segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

4200) Flash Fiction (16.1.2017)




Os textos curtíssimos de ficção, dos quais falo aqui de vez em quando, estão para a prosa narrativa mais ou menos como o cartum está para a história em quadrinhos (HQ).

O cartum é algo que a gente olha, lê em alguns segundos, e recebe o impacto – pá!... – de uma idéia, que em geral vem sintetizada em uma imagem e uma ou duas frases (às vezes só a imagem mesmo).

Dizem os teóricos e praticantes da ficção curtíssima que ela serve como equivalente verbal disto.

Seriam as famosas “histórias em 6 palavras”: o exemplo famoso é atribuído a Hemingway: “Vende-se. Sapatinhos de bebê. Nunca usados.

Ou as “histórias em duas frases”. Gosto desta, que achei em inglês por aí, assinada com nickname: “Dia 312. A Internet ainda não está funcionando.” – fluffyponyza.

Ou as “histórias com 100 caracteres”: “Quando Gustavo C. acordou de sonhos intranquilos, estava metamorfoseado num livro escrito em húngaro.”, de Gustavo Melo Czekster.

Em inglês usa-se muito o Drabble, que são historietas de exatamente 100 palavras (não contando o título). Exemplos aqui:



Tudo isto, para mim, equivale a um cartum. Pá! – e o efeito acontece. Acho que a principal crítica que pode ser feita a isto, em termos de ficção em prosa, é que a ficção geralmente busca produzir uma impressão de passagem de tempo, de mudança, de transformação psicológica. E essas ficções curtíssimas proporcionam apenas a mais rápida e superficial das mudanças, que é a surpresa.

Em tese, qualquer história, com o mínimo de duas palavras, pode indicar permanência + mudança, identidade + alteridade, espaço + tempo. Mesmo a mais curta. “Eu morri” – está tudo aí.

Tem gente que pergunta: “Mas então o romance vai deixar de existir?! Vamos ser proibidos de escrever livros de 200 ou 300 páginas?!”  Não, colega. Ninguém vai proibir nem aposentar coisa nenhuma. Cada um faz o que lhe der na telha, conforme a altura de sua escada. Fazer microficções desse tipo é apenas um exercício que agrada a alguns porque parece aquelas esculturas de santos feitas num palito de fósforo, ou os caras que conseguem escrever o Pai Nosso numa cabeça de alfinete.

Quando comcei a escrever no “Jornal da Paraíba” em 2003, minha coluna tinha tamanho fixo entre 2.900 e 3.000 caracteres. Amigos perguntavam por que eu não publicava um conto de vez em quando, e eu dizia que era impossível escrever um conto que prestasse num tamanho tão pequeno. E o fato é que, olhando meus registros, vejo que só comecei a tentar fazer isso depois de mais de 800 colunas publicadas.

Depois, em 2011, o limite de espaço no jornal caiu para 2600 / 2800 caracteres com espaços. A esta altura eu já tinha “pegado o cacoete” e estava produzindo pequenos contos curtos que, sem serem textos extraordinários, eram compactos, precisos, tinham começo-meio-fim, e me deixavam satisfeito, porque sempre fui de escrever muito. Se eu me pegasse com dois ou três personagens conversando numa mesa, então, não tinha papel que chegasse.

Vários desses contos estão em Histórias Para Lembrar Dormindo (Casa da Palavra, 2013). Algum desses meus contos é uma obra prima? Não, e nenhum deles precisa ser. São exercícios. Obra-prima é algo que acontece como resultado do nosso trabalho, mas independente de nossa intenção. Resulta de uma mistura misteriosa entre Inevitabilidade e Acaso.

Sentar no computador com a intenção de produzir uma obra-prima é como ir para a cama com a esposa com a intenção de produzir um filho bonito. Não é assim que essas coisas acontecem.

A “flash fiction”, como se chama por aí, é uma boa escola para quem pertence ao time dos fluentes, dos caudalosos, dos escrevedores velozes e compulsivos.

É neste sentido que oficinas literárias podem ser muito úteis inclusive para quem já escreve bem, para quem já publicou, ganhou prêmios, o escambau. Escritores assim alcançam uma certa medida de sucesso pelas qualidades que de fato existem nas suas obras, mas têm defeitos (esse de escrever demais, no presente caso) que a médio prazo começam a cansar o leitor.

Já vi oficinas de roteiro de cinema em que se cobrava dos alunos: conte sua história em uma frase, depois em um parágrafo de cinco linhas, depois em uma lauda, depois em dez laudas. Claro que uma tarefa assim nunca é feita em sequência. O cara vai botando a história no papel e vai percebendo os detalhes que pertencem a cada um desses estágios.

Praticando essa forma, o escritor, se chegar a dominá-la em certa medida, percebe a força dos efeitos narrativos na prosa muito curta, onde cada palavra pesa, onde se diz “o casarão” sem poder descrever o telhado, as cornijas, as janelas, as balaustradas, o pórtico, o muro coberto de hera...

A grande maioria desses textos curtos não tem muita narrativa, no sentido de contar uma historinha completa com começo, meio e fim: tem mais de reflexão abstrata ou de descrição concreta de uma cenazinha do cotidiano.

Não importa, a não ser que o autor queira se tornar um mestre nesse estilo. Para quem o utiliza como um meio, apenas, pode ajudar muito. Raymond Chandler escrevia seus romances usando folhas de papel cortadas ao meio. Cada fragmento de cena específico tinha de caber ali. Cada meia-folha daquelas era reescrita várias vezes. A existência de um limite nos obriga a valorizar tudo que poderá caber lá dentro. A extensão é uma “contrainte”, uma restrição voluntariamente auto-aplicada e fielmente seguida.