domingo, 16 de abril de 2017

4226) "A Lua Vem da Ásia" (16.4.2017)



Uma das formas menos estudadas da literatura fantástica é o que alguns críticos chamam de “romance absurdista”. Muitos inclusive não a consideram parte do fantástico, porque ela não corresponderia à famosa definição de Tzvetan Todorov: “Fantástica é qualquer narrativa que deixe o leitor incerto entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural para os fatos narrados.”  Para mim, essa definição cobre uma parte importante da literatura fantástica – mas não toda. Eu chamo a essa parte “o Fantástico Todoroviano”.

Na literatura absurdista, podem aparecer coisas que pertencem ao sobrenatural: animais que falam, mortos que ressuscitam, criaturas bizarras, rupturas do espaço e do tempo, etc.  Em grande parte dela, no entanto, acontecem apenas fatos desprovidos de lógica ou de explicação, comportamentos insensatos, acontecimentos caóticos, enfim: nenhuma lei da natureza é violentada, apenas as coisas ocorrem de maneira maluca.

A Encyclopedia of Science Fiction (http://www.sf-encyclopedia.com/entry/absurdist_sf) dá a seguinte definição, de Peter Nicholls & John Clute:

A palavra “absurdista” entrou na moda da terminologia literária depois de ser usada consistentemente pelo autor e ensaísta Albert Camus (1913-1960) para descrever ficções situadas em mundos onde parecemos estar à mercê de sistemas incompreensíveis. Esses sistemas podem funcionar como metáforas da mente humana – manifestações externas daquilo que J. G. Ballard descreve quando usa o termo “espaço interior” – ou podem funcionar como representações de um mundo externo cruel e arbitrário, no qual as nossas expectativas de coerência racional, seja da parte de Deus, seja da parte de agências humanas, estão condenadas à frustração, como nas obras de Franz Kafka.

O absurdismo pode derivar na direção do sombrio (a literatura de Kafka e Camus, o teatro de Samuel Beckett, o cinema de David Lynch) mas pode derivar também na direção de narrativas menos angustiantes e com um certo humor. É o caso, para dar somente um exemplo, da literatura de Flann O’Brien:

É o caso também do nosso Campos de Carvalho, autor de quatro livros memoráveis nessa linha: A Lua Vem da Ásia (1956), Vaca de Nariz Sutil (1961), A Chuva Imóvel (1963) e O Púcaro Búlgaro (1964). Os dois do meio são mais sombrios; o primeiro e o último tendem ao absurdismo com humor.

A Lua Vem da Ásia foi reeditado ano passado, em comemoração aos seus 60 anos, pela Ed. Autêntica, de Belo Horizonte. É uma narrativa na primeira pessoa em que o narrador afirma estar num hotel de luxo, mas logo percebemos, quando ele começa a contar sua rotina diária, que está mesmo é num hospício.

A primeira parte do livro se intitula “Vida Sexual dos Perus”, e os capítulos são organizados assim, por ordem de aparecimento: Capítulo Primeiro, Capítulo 18º., Capítulo Doze, (Sem Capítulo), Capítulo sem Sexo, Capítulo 99, Capítulo Vinte, Capítulo I (Novamente), Capítulo, Capítulo CLXXXIV... E por aí vai. Na segunda parte, “Cosmogonia”, os capítulos são indicados pelas letras do alfabeto, na ordem certa até o penúltimo (“N”), sendo que o último se intitula “O. P. Q. R. S. T. U. V. X. Y. Z.”.

Os “hóspedes” do hotel vivem numa certa promiscuidade, levam choques elétricos, recebem medicamentos, têm alimentação precária, estão sempre às turras uns com os outros pelos motivos mais malucos.

Em alguns trechos o narrador põe-se a relatar sua vida pregressa, que cobre décadas e mais décadas e transcorre, numa montanha-russa de fatos extraordinários, em dezenas de países; é o caso dos Capítulos CLXXXIV e 71 da primeira parte, e dos capítulos I e J da segunda, entre outros. Um trecho do primeiro deles dá uma idéia dessa parte memorialística:

Em Cuzco tomei-me de amores por uma rapariga que não sabia uma só palavra de árabe, nem eu tampouco, e pude manter-me dignamente à sua custa durante alguns meses, até que o governo me deportou para a ilha de Sumatra num cargueiro que levava lhamas, algumas buigigangas de grosseira fabricação e meia dúzia de espiões comunistas. Da ilha de Sumatra pulei, não sei como, para a de Madagascar, de onde alcancei a nado a costa de Moçambique, batendo todos os recordes de distância, mas incógnito. (...) Quando dei por mim estava em pleno coração da África Equatorial Francesa, caçando elefantes e traduzindo Virgílio para o alemão, a pedido do padre Kremmer, que não sabia latim. Com a renda obtida de quinze mil elefantes mortos e alguns leopardos empalhados estabeleci-me em Brazzaville com um negócio de falsos diamantes e uma modesta casa de tolerância, servida por três nativas e duas francesas já avançadas em anos e que morreram logo depois. Vítima de injusta perseguição da polícia, mudei-me atabalhoadamente para Leopoldville, que fica logo defronte, e onde, fazendo-me passar por filho bastardo do rei dos belgas, obtive permissão para me instalar com um novo prostíbulo, que se incendiou pouco depois.

E nesse tom ele vai, por páginas e mais páginas.

Martin Esslin, em seu clássico ensaio O Teatro do Absurdo (1961; saiu no Brasil pela Ed. Zahar) situa o espírito desse gênero como o reflexo de uma perda de sentido coletivo da civilização ocidental com a falência da visão do mundo religiosa, que Nietzsche exprimiu no conceito de “Deus está morto” (Assim Falou Zaratustra, 1883). Diz Esslin que a partir dessa época a humanidade começou a penetrar num mundo “privado de um princípio integrador coletivamente aceito, o mundo que se tornou desconjuntado, sem propósito – absurdo”.

Como o ensaio de Esslin é sobre a manifestação teatral desse espírito, ele cita “o aspecto satírico e parodístico do Teatro do Absurdo, sua crítica social, sua ridicularização de uma sociedade mesquinha e inautêntica”.  O mesmo vale para a prosa de ficção, que bebeu em fontes semelhantes: os escritos de Alfred Jarry e Lewis Carroll, a destruição da linguagem promovida pelos Dadaístas, as situações amalucadas vividas pelos comediantes de cinema desde Buster Keaton até os Irmãos Marx, os delírios literários de James Joyce, Guillaume Apollinaire, Lautréamont...

Campos de Carvalho corre nessa mesma raia, com sua sucessão de situações extravagantes, inverossímeis, constrangedoras, cheias de irrisão e de falta de sentido.

Sem falar que é um excelente fazedor de frases, e em cada página saltam trechos hilários e inesquecíveis:

Não há quem não venda a sua própria mãe por três milhões de florins. (p. 82)

A chuva dá de beber aos mortos.  (p. 30)

Tal como um xifópago que de repente se dispusesse a meter uma bala na cabeça sem ao menos consultar seu companheiro adormecido.  (p. 118)

Tive que atravessar às pressas o não sei por que chamado mar Vermelho, que me pareceu tão azul quanto o mar Negro ou o mar Amarelo. (p. 97)

Consegui transpor a nado o estreito de Gibraltar, que não me pareceu tão estreito quanto dizem. (p. 78)

Há instantes em que eu me sinto um chinês perfeito – Chiang O’Lyi, por sinal – e me ponho a rememorar todos os meus antepassados milenários, com rabicho e bigodes em forma de antena, captando o mistério que vem dos subterrâneos do mundo. (p. 150)

Puxa, como passa depressa o tempo, e a gente dentro dele! (p. 142)


Os livros de Campos de Carvalho são livros de exceção em nossa literatura, mas não são livros únicos. Talvez até por sua influência, brotaram títulos igualmente absurdistas como Lugar Público (1965) de José Agrippino de Paula, Necrológio (1972) de Victor Giudice, Os morcegos estão comendo os mamãos maduros (1973) de Gramiro de Matos (Ramirão Ão Ão), Confissões de Ralfo (1975) de Sérgio Sant’Anna, Catatau (1975) de Paulo Leminski, Malthus (1989) de Diogo Mainardi, O Convento das Alarmadas (1978) de Sérgio Martagão Gesteira, Paniedro (1981) de Herio Saboga e certamente outros.

Uma literatura do riso e do desespero, buscando seu leitor:

Nesse livro aparentemente triste, eu me situo na posição de antípoda de todos os seres com os quais vivo esbarrando-me pelas ruas ou mesmo dentro de casa – o que talvez em parte explique meu contínuo peregrinar pelos quatro cantos do mundo, à procura de outro polo no qual certamente houvesse um outro antípoda à minha espera. (p. 169)