, cadáveres soltando gases, corpos de defuntos produzindo ruídos repugnantes.

A morte está por toda parte. Nada mais é possível. Alguém vai matá-lo e usar seu corpo para praticar tiro ao alvo.

As botas também. São sua coisa mais preciosa. Mas daqui a pouco estarão nos pés de alguém.

Os franceses estão surgindo por entre as árvores. Bastardos impiedosos. Sua munição está acabando. “Não é justo nos atacar de novo tão rápido”, diz você.

Um dos seus colegas está caído na lama, e você quer levá-lo para o hospital de campanha. Alguém diz: “Pode economizar essa viagem.”

“O que quer dizer?”  “ Vire o corpo dele, vai ver o que é”.

Você espera para ouvir as notícias. Não entende por que essa guerra não acabou ainda.

O exército está tão entregue a seus próprios recursos para repor tropas que está recorrendo a meninos, que têm pouca utilidade militar, mas têm que ser convocados de qualquer modo, porque os homens estão acabando.

A doença e a humilhação deixam você de coração partido. Você foi traído pelos seus pais, seus professores, seus ministros, seu próprio governo.

O general que fuma devagar seu charuto traiu você também – transformou você num bandido e num assassino. Se você pudesse, meteria uma bala na cara dele.

O comandante também.

Você fantasia que se tivesse dinheiro, ofereceria uma recompensa para qualquer homem que tirasse a vida dele por qualquer meio.

E se perdesse a vida fazendo isso, o dinheiro iria para seus herdeiros. O coronel, também  - com seu caviar e seu café. É outro.

Passa todo o seu tempo no bordel dos oficiais. Você gostaria de vê-lo morto também. Mais soldados rasos cantando “whack for me daddy-o” e “whiskey in the jars”.  [https://en.wikipedia.org/wiki/Whiskey_in_the_Jar ]


Você mata trinta, e outros trinta se erguem no mesmo lugar. O mau cheiro enche suas narinas.

Você sente desprezo pela velha geração que mandou você para essa loucura, para essa câmara de tortura. À sua volta, seus camaradas estão todos morrendo.

Morrendo de ferimentos abdominais, amputações duplas, fêmures destroçados, e você pensa: “Eu só tenho vinte anos, mas sou capaz de matar qualquer um”.

“Até meu pai, se aparecer aqui”.

Ontem, você quis salvar um cão-mensageiro ferido, e alguém gritou: ”Não seja idiota”.

Um francês está gorgolejando aos seus pés. Você enterrou a baioneta no estômago dele, mas ele ainda continua vivo.

Você sabe que devia acabar o serviço, mas não consegue. É você quem está numa cruz de verdade, e um soldado romano pondo uma esponja com vinagre em sua boca.

Os meses passam. Você recebe uma licença para visitar a família.

Você não se comunica mais com seu pai. Ele diz: “Você seria um covarde se não se alistasse”.

Sua mãe também; quando o acompanha até a porta ela diz: “É melhor ter cuidado com aquelas garotas da França”.

Mais loucura. Você luta durante uma semana ou um mês, e avança dez metros. E na semana seguinte é forçado a recuar.

Toda aquela cultura de mil anos atrás, aquela filosofia, aquela sabedoria – Platão, Aristóteles, Sócrates – o que aconteceu com ela? Ela devia ter evitado isto.

Seus pensamentos se voltam para sua casa. E mais uma vez você é um estudante caminhando entre as árvores. É uma lembrança agradável.

Mais bombas caem à sua volta. Você precisa se controlar agora. Não pode sequer olhar para alguém com medo de algo imprevisível que possa acontecer.

A vala comum. Não há outra possibilidade.

Então você vê as flores brotando, e percebe que a natureza não é afetada por aquilo tudo.

As árvores, as borboletas vermelhas, a beleza frágil das flores, o sol – você vê como a natureza é indiferente àquilo tudo.

Toda a violência e o sofrimento da humanidade. A natureza nem sequer se dá conta.

Você está tão sozinho. Então um estilhaço de obus acerta o lado de sua cabeça e você morre.

Você foi riscado, eliminado. Foi exterminado.

Eu pousei esse livro e o fechei. Nunca quis ler outro romance de guerra depois, e não li.

Charlie Poole, da Carolina do Norte, tem uma canção que tem a ver com isto. Ela se intitula “Você Não Está Falando Comigo”, e a letra diz assim:

“Eu vi um letreiro numa janela quando vinha pela cidade um dia. Venha para o Exército, veja o mundo e o que ele tem para dizer.

“Você vai conhecer belos lugares com uma turma animada, vai encontrar gente interessante, e aprender a matá-la também.

“Ah, você não está falando comigo, não está falando comigo.

“Eu posso ser doido e tudo o mais, mas veja que eu tenho bom senso

“Você não está falando comigo, não está falando comigo.

“Matar com um a arma não parece muito divertido. Você não está falando comigo.”

A Odisséia é um grande livro cujos temas chegaram até as baladas de muitos compositores:

“Indo Para Casa”, “Os Verdes Relvados da Minha Terra”, “Casa na Campina”... e nas minhas canções também.

A Odisséia é a história estranha e aventurosa de um homem adulto tentando voltar para casa depois de lutar numa guerra.

Ele está numa longa viagem para casa, cheia de acidentes e armadilhas.

A maldição dele é vaguear. Ele está sendo sempre levado para o mar, sempre perseguido. Grandes rochedos caem perto do seu barco.

