domingo, 9 de abril de 2017

4224) Lovecraft, Borges e as paisagens (9.4.2017)




A literatura de terror, ou de horror, é muito variada. Comporta inclusive, como qualquer gênero, obras que não têm nada a ver entre si. Quando a gente pega dois daqueles livros que pertencem ao gênero de uma maneira bem periférica mesmo, fica difícil encontrar uma definição, uma fórmula única, que inclua os dois de maneira satisfatória.

É um gênero que se define pela reação provocada no leitor, e não por uma convenção narrativa. O romance de mistério, por exemplo, se baseia numa convenção narrativa: acontece algo misterioso, e esse mistério será esclarecido no final. Pode ser um crime, um desaparecimento, a descoberta de algo enigmático, etc.  Uma história de mistério continuará a sê-lo se for humorística, aventuresca, assustadora, intelectual, romântica.

Já a história de terror (ou horror) pode conter quaisquer elementos narrativos, desde que a impressão produzida no leitor seja aquela.  Isso gera algumas polêmicas interessantes, como: Pode uma história humorística ser também uma história de terror? Uma história pode provocar medo e riso ao mesmo tempo? Esse debate nunca vai se esgotar.

Os grandes mestres do terror, no entanto, parecem às vezes buscar um efeito que não é propriamente de medo, mas do que a língua inglesa chama de “awe”: o espanto mudo diante de algo que ultrapassa nossa capacidade de suportar, de entender. É uma forma do Inefável (=aquilo que não se consegue exprimir com palavras), mas um Inefável tingido de assombro, de pequenez impotente. Seria, num certo sentido, aquilo que em Estética se chama “o Sublime”.

“Sublime” é uma palavra muito desvalorizada e distorcida, porque na linguagem cotidiana dizemos “sublime mesmo é o amor de uma mãe pelos filhinhos”, “a visão sublime de um roseiral coberto pelo orvalho do amanhecer”, esse tipo de coisa.  Sublime não é nada disso. 

O Sublime é algo que ultrapassa nossa capacidade de entender e de suportar. Em sua Iniciação à Estética (José Olympio, 2005; 1972) Ariano Suassuna comenta a visão de Emmanuel Kant a respeito do Sublime:

Temos, então, do que foi visto até aqui, que o Sublime resulta da inadequação das idéias do contemplador a um objeto informe e desproporcionado da Natureza, objeto que se apresenta ao espírito contra o interesse dos sentidos e causando uma sensação misturada de prazer e de terror.  (p. 177)

Comentando a visão de Hegel sobre esse tema, diz Ariano:

(T)ambém para estetas mais modernos, essa noção do terror, causado por uma simples meditação poética sobre o homem diante do mundo e de seu destino marcado pela morte, é característica essencial do Sublime. (p. 183)

Isso reafirma a idéia de que a poesia reflexiva, ou filosófica, é, de todos os tipos de Arte, o mais apto a causar, no homem, esse prazer intelectual misturado de terror que é o Sublime. (p. 184)

Não vou meter minha colher na Grande Arte, mas na literatura popular, que é meu domínio, temos o equivalente disso nas obras de “terror cósmico” que exprimem o medo e o deslumbramento impotente do ser humano diante de um Universo incompreensível e pouco hospitaleiro.

Ninguém exprimiu isso tão bem quanto H. P. Lovecraft. Mas Lovecraft não era apenas um escritor de histórias sobre monstros ameaçadores. Descrevendo as paisagens da Nova Inglaterra onde passou praticamente a vida inteira, ele diz, numa carta de 1927:

Às vezes eu tropeço acidentalmente em raras combinações de encostas, ruas que fazem curvas, tetos & empenas & chaminés & detalhes secundários de verde & de paisagem ao fundo, os quais na mágica de um fim de tarde assumem uma majestade mística & um significado exótico que está além do poder de descrição das palavras... Minha vida inteira se dedica a capturar algum fragmento dessa beleza oculta & inacessível; essa beleza toda constituída de sonho, e que no entanto eu sinto ter conhecido muito de perto & nela me deleitado durante éons sem fim antes do meu nascimento e do nascimento deste mundo ou de qualquer outro.

Note-se que o terror e o medo estão ausentes dessa citação, que ainda assim é lovecraftiana até a medula. Lovecraft tinha, acima de tudo, esse “sentimento do mundo”, essa janela mental aberta para o Sublime.

Era uma janela também, aberta na mente de Jorge Luís Borges, autor desta outra descrição muito citada:

A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo nos disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão a ponto de nos dizer algo; essa iminência de uma revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético. (“A muralha e os livros”, 1950, em Outras Inquisições)

São dois escritores de formações muito diferentes, mas com traços pessoais em comum, exprimindo essa mesma sensação de saber ou perceber algo, ao contemplar o mundo físico, que as palavras não conseguem exprimir.

A comparação entre essas duas citações é feita por um seguidor contemporâneo de ambos, o contista Thomas Ligotti, que justapõe as palavras de Borges e as de Lovecraft para comentar um conto deste último, “The Music of Erich Zann” (no ensaio “The Dark Beauty of Unheard-of Horrors”, em The Thomas Ligotti Reader, Wildside Press, 2003).

Usar a música para se referir ao inexprimível-por-palavras é uma saída elegante para um escritor. Falar de música na literatura é como falar das partículas subatômicas. Nunca podemos descrever de fato o que são e o que fazem, apenas as sensações indiretas que produzem em nós. 

E onde entra o Horror em tudo isso? 

Comparando essas duas citações percebemos que ambas exprimem um sentimento muito parecido. Comparando a obra de Lovecraft com a de Borges, vemos que o Horror aparece na primeira, mas não na segunda.

Eu diria que o Horror nasce da conjunção entre o sentimento do Sublime descrito acima e uma ativa percepção da presença do Mal no Universo, algo que a obra de Lovecraft reitera sem parar. Poucos contos de Borges se destinam a reproduzir essa sensação, e o mais notável é justamente seu assumido pastiche lovecraftiano, “There Are More Things” (em O Livro de Areia).

Borges era um sujeito em paz com o Universo. Lovecraft não. Lovecraft tinha a sensação (que é pessoal, intransferível, como toda visão estética) de que o Universo era basicamente um lugar frio, indiferente, capaz de esmagar seres insignificantes como nós. Para ele, existe um Mal atuante e poderoso em nosso Universo, mesmo que ele desdenhe ou ignore nossa presença. Esse sentimento é estranho a Borges.

Lovecraft experimentava aquela sensação que o crítico John Clute chama de “wrongness”, aquela sensação que Carlos Drummond exprimia, em “Campo de Flores” (em Claro Enigma, 1951):

(...) e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.

Lovecraft era provavelmente um indivíduo com a mesma percepção do Sublime que a gente encontra em Borges e em Drummond, mas por questões pessoais, emotivas, biográficas, questões ligadas a sua formação como leitor, ele percebia o Cosmos como algo fundamentalmente errado, tormentoso, indiferentemente mau. E é essa combinação única de percepções que faz com que todo grande autor produza uma obra única, pessoal e intransferível.