terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

4212) Frases com jeito de gente (28.2.2017)




Engana-se quem pensa que o cuidado com a textura sonora das palavras e das frases é exclusivo da poesia, e que para escrever prosa basta prestar atenção às idéias. 

Uma frase descuidada, mal escrita, parece às vezes com uma imagem tremida, fora de foco. Uma coisa que não ficou muito clara. O leitor pode até ver que se trata de uma rua, um homem montado numa bicicleta, um carro estacionado junto ao meio-fio, mas tem que fazer um esforço para chegar a essa conclusão. Ele sente que quem fez aquilo ficou devendo.

(Tudo que se comente nessa área tende a dois extremos opostos: efeito, quando é proposital e o autor sabe o que está fazendo; e defeito, quando é involuntário, porque o autor tentou algo e não conseguiu. "Foto fora de foco" e "frase fora de foco" também estão submetidas a esta lei.)

Ler um longo texto mal escrito é como dançar com uma pessoa que dança mal. Na leitura, o autor guia e o leitor é guiado. O leitor pede para ser bem guiado, e o autor o guia de forma desajeitada, sacolejante, descontínua, cheia de solavancos, de movimentos desnecessários, de esforços redundantes.

Quem escreve precisa dar atenção ao seu ritmo das frases. À combinação de sons das vogais e das consoantes. À terminação das palavras, para não gerar rimas bobas. Ao uso dos sinais de pontuação, que servem como uma espécie de partitura musical da prosa, dirigindo suas pausas e suas inflexões.

Um especial cuidado, por parte do escritor, deve ser tomado – pressupondo-se naturalmente que o dito escritor seja alguém preocupado com a qualidade literária de que seu texto será impregnado – para com a organização interna das frases e dos parágrafos, fazendo com que o dito texto torne-se, como não poderia deixar de ser, literariamente bem qualificado.

O parágrafo acima é um exemplo de como não escrever. Uma pequena antologia de erros e de inconveniências.  Ordem inversa das frases (voz passiva) quando a ordem direta facilitaria a compreensão sem empobrecer a forma.  Repetição irritante de sons no final das palavras (“...ado”).  Repetição supérflua de um termo banal que por si já é desnecessário (“o dito”).  Enchimento de linguiça com o uso de uma expressão (“como não poderia deixar de ser”) que nada significa e nada contribui, tipo da frasezinha besta que SEMPRE pode ser extirpada de um texto sem deixar outro sinal a não ser um respiro de alívio.  E outras coisas.

Não estou nem falando em Arte Literária. Falo de textos como a correspondência comercial, por exemplo – onde é necessário escrever bem, com clareza, para a pessoa do outro lado saber que não está lidando com um incompetente.

Não causa boa impressão a ninguém receber uma carta cujo redator se exprime assim: “Comunicamos a Vossa Senhoria que enviamos a sua mercadoria, que deverá chegar em alguns dias.  Solicitamos que a fatura seja paga em dia, conforme acertado com a nossa Companhia”.

A rima involuntária é um dos piores cacoetes que um redator de ofícios (nem falo de um literato) pode exibir.  A gente vê, com frequência, textos com essa alta incidência de repetições que nos fazem perder a paciência.  E o mais grave é que, em publicações menos formais (uma coluna de jornal, por exemplo) o redator que comete essa calamidade geralmente coroa a obra registrando bem satisfeito, entre parênteses: “Ih, rimou!”. 

Rima involuntária é um dos erros de redação mais grotescos que há. Se você vir que o cometeu, não diga: “ih, que bonitinho, cometi um erro!”. APAGUE, e escreva de um jeito certo. O leitor agradece.  

Para mim, que além de escrever também trabalho como crítico e como editor, “ih, rimou” é sinal definitivo de desleixo ou amadorismo. Não importa quem o assine. Pode ser Machado de Assis.

Diz-se que a gente só relê uma frase quando ela é muito boa ou muito ruim.  Uma boa frase pode precisar ser lida duas vezes para ser compreendida; mas um princípio básico da experiência estética diz que todo esforço extra do leitor deve sempre ser recompensado.  

Quando mais fundo está enterrado o tesouro, mais valioso tem que ser seu conteúdo.  Nenhum leitor gosta de reler uma frase duas ou três vezes apenas para, ao entendê-la, constatar que ela diz um clichê, uma bobagem. Que todo aquele esforço de dedução não acrescentou nada à leitura.

Uma frase mal feita geralmente precisa ser relida porque o autor falou, falou e não conseguiu fazer-se entender.  Às vezes o leitor, com um pouco de boa vontade, considera que o autor quis dizer X ou Y, e passa adiante.  Mas o leitor registra subconscientemente toda vez que faz um empréstimo de boa vontade.  Se isso passa a se repetir muito, ele deixa de sentir firmeza no autor.

Um dos grandes defeitos de alguns ensaios acadêmicos ou teses universitárias é o excesso de jargão técnico e de termos abstratos.  O texto não flui, porque cada nova palavra que é lida obriga o leitor a fazer uma pausa para estabelecer o significado dela e conectá-la com as que foram lidas antes. É como o trânsito numa cancela, numa barreira. Avança, e para. Avança, e para de novo. Não flui.

Claro que um texto especializado precisa muitas vezes recorrer a conceitos técnicos e raciocínios complexos, mas quando se publica um livro dirigido para o público em geral é preciso simplificar, sem empobrecer. Como? Não sei. Todo texto é um cobertor-curto.  Algo sempre vai ficar de fora. 

Se o propósito do texto é apresentar e discutir idéias, o autor deve estar preparado para expor essas idéias de diferentes maneiras.  Se uma idéia já é complexa por si só, maior ainda a necessidade de um estilo simples para exprimi-la.  Sem extravagância vocabular, sem labirintos de sintaxe, sem excesso de adjetivos, sem exibicionismo de estilo. Enfeites que só fazem desnortear ainda mais o leitor.

Pensar com clareza ajuda a escrever com clareza.  Muitos redatores (ensaístas, ficcionistas, jornalistas, etc.) começam a escrever sem terem parado antes para organizar as idéias e planejar o que vão dizer.  Começam a digitar palavras a esmo, geralmente algo que nada diz (“Dentro do complexo quadro cultural por que passa o mundo de hoje, algumas tendências mais nítidas podem ser observadas, de tal forma que...”) na esperança de fazer o texto “pegar no tranco”.  Às vezes dá certo, mas em geral não. 



(Uma outra versão deste texto foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento, São Paulo, # 66, abril de 2011).