Ele irrita pessoas que não deveria irritar. Na sua tripulação há uma porção de encrenqueiros. Traidores.

Seus homens são transformados em porcos, e depois em homens jovens e bonitos. Ele está sempre tentando resgatar alguém.

Ele é acostumado a viagens, mas desta vez está fazendo paradas demais.

Ele está perdido numa ilha deserta. Encontra cavernas vazias e se esconde nelas. Encontra gigantes que dizem: “Vou comer você por último”.

E ele escapa dos gigantes.

Ele tenta ir para casa, mas está sendo empurrado e retido pelos ventos.

Ventos inquietos, ventos gelados, ventos inimigos. Ele viaja para longe, e depois é empurrado de volta pelo vento.

Ele está sempre recebendo avisos de coisas que estão por vir. Tocando em coisas proibidas. Há dois caminhos para escolher, e ambos são más escolhas. Ambos são incertos.

Num você pode se afogar, no outro pode morrer de fome.

Ele entra no desfiladeiro estreito onde redemoinhos espumejantes o engolem. Encontra monstros de seis cabeças com dentes afiados. Raios caem sobre ele.

Galhos altos de onde ele se joga e se agarra para fugir de um rio furioso.

Deuses e deusas o protegem, mas há outros que querem matá-lo.

Ela muda de identidade. Está exausto. Adormece, e acorda com um som de gargalhada.

Ele conta sua história a alguns estranhos. Esteve fora durante vinte anos.

Ele foi carregado por alguém e largado ali. Botaram drogas no seu vinho. Foi uma estrada muito dura de trilhar.

De muitas maneiras, estas mesmas coisas aconteceram com você.

Também botaram drogas no seu vinho. Você também dividiu a cama com a mulher errada.

Você também foi seduzido pelo encantamento de vozes mágicas, vozes doces com estranhas melodias.

Você também chegou até aqui e foi empurrado de volta.

Você também passou por perigos iminentes.

Você irritou gente que não devia.

Você também andou sem destino por este país. E você também sentiu o sopro daquele vento mau, aquele que não traz nenhuma coisa boa.

E isto ainda não é tudo.

Quando ele volta para casa, as coisas não estão melhores. Canalhas invadiram sua casa e estão tirando proveito da hospitalidade da esposa dele.

E eles são muitos.

E embora ele seja maior que todos, e seja o melhor em tudo – o melhor carpinteiro, o melhor caçador, o melhor conhecedor de animais, o melhor marinheiro –

Sua coragem não vai poder salvá-lo, mas sua esperteza sim.

Todos esses penetras vão pagar por terem profanado o seu palácio.

Ele se disfarça como um mendigo sujo, e um dos criados o derruba na escada a pontapés, com arrogância e estupidez.

A arrogância do criado o revolta, mas ele controla sua raiva. Ele é um contra uma centena, mas todos eles vão tombar, mesmo os mais fortes.

Ele não era ninguém. E quando tudo acaba, quando finalmente ele pode dizer que está em casa, ele senta com sua esposa, e conta a ela as histórias.

Então, o que significa tudo isto?

Eu e muitos outros autores de canções fomos influenciados por estes mesmos temas.

E eles podem significar uma porção de coisas.

Se uma canção emociona você, é isso que importa.

Eu não preciso saber o que uma canção significa. Eu já escrevi todo tipo de coisas em minhas canções.

E não vou me preocupar com isso – com o que aquilo significa.

Quando Melville emprega todas aquelas referências bíblicas do Velho Testamento,

Teorias científicas, doutrinas protestantes,

E todo aquele conhecimento do mar, dos navios e das baleias, tudo numa só história,

Eu também não creio que ele estivesse também preocupado com isso – com o que aquilo significa.

John Donne, também, o padre-poeta que viveu no tempo de Shakespeare, escreveu estas palavras,

“O Sestos e Abydos dos seus seios. Não de dois amantes, mas dois amores, os ninhos”.

Eu também não sei o significado. Mas o som é bonito.

E você vai querer que suas canções soem bem.

Quando Odisseu, na Odisséia, visita o famoso guerreiro Aquiles no mundo subterrâneo,

Aquiles, que trocou uma vida longa, cheia de paz e satisfação, por uma vida curta cheia de honra e de glória,

Diz a Odisseu que foi tudo um engano. “Eu morri, e isso é tudo.

“Não houve honra. Não houve imortalidade.

E diz que se pudesse escolheria voltar e ser escravo de um fazendeiro qualquer na terra do que ser o que é–

“Um rei na terra dos mortos."

Diz que não importa quais fossem suas lutas na vida, elas eram preferíveis a estar ali naquele reino dos mortos.

E é isso que as nossas canções também são. Nossas canções estão vivas, na terra dos vivos.

Mas canções são diferentes da literatura. São feitas para serem cantadas, não para serem lidas.

As palavras nas peças de Shakespeare foram feitas para ser ditas num palco. Assim como as letras das canções são feitas para ser cantadas, não para ser lidas numa página.

E eu espero que alguns de vocês tenham a chance de escutar estas letras de acordo com a intenção com que elas foram feitas:

Em concertos, ou em discos, ou onde quer que as pessoas estejam escutando canções nos dias de hoje.

Volto mais uma vez a Homero, que diz: “Canta em mim, ó Musa, e através de mim conta a história”.


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O arquivo de áudio com o texto em inglês:

https://www.youtube.com/watch?v=3Zf04vnVPfM