terça-feira, 7 de março de 2017

4214) Canções de feira (7.3.2017)




(ilustração: Feira de Campina, de Irene Medeiros) 

São aberturas-de-canção tão parecidas que mesmo vindo de lugares tão distantes e vozes tão diferentes não tinha como não perceber a reiteração de um motif, de uma daquelas maneiras-de-dizer ou “gestos verbais” cristalizados por milênios de uso.

Bob Dylan cantava, em “Girl From the North Country”:

If you’re traveling to the North country fair
Where the wind hits heavy on the border line;
Remember me to one who lives there.
She once was a true love of mine.

Dylan com Johnny Cash (1969):

Eu ouvia essa canção do álbum Nashville Skyline (1969), onde a voz de Dylan fazia dueto com o barítono imponente de John Cash, mas Dylan já a havia gravado num álbum anterior, The Freewheelin’ Bob Dylan (1963).

Dylan solo (1963?):

Eu sempre traduzia essa primeira linha assim: “Se você está viajando para a feira do país do Norte...”. Depois me ocorreu que também pode ser: “Se você está viajando para o belo país do Norte...”, com “fair” sendo usado como em My Fair Lady, e posposto ao substantivo, ao estilo clássico.

Minha leitura estava contaminada, certamente, pela canção Scarborough Fair, balada tradicional adaptada por Simon e Garfunkel em 1966, e grande sucesso da época:

Are you going to Scarborough Fair
(parsley, sage, rosemary and thyme)?
Remember me to one who lives there;
She once was a true love of mine.


(Digressão: Essa repetição literal nos versos 3 e 4 não é plágio É o resíduo íntegro de linhas que passam intactas de geração em geração de poetas, tal como ocorre em nosso Romanceiro Ibérico, onde às vezes é possível rastrear um único verso (uma descrição, comparação, declaração de amor) que pula de romance em romance, de poema em poema, ao longo dos séculos e dos países.)

O ponto intressante aí é que na canção de Simon & Garfunkel existe, sim, a menção clara de que o poeta se dirige a alguém que está indo para uma feira, e lhe faz um pedido:

Você está Indo para a Feira de Scarborough
(salsa, salva, alecrim e tomilho)?
Dê lembranças minhas a alguém que mora ali;
ela já foi um grande amor meu .

Essa segunda linha indica justamente as ervas e temperos que se espera comprar nessa feira; é como se por aqui a gente dissesse: “coentro, cebolinha, pimenta-do-reino e cominho”.

Pode me chamar de abestado, mas eu marejei os olhos quando em 1976 me bateu nas mãos o álbum Nas barrancas do Rio Gavião, primeiro disco de Elomar, e eu me deparei pela primeira vez com este clássico, “O Pedido”:

Já que tu vai lá pra feira,
traga de lá para mim
água da fulô que cheira
um novelo e um carrim...


São milênios de vida rural em que a feira é o grande atrator dos produtos, dos projetos, das esperanças, das curiosidades de milhões de pessoas que vivem no semi-isolamento dos pequenos sítios e pequenos povoados. A gente tem a mania de dizer: “Nordestino não pode ouvir alguém falar que vai pra uma cidade grande, faz logo uma encomenda.” Não somos somente nós; aposto que no Cambodja, na Armênia, em Honduras  e na Calábria não é muito diferente.

E pouco me importa se a Elomar não é muito simpática a música popular dos Estados Unidos. As coisas que Bob Dylan e Elomar cantam já estavam sendo cantadas antes mesmo de Colombo descobrir a América.

A “ida para a feira” é uma mini-migração recorrente na memória das sociedades rurais; a feira ocorre sempre num lugarejo maior do que o lugar de origem dos feirantes. É lá que acontecem as coisas:

Se não chover, amanhã vou passear;
comprar farinha lá na feira do Pilar...

Na canção de Armando Nunes e J. Portella, “Moça de Feira” (1957), Luiz Gonzaga conta a história de uma velha sabida lá do Pilar, que bota a filha, bem bonitinha, pra vender farinha aos feirantes A moça é tão bonita que a mãe engana com facilidade os matutos, hipnotizados por ela:

Os olhos dela tem veneno da serpente
e é mais quente do que o sol de Quixadá...
Farinha crua, tá azeda, tá mofada,
mas os caba não vê nada; nem o troco quer contar.



O orgulho pela feira imbatível, onde “não falta nada”, bateu no teto com o clássico de Onildo Almeida, outra gravação de Luiz Gonzaga, “Feira de Caruaru” (1957):

Na feira de Caruaru tem tudo pra gente ver;
de tudo que há no mundo nela tem pra vender...



Inspiração fundamental para outros clássicos, outras “batidas no teto” como a “Feira de Mangaio” (1977) de Sivuca e Glorinha Gadelha:

Fumo de rolo, arreio de cangalha
eu tenho pra vender, quem quer comprar?
Bolo de milho, broa e cocada
eu tenho pra vender, quem quer comprar?



A ida para a feira é o grande momento na vida dessas populações. A poesia de cordel e a cantoria de viola não existiriam sem essas idas e vindas, esses fluxos constantes que convergem para a feira carregados de produtos e regressam, horas ou dias depois, carregados de aquisições.

Johan Huizinga, em Homo Ludens (1938), lembra o papel das feiras como espaço de mistura de comunidades, tribos, clãs, que se enfrentam poeticamente, cada um louvando sua região, seus produtos, a beleza de suas mulheres, a coragem dos seus guerreiros, a esperteza dos seus mentirosos. Torneios poéticos que já eram antigos na Ásia e na África antes de começarem a ressurgir na América.

E para quem quiser ter uma idéia do ambiente humano desses mercados, nada melhor do que Dedé Monteiro recitando seu clássico “Depois que a Feira Termina”: