quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

4205) As máscaras e os esqueletos de James Ensor (1.2.2017)




Um dos melhores investimentos da minha adolescência foi a coleção em fascículos Gênios da Pintura, que eu rachava com minha irmã Clotilde.  Eram álbuns fininhos (cerca de 30 páginas, acho), mas com tamanho grande, papel bom, e boa reprodução de quadros dos mestres. Os sebos estão cheios deles hoje em dia.

Fiquei conhecendo melhor alguns artistas que eu já sabia quem eram, como Leonardo da Vinci e Van Gogh; mas o melhor de coleções baratas, acho, é que elas nos dão a chance de investir no desconhecido.

É como livro em sebo. Às vezes eu estou numa livraria chique e vejo um livro de capa estranha, título esquisito, de autor desconhecido. Folheio, leio algo que me chama a atenção... mas o livro custa 70 reais. Adeus, livro!  Se está num sebo, custa 10. Eu levo. Pago pra ver.

Paguei pra ver um fascículo de um tal de James Ensor que durante alguns meses vertiginosos tornou-se meu pintor preferido (foi destronado quando chegou o fascículo de Max Ernst). Ensor era um belga que pintava monstros, máscaras, criaturas bizarras. Seus quadros prefiguram (para mim) o teatro de Samuel Beckett, o cinema de David Lynch e os contos de Lília Pereira da Silva. São situações enigmáticas, num clima indefinível e ameaçador, vividas por criaturas grotescas que se comportam de modo absurdo. Tem coisa melhor no mundo?!

Aliás, a Bélgica tem uma concepção do Fantástico muito peculiar, embora fique, injustamente, meio à sombra do Fantástico francês. As pinturas de Paul Delvaux, os filmes de seu filho André Delvaux, os contos de Jean Ray (autor de “Malpertuis”), a ficção científica de J. H. Rosny Ainé, todos compartilham um clima semelhante. Uma boa porta de entrada em português é a maciça antologia Entre o real e o surreal: antologia da literatura belga de língua francesa, ed. Marc Quaghebeur, Zilá Bernd, Leonor Lourenço de Abreu e Robert Ponge (Porto Alegre: Tomo Editorial, 2009).



O forte de Ensor (1860-1949) são seus quadros a óleo, mas era um artista versátil. Anos atrás vi na FAAP (São Paulo) uma exposição riquíssima com suas gravuras e águas-fortes, uma vertente completamente diversa, mas também roçando vez por outra no Fantástico.

“Esqueletos disputando um enforcado” (1891). Faz meio século que eu penso nesse quadro. Quem são, o quê são, essas criaturas, esqueletos vivos trajados com roupas de mulheres velhas, brandindo vassouras e guarda-chuvas, numa altercação violenta e trôpega, aprontando o maior barraco numa sala de portas escancaradas enquanto a vizinhança, igualmente carnavalesca e monstruosa, se deleita espreitando pela porta?



São talvez os mesmos que se reúnem em torno de um fogareiro em “Esqueletos se aquecendo”, ossadas vestidas com roupas extravagantes e cômicas que se reúnem em torno de um aquecedor. Um deles usa cartola e empunha um violino, como um comediante de music-hall. Outro (uma mulher?) tem um xale azul nos ombros e estende as mãos, para aquecê-las. Há outro esqueleto caído no chão, tendo ao lado uma paleta de pintor; ou talvez não seja um esqueleto completo, apenas a caveira, um capote comprido e as botas, como se o frio lhe tivesse derretido os ossos.



Esqueletos e máscaras são dois dos temas preferidos dele. As máscaras são sempre toscas, meio ameaçadoras, meio ridículas, como aqueles figurantes de filmes de Fellini ou de Pasolini em cuja fisionomia só acreditamos porque sabemos que não são atores caracterizados, são gente que é assim mesmo, e foram pegados na rua para nos assombrar por alguns segundos e sumir para sempre.



“O assombro da máscara Wouse” (1889) mostra uma mulher rubicunda e porcina entrando num aposento onde se vê, mais uma vez, uma caveira caída ao chão no meio de roupas vazias. “As máscaras escandalizadas” (1883) mostra um quartinho de pensão barata bem dostoievskiana. Um homem vestido e mascarado está sentado a uma mesinha, tendo uma garrafa à frente; a porta se abre e entra uma velha mascarada, empunhando um porrete. Escrevi aos 18 anos um continho surrealista em que batizei esses personagens de Tuunc e Géi-éi.



Seu painel mais famoso deve ser “A entrada de Cristo em Bruxelas” (1889) onde ele mostra Cristo em seu burrinho cercado por uma multidão de militares, autoridades, políticos, burgueses, fanfarras, bandeiras.



De onde vem isso?  Não sei.  Talvez Umberto Eco, em sua Histórioa da Feiura, tenha alguma coisa a nos dizer. A pintura de Ensor satisfaz talvez “essa necessidade do horroroso” que Augusto dos Anjos registrou tão bem; se este não fosse um poderoso impulso do inconsciente coletivo não teríamos as animações de Jan Svankmajer ou de Chris Cunningham, não teríamos o cinema de Luis Buñuel, não teríamos os painéis de Hieronymus Bosch, não teríamos os contos de Kafka nem os Edgar Poe, não teríamos o surrealismo francês ou o expressionismo alemão.


Ao contrário de muito do “horroroso contemporâneo”, no entanto, a pintura de Ensor não vem carregada de violência nem de sadismo. Seu horror tem algo de circo e de comédia; é um horror caquético e balbuciante, que num momento nos dá pena, em outro nos dá repulsa, e mais adiante provoca uma gargalhada. É uma paleta híbrida da experiência humana que me ajudou muito a entender desde cedo a mente alheia, as emoções alheias, a mesquinhez alheia, a ratonice alheia – e as minhas próprias. E, apesar dessa extensa lista de comparações enumeradas mais acima, é uma experiência que até hoje só encontrei nas máscaras e nos esqueletos de Ensor.

"Auto Retrato com Máscaras", 1899: