sábado, 30 de setembro de 2017

4273) Ariano Suassuna e o cinema (30.9.2017)




(The Ape, 1940)

Quando Ariano Suassuna era menino, morou durante alguns meses em Campina Grande. A mãe dele, viúva, teve que passar um tempo lá para ajudar uma prima que estava doente, algo desse tipo. E lá vai Ariano, um dos filhos mais novos, morar com ela, e estudar no Colégio Alfredo Dantas, que era do Tenente Alfredo, um parente deles pelo lado materno.


(antiga fachada do Colégio Alfredo Dantas)

Isso foi logo após a inauguração do Cine Capitólio, que se deu em 1934, com o filme Cavadoras de Ouro  (“The Gold Diggers”), um dos títulos de uma série de musicais da década de 1930. Acho que era esse o filme que Ariano comentava ter visto:

– Era um filme besta danado, uma porção de mulheres abrindo caixas de chapéus e experimentando os chapéus, ô negócio mais sem graça!


(Cavadoras de Ouro)

A história mais interessante, porém, era a que ele contava de quando uma das suas tias de Campina o levou para ver um filme de terror, que eu depois identifiquei como sendo The Ape (1940), com Boris Karloff. Segundo Ariano, era a história de um cientista louco que se vestia numa pele de gorila e saía de noite pela cidade, cometendo crimes.

Acontece que a tia de Ariano era uma senhora pouco acostumada ao cinema e ia só para fazer gosto ao sobrinho-visitante. Ela tinha um raciocínio – digamos – um pouco lento para acompanhar a história, e de vez em quando fazia comentários ou perguntas que provocavam o riso nas pessoas das cadeiras próximas, e Ariano, menino, morria de vergonha, ficando com vontade de se enfiar embaixo dos assentos.


(The Ape, 1940)

Perto do fim do filme, o cientista, disfarçado de gorila, teve a luta final contra a polícia, ou algo assim, foi alvejado e caiu morto. E nesse momento acontece a clássica cena da re-transformação (comum em filmes de lobisomens e em histórias como “O homem invisível”, “O médico e o monstro”, etc.), quando após a morte o monstro revela sua identidade humana.

Os policiais examinaram o gorila caído e, rasgando a roupa de pele, viram Boris Karloff lá dentro. Um silêncio enorme pairou no Cine Capitólio e no meio do silêncio a voz excitada da tia de Ariano, que enfim entendera a história:

– Eita, Ariano!  Entendi!  O urso tinha comido o doutor!

O cinema veio abaixo e Ariano quis desaparecer.


(Vida e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, Ferdinand Zecca, 1905)

Essa história me lembra outra, que se contava lá em casa. Antigamente, durante a Semana Santa era costume dos cinemas exibir uma versão bem antiga do filme A Paixão de Cristo: um filme mudo, sempre em cópia bem estragada, com aquele movimento aceleradozinho. E o pessoal católico ia assistir todos os anos o mesmíssimo filme.

(Que ainda não sei se era o filme de Ferdinand Zecca de 1905 ou o de Cecil B. De Mille de 1927).

Aí... Hollywood produz O Rei dos Reis (1961), um filme em Technicolor, de Nicholas Ray, com Jeffrey Hunter – lourinho, bonitinho, de olhos azuis – no papel de Cristo.

Uma beata que morava nas redondezas foi ao cinema, como ia todos os anos, e voltou para casa pegando ar.

– Isso é um desaforo!  A gente vai no cinema pra ver a paixão de Nosso Senhor e eles botam um filme colorido com um artista americano!!!

– Mas tia, e que filme a senhora queria ver?

– Eu queria aquele outro que tem todo ano, o antigo, o que foi feito com Jesus Cristo de verdade!

Ela pensava que A Paixão de Cristo era um documentário filmado no ano 33 da Era Cristã.

Essas histórias são engraçadas por que mostram o caráter alucinatório que o cinema sempre teve para as populações mais simples, principalmente em suas primeiras décadas de existência. Os espectadores estavam diante de várias coisas ao mesmo tempo: uma cerimônia coletiva (centenas de pessoas) numa sala escura, contemplando uma coisa luminosa, impressionante e gigantesca – e que não entendiam por completo.

E mais do que isso: sendo forçadas a fazer sentido de uma sucessão de imagens cuja gramática e sintaxe elas levavam talvez anos para aprender.

Me lembro de ter lido um comentário de um jornalista, nas primeiras décadas do século 20, dizendo mais ou menos assim: “O filme é incompreensível. Vemos um casal sentado a uma mesa, conversando, de repente aparece a cabeça de um gigante, e em seguida vemos o casal de novo, bem tranquilo, aparentemente sem perceber nada.”  O gigante era o rosto do ator em close-up.

Isso era ainda mais notável quando sabemos que a imagem cinematográfica, em suas primeiras décadas, era muito mais sujeita do que hoje a desfoques, trepidações, manchas, má projeção, películas arranhadas ou mofadas, telas de má qualidade.

Focalizar aquelas imagens, identificá-las, fazer a conexão entre elas... isso era um trabalho insano, para mentes de garotos ou mesmo de adultos cujos cérebros jamais tinham sido submetidos a uma tal montanha-russa imagética. (Comparados ao cinema, o teatro e a ópera eram um oásis de continuidade e foco.)

Em As Palavras (“Les Mots”, 1963), Jean-Paul Sartre lembra com carinho essa fase psicodélica, alucinógena de sua infância nos cinemas parisienses repletos (tradução de J. Guinsburg):

Eu raspava minhas costas em joelhos, sentava-me num assento rangente, minha mãe introduzia uma coberta dobrada sob minhas nádegas a fim de me alçar; por fim eu olhava a tela, descobria um giz fluorescente, paisagens pestanejantes, raiadas de aguaceiros; chovia sempre, mesmo em pleno sol, mesmo nos apartamentos; às vezes um asteróide em chamas cruzava o salão de uma baronesa sem que ela parecesse espantada. Eu amava esta chuva, esta inquietação sem repouso que trabalhava a muralha. (...) Eu, por meu lado, queria ver o filme o mais de perto possível. No desconforto igualitário das salas de bairro, aprendera que a nova arte pertencia a mim, como a todos. Éramos da mesma idade mental: eu tinha sete anos e sabia ler, ela doze, e não sabia falar.

Sartre usa aí de uma certa licença poética, porque o cinema era na verdade dez anos mais velho do que ele.















quarta-feira, 27 de setembro de 2017

4272) Guido Araújo 1933-2017 (27.9.2017)



Tive muitos “pais adotivos” ao longo da juventude; em geral eram professores que me botavam embaixo da asa com o nobre propósito de incutir um pouco de juízo na eterna bagunça que era a minha cabeça. Um deles foi Guido Araújo, o criador da Jornada de Curta-Metragem da Bahia.

Acho que conheci Guido em 1973, quando fui participar da Jornada em Salvador. Era a “II Jornada Nordestina de Curta-Metragem”, e eu fui com José Umbelino Brasil e Romero Azevedo, representando a Federação Nordeste de Cineclubes, que naquela época estava sob a nossa responsabilíssima gestão.

Viramos a noite no ônibus da São Geraldo, amanhecemos indo direto para o Corredor da Vitória, onde ficava a sede da Jornada: o ICBA, ou Instituto Goethe. Fomos direto fazer o credenciamento. Guido nos recebeu, passou as informações básicas e anotou um endereço no papel:

-- Vocês vão ficar hospedados neste endereço, nos Barris. É a pensão da mãe de Glauber Rocha.

(ÁUDIO: três cineclubistas desmaiando.)

Ficamos voltando à Jornada todos os anos, e em 1977 eu resolvi me mudar com armas e bagagens para Salvador; era no tempo que eu estava casado com Lili (Arly Arnaud) e ela ia estudar teatro na UFBA. Guido prometeu emprego, e o saudoso Luís Orlando fez a costura para nossa ida.

Guido ensinava cinema na UFBA e era presidente vitalício do Clube de Cinema da Bahia, a entidade que organizava a Jornada. O Clube de Cinema funcionava em salas cedidas pelo ICBA e tinha verbas para pagar dois ou três funcionários (eu fiquei sendo o “ou três”).

Quem não viveu aquela época não pode imaginar o que era; dias atrás estive comentando com Bené Fonteles o que foi o ICBA durante a ditadura. Por ser um instituto cultural alemão, até mesmo a censura da ditadura ficava a uma prudente distância do torvelinho de festivais, shows, recitais, lançamentos, cursos, assembléias e manifestações artísticas e políticas que rolava lá dentro.

O diretor do ICBA era Roland Schaffner; ele e Guido tinham em comum a preocupação obsessiva com detalhes, e a neurose de fazer com que todas as coisas dessem certo. E funcionavam bem em conjunto. Se tenho alguma fé na humanidade, deve-se em grande parte ao fato de ter trabalhado quatro anos num instituto de alemães e baianos, dois povos tão alienígenas entre si, e ver os dois convivendo em harmonia e trabalhando com eficiência.

Guido fez da Jornada um canal de defesa do cinema brasileiro tanto no lado estético quanto no lado administrativo: se não me engano, a ABD (Associação Brasileira de Documentaristas) foi criada lá, nas reuniões paralelas da Jornada.

Ano passado, Jorge Alfredo estava filmando uma série de TV sobre ele, “O Senhor das Jornadas”, e me chamou para participar de uma rodada de conversas que iam promover com Guido na Bahia. Não pude ir; tinha compromisso que não podia remarcar.

O perfil de Guido como cineasta era de documentarista ao estilo do Cinema Novo, e muitas vezes o vi impaciente ou incomodado com o que ele chamava “as maluquices dessa rapaziada do super-8”; mas a Jornada sempre esteve aberta para a rapaziada e alguns dos clássicos mais irreverentes desse formato foram exibidos lá.

Na Jornada eram freqüentes os arranca-rabo entre Guido e os cineastas que iam para lá na expectativa de mais um festival com boca-livre e uísque de graça no frigobar. Guido cortava tudo: era café da manhã, ticket de refeição, e mais nada. Os cineastas se desesperavam: “É o stalinismo!”. Ele dizia: “Isso aqui é um evento de trabalho. Todo mundo pode beber, mas cada um pague o seu.”









domingo, 24 de setembro de 2017

4271) Contracapa de FaceTime (24.9.2017)




&  tem dias em que é preciso botar o mundo no chão e descansar meia hora antes de pegar de novo

&  não adianta pedir a vinda do meteoro: nosso castigo é que não virá nenhum

&  falta alguém inventar pratos com base imantada para usar com bandejas de metal

&  há duas coisas que sempre dão a impressão de melhorar aquilo que acompanham: violinos e molho vinagrete
  
&  aquele momento em que um cara é apanhado com a boca na cumbuca e a mão na botija

&  nunca foi tão fácil dizer que tá difícil

&  achar-se moralmente superior não difere muito de achar-se socialmente superior

uma caixa com um boneco-de-molas que salta e sai correndo

&  condecorações de guerra tatuadas no peito

&  uma escola de tradução onde pinturas a óleo são transpostas para xilogravuras

&  posso não morrer de pé mas vou morrer de frente

&  chuva só presta bem forte, pra gente tomar a decisão firme de não sair de casa

&  todo livro de memórias tem algo de maquiagem diante do espelho

&  não gosto de aniversários porque me parecem uma espécie de contagem regressiva

&  toda campanha política é a subida de uma montanha-russa que chega ao ponto mais alto no dia da posse

&  um museu só de objetos aleatórios, com fichas em branco ao lado, onde caberá ao público explicar que coisa é aquela

&  certos nomes próprios moderninhos parecem uma camisa e uma calça que não combinam

&  como zumbis fazendo fila no caixa do açougue de cérebros

&  tá cheio de gente por aí que nasceu e não sabe

&  redes sociais se alternam entre a babação-de-ovo e o linchamento gratuito

&  só as grandes catástrofes públicas são capazes de nos unir no mesmo suspiro de alívio

&  de vez em quando a gente percebe como é fácil ter certeza de alguma coisa

&  duvido que alguém fazendo as malas num dia de calor ache necessário botar casacos e lãs

&  reencontrei um amigo dos velhos tempos e só consegui identificá-lo pela arcada dentária

&  o mundo tá cheio de carrapato que só por gostar de sangue acha que é tubarão

&  máquinas caça-níqueis onde você bota uma moeda, puxa uma alavanca, e ela produz um poema randômico e irrepetível

&  ergui o binóculo e avistei uma banquisa de gelo à deriva e sobre ela 200 ursos polares com mochilas às costas

&  quando estiver na cama com ela não pergunte o que é o recheio daqueles travesseiros

&  eu estou como quem levou uma surra de um grupo de fantasmas

&  certas pessoas começam a decepcionar a gente já no primeiro aperto de mão

&  em pleno sol do deserto surge uma miragem de dunas de areia, fazendo crer que o deserto é maior ainda

& não vai demorar muito até cada cidadão se transformar no robocop de si mesmo

&  quebrar um recorde é como quebrar uma vidraça barata e botar um cristal caro no lugar

&  o discurso ideológico é uma roupa que quando o menino cresce começa a estourar nas costuras

&  tem gente que não quer aceitar a morte e nunca foi capaz de aceitar a vida

&  não sei o que faço numa cidade onde a gente tem que dormir com as janelas fechadas e os olhos abertos








quarta-feira, 20 de setembro de 2017

4270) Palavras do dicionário paraibano (20.9.2017)



Quando falamos em linguajar regional, geralmente pensamos em palavras específicas de uma parte do Brasil . “Oxente” é nordestino, “bah” é gaúcho, “porreta” é baiano, “uai” é mineiro e assim por diante.

Outro aspecto, também muito comum, é que uma mesma palavra, de uso geral, seja dita com um significado num lugar, e com outro significado numa região diferente.

VEXAME
Acho que já falei nesta coluna sobre a palavra “vexame”. No Sudeste, ela é usada como sinônimo de “constrangimento, vergonha”: “Passei o maior vexame no restaurante porque meu cartão apareceu como bloqueado”. No Nordeste, usamos com mais frequência como sinônimo de “pressa”: “Deixe de vexame porque ainda falta meia hora para o banco fechar, vai dar tempo”.

MALA
Outro termo que às vezes gera malentendidos: “mala”. No Rio, um sujeito mala é um chato-de-galochas, um cara insuportável, sentido reforçado na fórmula intensificada: “Fulano é um mala sem alça”. Em Campina Grande, pelo menos, “mala” é sinônimo de “malandro, esperto”, e muitas vezes é usado como elogio: “O atacante foi muito mala, bateu a falta depressa e pegou a defesa deles aberta”.

EMBALAGEM
Veja outro termo interessante: “embalagem”. Na Paraíba, pelo menos, não é apenas sinônimo de “papel de embrulho, invólucro”, e sim de “embalo, impulso, momentum (massa x velocidade)”.  “O motorista até tentou frear, mas o caminhão vinha numa embalagem muito grande e acabou virando por cima do muro da casa.”  Também se usa “aproveitar a embalagem” no sentido figurado, equivalente a “aproveitar que está com a mão na massa”:   “Já que você está lavando a cozinha, aproveita a embalagem e lava também o banheiro”. Nesse sentido, quem e de fora deve interpretar a palavra como se fosse “embalo”.

ENGUIÇAR
No Brasil inteiro enguiçar é “dar defeito, pifar” – aplicado a máquinas e motores em geral. No Nordeste, enguiçar é passar andando por sobre o corpo ou as pernas estendidas de alguém que está sentado no chão.  Diz a superstição popular que quando isto acontece a pessoa que foi “enguiçada” não cresce mais. Acredita-se que para anular o efeito basta “desfazer” o ato, passar de trás para diante.  “--Ei!  Que história é essa de vir entrando e enguiçar a gente?  Pode voltar, e desenguiçar!” Também já vi ser atribuído ao ato de “enguiçar” o poder de cura contra mau-olhado.  “Esse menino só vive doente ultimamente!  Tá bom de alguém enguiçar ele, isso deve ser mau-olhado.”

E ali com um punhal
Para Adriano avançou
Mas Adriano ligeiro
Por cima dele saltou
Então quando o enguiçava
Mesmo no vão lhe cravou.
(Expedito Sebastião da Silva, folheto “Adriano e Joaninha”)


ARRUMAR
Diz-se no sentido de “arranjar, conseguir”.  "Me arruma aí um dinheiro, que eu deixei a carteira em casa".  "Vou falar com meu tio para ver se ele me arruma um emprego na Prefeitura."  "Ele foi passar as férias no Rio e acabou arrumando uma noiva."

CAÇAR
Parece ser um arcaísmo no sentido que descrevo aqui, o de “procurar”. É geralmente usado por gente iletrada ou gente bem do interior rural.  “Desde hoje que eu estou caçando meus óculos e não sei onde botei.”   “Fulano está caçando emprego desde o fim do ano passado.”   É linguagem bem característica de “gente do mato”. 

CARREGAR
Não é apenas “dar carga” (“Preciso lembrar de carregar o celular antes de sair”). Usa-se mais como “levar embora”, no mesmo sentido em que se usa dizer “Vá para o diabo que o carregue”: “Quem foi que carregou meu guarda-chuva, que eu deixei aqui junto da porta?”  « Cuidado com esses meninos brincando soltos na rua, um dia aparece um tarado e carrega um! » 

DOIDINHO
É o que chamam de “bobo” no Rio de Janeiro. No futebol, brincadeira em que um grupo de jogadores troca passes entre si, enquanto um deles, escolhido por sorteio, tenta apoderar-se da bola; quando o consegue, o “doidinho” passa a ser o jogador que perdeu a bola para ele.  Também se diz “zorra”.  Usa-se também como termo de comparação: “Eu não sei pra que escalaram Fulano como centroavante: a defesa dos caras passou o jogo todo fazendo doidinho com ele.”

RAZÃO
Usa-se muito no Nordeste como sinônimo exato de "arrogância, prepotência": "Ei, que razão é essa?  Quem é você pra vir me dar ordens?"  "Fulano é muito engraçado: a gente faz o trabalho todo, resolve todos os problemas, aí quando é depois ele chega, com a maior razão do mundo, botando defeito em tudo."  É mais frequente na expressão "cheio de razão": "Estava tudo muito tranquilo, mas de repente chegou um cara todo cheio de razão, dizendo que era amigo do dono do bar e que aquela mesa era dele."  

BONDADE
Assim como “razão” é usado com viés negativo, o mesmo se dá com “bondade” em certos contextos. Quando se quer dizer que um indivíduo é humilde, pacato, não quer ser melhor do que ninguém, diz-se: “Fulano me surpreendeu, é uma pessoa sem bondade, conversa com todo mundo, trata todo mundo como igual”. O sentido subjacente é que o sujeito não pretende ser “mais bom” do que ninguém.









sábado, 16 de setembro de 2017

4269) Os cabarés de Campina (16.9.2017)





O saite Retalhos Históricos de Campina Grande publicou uma matéria sobre o Cassino Eldorado e as diversas zonas do “baixo meretrício” de Campina Grande, em diferentes épocas da História.

Aqui:

Aliás, o uso desse termo é uma injustiça e uma imprecisão, porque o Eldorado era uma casa de “Alto Meretrício”, isso sim, inclusive com mulheres importadas – polacas, francesas... Como qualquer cidade brasileira, de Manaus a Londrina, que já viveu um boom econômico com presença de estrangeiros.

Se bem que as maiores atrações eram as beldades locais. Jackson do Pandeiro, que foi percussionista da orquestra do Cassino em sua juventude (“Ah, meus 18 anos!”), recordou muitos anos depois no clássico “Forró em Campina”:

Me lembro de Maria Pororoca,
de Josefa Triburtino e de Carminha Vilar.

(gravação original aqui:

O Eldorado está desabando; virou uma ruína fétida cercada por tapumes. É habitado por uma meia dúzia de malucos inofensivos, os quais são como os pássaros e os cavalos que, no conto de Jorge Luís Borges, não deixam morrer de todo as ruínas de um anfiteatro.

O propósito de estar escrevendo aqui é esta imagem, que peço emprestado ao pessoal do Retalhos Históricos, onde se vê o desenho do projeto do Cassino, e se dá como localização da famosa Rua Manuel Pereira de Araújo o “Bairro Chinez”. (Note-se a elegância do traçado, e as letras modernosas!)



Pois é, Campina também já teve a sua Chinatown.

Na época, chamavam de Manichula, nome que o saite corretamente relaciona com a invasão da Mandchúria em 1931.

É interessante que zonas de prostituição e favelas acabem recebendo nome de regiões em guerra, regiões em conflito. Em Campina, além da “Mandchúria”, tinha no meu tempo o “Vietnam”, uma fileira de botequins e barracas. Sua localização precisa no mapa urbanístico da cidade eu não lembro, porque nas poucas vezes em que fui lá “entrei bêbo, saí bêbo” (como diria a música gravada por Gilberto Gil). Mas meus companheiros de geração poderão esclarecer.

O famoso “Forró da Coréia” natalense, celebrado pelo grande Elino Julião, pode muito bem ter sido batizado pela guerra homônima. Foi isso que aconteceu com o bairro das Malvinas, em Campina, que ganhou esse nome por causa da guerra na Inglaterra com a Argentina.

Fico pensando quantas favelas haverá Brasil afora chamadas “Iraque” ou “Afeganistão”. Isso é tanto mais interessante porque, se não me engano, quem bota nome em favela não é a Prefeitura, é o povo que mora lá. E muitas vezes eles pegam justamente um “nome de lugar” que está em todas as bocas, está na TV, está no rádio. É o lugar famoso do momento, e é, tantas vezes, uma zona de guerra.

Voltando ao Eldorado e aos Retalhos: o saite nos fornece um link (que lhe peço emprestado aqui) para o valioso trabalho de Uelba Alexandre do Nascimento, Mandchúria: o bairro chinês de Campina Grande, que conta um pouco da história da vida noturna e das “mulheres de vida airada” em nossa cidade.


Entre outras coisas, o trabalho de Uelba puxa do fundo do baú outra lembrança musical, a dos famosos “banhos de domingo no Bodocongó”. Era uma diversão pouco inocente em que o pessoal ficava pelado para tibungar no Açude e depois ficar se divertindo pelas beiras. 

Marinês cantou a respeito desses folguedos no clássico “Saudades de Campina Grande” (1959), de Rosil Cavalcanti:

Tenho saudade de Campina Grande
da Lagoa dos Canários e do Zé Pinheiro
dos banhos do domingo no Bodocongó
de Zacarias Cotó, banho no Louzeiro...

(gravação original:

A canção de Rosil celebra um tempo que minha geração não alcançou, e decifrar cada referência dessa longa letra era um passatempo nosso em mesa de bar. De minha parte, sei que “Zacarias Cotó” era Zacarias Ribeiro, jogador e fundador do Treze.


(Zacarias é o quarto, em pé, da esquerda para a direita)

Tem também esse trecho, na mesma canção:

Ainda recordo o Zé Iracema,
centrefó do Paulistano nos dias de jogo
com o Treze, o velho Galo lá da Borborema,
que jamais teve um problema, pegava fogo.

Foi com certa surpresa que vi a descobrir, depois de adulto, que “Zé Iracema” era o sociólogo José Lopes de Andrade, que foi meu professor na UFPB e era pai do meu parceiro musical Zeca Lopes, ex-guitarrista d’Os Falcões.



Alguém virá perguntar que importância tem, e que interesse tem, ficar rememorando a história dos cabarés e das prostitutas do passado. Não existe algo mais nobre para recordar, da história de Campina?

O que ele talvez não saiba é que a História é um tecido onde tudo está amarrado a tudo, e que quem pega “um fio só” arrisca-se a puxar o pano inteiro.

A história dos cabarés não pode ser dissociada da história dos médicos, advogados e políticos que os frequentavam; a história das prostitutas não está dissociada da história dos músicos que com elas se divertiram ou da história dos adolescentes (futuros “cidadãos do bem”) que com elas tiveram acesso ao primeiro e último dos mistérios: o mistério da vida real.







quarta-feira, 13 de setembro de 2017

4268) As aventuras de João Furiba (13.9.2017)





Eu estava no meio de uma viagem com um grupo de cantadores, e tivemos que pernoitar no Recife para prosseguir no dia seguinte. Estava todo mundo exausto depois de horas de ônibus na estrada. Eles estavam fazendo cantorias e eu acompanhando, assessorando, peruando, compartilhando a embriaguez do verso.

Fomos pernoitar em Olinda, nos alojamentos da Casa das Crianças, a fundação de Giuseppe Baccaro, que fornecia quartos gratuitos para violeiros de passagem.

Chegamos lá por volta das onze da noite. Não era tão cedo que permitisse descansar um pouco e depois ir pra farra, nem era tão tarde que a farra ficasse inviável. Decidimos deixar ali as malas e as violas, e sair para beber.

Não lembro exatamente quem eram os outros do grupo; talvez Oliveira de Panelas, Sebastião Dias, Bandeira Sobrinho... E o protagonista da história, João Furiba, um dos cantadores mais queridos e mais engraçados de sua geração. Está hoje com 90-e-bote-força.

Baixinho, magrinho, meio feioso, cheio de dentes de ouro, Furiba tinha a fama de conquistador inveterado por onde passava. Nas cantorias apregoava riquezas babilônicas:

Sofri um pequeno atraso
porque tive de emprestar
para o presidente Reagan
minha Ferrari sem par,
só fiquei com o Rolls Royce
que anda mais devagar.

Nessa noite, Furiba estava mais cansado do que os outros e resolveu não sair.

– Não, Deus me livre. Estou morto. Vão vocês se divertir, eu vou é dormir um sono.

Como estávamos chegando ali meio de supetão, foi preciso combinar com o poeta Palito, que era meio administrador das coisas, o local de dormida para todo mundo. Ele indicou nossos quartos, e foi mostrar o de Furiba.

– Furiba, quem estava nesse quarto era Zé Gaspar, mas ele foi pra uma cantoria e só deve voltar amanhã. Afaste as coisas dele, e durma.

Os quartos da Casa das Crianças eram pequenos, simples. Furiba levou para lá sua maleta, a viola e uma melancia que tinha comprado para levar pra casa. Despediu-se de nós e foi dormir. Deixamos nossas bagagens nos outros quartos e fomos em busca de algum lugar com comida quente e cerveja gelada.

Fomos parar num daqueles botequins de calçada, de frente pro mar. Bebemos um monte de cervejas e comemos uma carne de sol que pra cortar foi preciso pedir uma serra de pão. Lá pelas duas da manhã voltamos para a Casa das Crianças.

Assim que passamos do portão vimos no escuro uns vultos que tinham chegado pouco antes de nós. Iam mais à frente nas alamedas, rodeando os gramados e subindo a encosta rumo aos quartos. Pelas vozes, e pelos vultos, quando chegamos mais perto, reconheci alguns deles.

No meio vinha Zé Gaspar. Que àquela altura já estava batendo com força na porta do quarto.

– Ei, caba safado, esse quarto é meu! Sai daí, misera!

Fomos chegando e tentando explicar que quem estava ali era Furiba. Foi pior.

– Esse mentiroso safado? Ele tá pensando o que? – Zé Gaspar, visivelmente, tinha tomado umas-e-outras e devia estar ansioso para desabar no colchão. – Bora, nojento! – E tome murro na porta – Abre essa porra aí, seu corno, esse quarto é meu!

Com a minha vocação para Itamaraty-de-cantador, eu me interpus:

– Calma, Zé, vamos chamar ele e a gente resolve isso sem problema.

Zé Gaspar é um caboclo entroncado, musculoso, daquele tipo que desatola sozinho um carro de boi. Ele me encarou furioso:

– Isso é BT? O que diabo você tá fazendo em Olinda?

– O mesmo que você. – Bati na porta. – Furiba véio, abra aí pra gente conversar.

– Eu não dialogo com trogloditas – veio a voz lá de dentro, magrinha de medo.

– Furiba, o quarto é dele, ele quer as coisas dele. Qualquer coisa você passa pro meu, e eu vou embora. Eu tenho amigos que moram aqui perto.

– Sai logo, seu corno! – bradou Zé Gaspar em nova investida, me arremessando de encontro à porta. Bandeira Sobrinho e Oliveira tiveram dificuldade para contê-lo. – Eu tenho dinheiro guardado aí! Se tiver faltando um cruzeiro, o diabo vai se soltar.

A essa altura nem sei se era cruzeiro naquele tempo, mas tanto faz. Furiba retrucou, na segurança da porta fechada:

– Já me chamou de corno e de ladrão. Desse jeito eu vou acabar me aborrecendo.

Zé Gaspar tinha se soltado dos outros e bufava, olhando para os lados, como quem está reunindo forças para invadir Tróia. Bandeira Sobrinho tirou os óculos, soprou neles, botou de novo, alisou o bigode e disse:

– Eu sabia que isso não ia dar certo.

Nesse momento a luz do quarto se acendeu, a porta se abriu, e no umbral apareceu João Furiba, no pleno vigor do seu metro-e-sessenta e de seus 50 quilos, nu com exceção de uma Zorba verde-limão e meio frouxa, empunhando um canivete em riste e proclamando:

– A honra se lava com sangue.

Zé Gaspar partiu pra cima dele como um miúra, e nós todos nos engalfinhamos, rodamos levantando poeira e de repente alguém deu uma rasteira em alguém e o bolo de gente rolou pelo chão por entre sopapos e impropérios. Eu senti uma dor no cotovelo, me despreguei da confusão e fiquei de pé.

Eles foram se soltando e se levantando. Ergui a mão: era sangue. A queda tinha arrancado um samboque do meu cotovelo. Bandeira me estendeu um lenço:

– Tome, poeta, pra estancar.

– Vou estragar teu lenço – disse eu.

– Deixa pra lá. Já tá cheio de catarro mesmo...

Apliquei o lenço no ferimento, mas a essa altura Palito já havia chegado providencialmente com uma solução, e até Zé Gaspar estava rindo, enquanto Furiba permanecia na porta em plena Zorba e de canivete em punho, e dizendo:

– Não mexa comigo não, que eu sou perigoso.

A noite acabou nos levando de volta aos bares, para baixar a adrenalina da briga.  Paramos nos Quatro Cantos, onde tinha numa calçada uma turma conhecida tocando violão, era Don Tronxo, Romero Mamata, aquele pessoal que vivia por ali. Emendamos as mesas e mais tarde eu já estava bebo, com o lenço amarrado no cotovelo, fazendo sextilhas com Zé Gaspar, e desta noite me sobrou essa pérola:

Tem certos dias na vida
que nada-nada dá certo
a cisterna do desastre
ficou de registro aberto
quando alguém me dá bom dia
eu digo: saia de perto.













sábado, 9 de setembro de 2017

4267) A arte de comprimir a narração (9.9.2017)




O filme Acossado (A bout de souffle) de Jean-Luc Godard (1959), fez algumas pequenas revoluções na linguagem do cinema. Godard, nesse filme, mostrou Jean-Paul Belmondo num quarto de hotel, conversando ao telefone, e cortou em seguida para o mesmo Belmondo caminhando pelas ruas de Paris. 

No cinema dos anos 1950 era de praxe mostrar os estágios intermediários. Para mostrar que ele saiu para a rua, por exemplo, seria preciso mostrar Belmondo falando ao telefone, depois vestindo o paletó, depois trancando a porta, descendo as escadas, chegando à rua.  É sem dúvida uma maneira mais fluida de mostrar as ações, com transições mais suaves, quase imperceptíveis. 

Era assim que se narrava, mas Godard, como qualquer artista que começa a criar um estilo próprio, estava buscando uma maneira diferente de dizer. 

Comprimir a narrativa (no cinema, na literatura, no teatro, nos quadrinhos) envolve uma avaliação da parte do narrador. Que nível de familiaridade tem o público com esse modo de narrar?  Está cansado de uma narrativa “mastigada” demais?  Receberia com prazer o desafio de uma narração mais rápida?  Seria capaz de preencher por conta própria as lacunas, compreendendo sem muito esforço o que foi deixado de fora? 

Hoje em dia, a narrativa se acelerou tanto que praticamente se pode cortar de qualquer coisa para qualquer coisa. O público, principalmente o público jovem, faz essas conexões sem muito esforço.

A compressão serve às vezes apenas para simplificar e enxugar a narrativa, mas pode também provocar um efeito estético, aumentando a imprevisibilidade (a “dificuldade”) do texto para intensificar seu significado.  Veja-se o famoso parágrafo inicial do conto “A Loteria em Babilônia” de Jorge Luís Borges:

Como todos os homens em Babilônia, fui procônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres.  Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador.  Olhem: por este rasgão da capa vê-se em meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth.  Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas me sujeita aos de Aleph, que nas noites sem lua devem obediência aos de Ghimel.  No crepúsculo do amanhecer, num sótão, jugulei ante uma pedra negra touros sagrados.  Durante um ano da lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam.  Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza.  Numa câmara de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança me foi fiel; no rio dos deleites, o pânico.  Heráclides Pôntico refere com admiração que Pitágoras lembrava-se de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda algum outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte, nem mesmo à impostura.

Quem lê o conto pela primeira vez, pode achar esta abertura desnorteante. Lido o conto e relida esta abertura, ela fica clara.  A Babilônia de Borges é um país regido por uma misteriosa Companhia, a qual promove uma loteria cujos prêmios são interferências na vida dos cidadãos.  Em vez de meros prêmios em dinheiro, sorteiam-se destinos: o indivíduo premiado é obrigado a praticar ações absurdas ou inexplicáveis, cometer crimes, tomar parte em alguma complexa encenação coletiva. 

Relido, o primeiro parágrafo mostra a estonteante variedade de situações que um único homem pode experimentar em sua vida, por obra e graça dos sorteios da Loteria. 

Uma prosa assim, comprimida ao máximo, tende em alguns casos a se aproximar da poesia, porque se transforma numa justaposição de elementos díspares, deixando que as conexões entre eles sejam preenchidas pelo próprio leitor. 

A compressão narrativa produz um grande um efeito quando força o leitor a seguir o ritmo imposto pelo autor, seja retardando, seja acelerando esse ritmo. 

É famoso o interlúdio criado por Flaubert no meio do romance Educação Sentimental.  Ele faz o protagonista Frédéric Moreau testemunhar um episódio sangrento durante um golpe de Estado, encerra o capítulo, e diz, abrindo o capítulo seguinte:

Ele viajou. 
Conheceu a melancolia dos barcos a vapor, o frio despertar na barraca, o tédio das paisagens e das ruínas, o amargor das amizades interrompidas. 
Ele voltou. 
Frequentou a sociedade e teve outras amantes.  Todavia a lembrança sempre presente da primeira as tornava insípidas; e ademais a violência do desejo, a própria flor do sentimento, se perdera.

Anos da vida do personagem são resumidos em poucas linhas, como se o autor dissesse que a única coisa importante que lhe sucedeu naquela época é o que vem nas linhas seguintes: o reencontro de Frédéric com a mulher que amara no passado.

O conto “Sequência” de Guimarães Rosa (em Primeiras estórias) conta a fuga de uma vaca tresmalhada que tenta voltar para sua fazenda de origem.  Um rapaz monta a cavalo e vai à sua procura.  Durante todo o restante do conto, ele a persegue, entretido com aquela “involuntária aventura”.  Fuga e perseguição são narradas com minúcias e detalhes pitorescos, como sempre ocorre nos contos de Rosa.

No final, ao anoitecer, a vaca chega à fazenda, com o rapaz atrás dela. Ele avista as luzes acesas da casa grande, onde mora um tal Major Quitério.  Apeia-se.  Sobe a escada, e ali é recebido, “bem-chegado”.

A uma roda de pessoas.  Às quatro moças da casa.  A uma delas, a segunda.  Era alta, alva, amável.  Ela se desescondia dele.  Inesperavam-se?  Da vaca, ele a ela diria: “É sua.”  Suas duas almas se transformavam?  E tudo à razão do ser.  No mundo nem há parvoíces: o mel do maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se. E a vaca-vitória, em seus ondes, por seus passos. 

O conto se encerra assim: comprimindo neste parágrafo o encontro, a paixão à primeira vista, o casamento entre os jovens, conduzidos um ao outro por uma vaca erradia.  Rosa dilata o tempo da perseguição, aumentando o suspense por algo que não temos idéia do que será.  E contrai todo o tempo futuro do casal em poucas linhas, aumentando a surpresa e o impacto do desfecho.

Dashiell Hammett, em Seara Vermelha (“Red Harvest”) cria um curioso efeito de metalinguagem quando o narrador da história, o detetive conhecido como Continental Op, dialoga com outro agente que ele diz ser um cara de poucas palavras. Eles estão investigando juntos alguns dos chefões da bandidagem de uma cidade do interior. Diz ele:

            Um quarteirão mais adiante encontrei Dick Foley, ao volante de um Buick alugado. Entrei no carro e perguntei:
            – O que há?
            – Peguei às duas. Saiu três e meia. Escritório de Willsson. Mickey. Cinco, casa. Movimento grande. Finquei pé. Saí três, e sete. Nada ainda.
            Isto era para me informar que ele tinha começado a vigiar Lew Yard às duas da tarde anterior; que o seguira até o escritório de Willsson às três e meia; onde Mickey estava seguindo Pete; depois seguiu Yard quando este saiu às cinco, voltando para casa; viu muita gente entrando e saindo da casa, mas não seguiu ninguém; vigiou a casa até as três da madrugada, e depois de dormir voltou às sete; e que desde então nada mais acontecera.

A compressão do texto funciona na medida em que o leitor é capaz de preencher por conta própria as lacunas de informação.


(Uma versão diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento (São Paulo), em outubro de 2009.)










segunda-feira, 4 de setembro de 2017

4266) O Caminhante-na-Terra (4.9.2017)



A literatura (e seus desdobramentos, entre eles o cinema, os quadrinhos, a filosofia) funciona à base de repetições e variantes, trazendo sempre uma mistura do que é conhecido e nos proporciona segurança, e do que é desconhecido e nos desperta a curiosidade.

É assim com certos personagens ou tipos recorrentes que fazem parte da nossa memória cultural, porque para onde a gente se vire dá de cara com uma variante deles.

Eu estava relendo um dos livros problemáticos de Philip K. Dick, A Maze of Death (1970). Digo problemáticos porque tem uma história fascinante, mas talvez seja um dos livros escritos mais descuidadamente pelo nosso grande Maluco Beleza californiano.

Em todo caso, essa aventura dark e sinistra (que já foi chamada pela crítica de “O Caso dos Dez Negrinhos no espaço interplanetário”) é uma das tentativas mais interessantes de Dick em produzir uma religião artificial.

Tanto quanto o “mercerismo” de Do Androids Dream of Electric Sheep (1968), os pesadelos fundamentalistas em Eye in the Sky (1957) e todas as fantasias cósmico-teológicas da fase final de sua vida, começando com The Divine Invasion e Valis (ambos de 1981).



Em A Maze of Death, um grupo de colonistas terrestres num planeta remoto professa uma religião própria baseada num livro sagrado chamado “The Book of Specktowsky”, relativo ao filósofo que a concebeu.

O humor californiano de PKD sempre dilui qualquer pomposidade possível em seus conceitos, de modo que esse equivalente da Bíblia ou do Corão intitula-se na verdade Como Eu Me Ergui Dentre Os Mortos Em Minhas Horas Vagas e Você Também Pode, um saboroso tempero de ironia para um livro que traz a Verdade Suprema.



A religião pregada por Specktowsky tem, é claro, pontos em comum com o cristianismo, e postula a existência de quatro manifestações da Divindade: o Mentufaturador, o Intercessor, o Caminhante na Terra e o Destruidor das Formas. No momento, é o terceiro deles que me interessa.

O Caminhante na Terra (“the Walker-on-Earth”) é uma entidade que se materializa e vem em socorro dos humanos em momentos de necessidade. Por exemplo, no capítulo 2 ele surge como “um homem, ou pelo menos algo como um homem. Um vulto vestindo um robe solto, com cabelos longos caindo sobre seus ombros escuros e maciços.” Aborda um personagem prestes a partir num voo interplanetário e lhe diz que não pegue aquela nave, que está com defeito, pegue outra.

O Caminhante vai embora do mesmo jeito que aparece. Comparado à mitologia cristã ele se assemelha mais a um anjo do que a um dos membros da Santíssima Trindade. Os anjos nos guardam, nos aconselham, nos dão avisos, evitam que façamos bobagem e assim por diante.

No entanto, o modo elusivo e arredio como ele se comporta lembra outro tipo de caminhante: o Judeu Errante, que escarneceu de Cristo e foi condenado a caminhar sem paz pelo mundo afora, até o dia do Juízo Final.



Caminhar pelo mundo significa entrar em contato com Deus-e-o-Mundo. O Judeu Errante não é um eremita escondido no fundo de uma loca. Ele caminha, ele se mistura, mas sem nunca ter um contato real com quem quer que seja.

Como disse Castro Alves:

Viu povos de mil climas, viu mil raças,
e não pôde, entre tantas populaças,
beijar uma só mão...
(“Ahasverus e o Gênio”, 1868)

O Caminhante-na-Terra de PKD parece ter um pouco disso. Ajuda a todo mundo, mas não pode se aproximar de ninguém. Meia hora, uma hora de conversa, e ele desaparece para sempre.

As sincronicidades da Literatura Comparada me levaram a no mesmo dia enfiar no draive um DVD de um filme que eu não via há décadas, Queimada (“Burn!”, 1969). É um filme bastante glauberrochiano de Gillo Pontecorvo, descrevendo de forma até didática certos mecanismos do colonialismo no século 19, especificamente o modo como a Inglaterra financia secretamente a independência de um pequeno país negro do Caribe, apenas para tirá-lo de baixo da asa de Portugal e trazê-lo para a sua.



Quem se encarrega disso é Marlon Brando, com uma improvável peruca loura mas um à-vontade notável no papel desse agente provocador que manipula ditadores, revolucionários e capitalistas na mesma medida em que os serve. Ele é um aventureiro, um indivíduo de têmpera superior mas de personalidade instável; eu o compararia a Richard Francis Burton e a T. E. Lawrence, o da Arábia.



Acontece que no filme o personagem de Brando se chama “Walker”. Dizem que é em homenagem a um personagem real, William Walker, que andou aprontando naquela época pela Nicarágua.

Não havia como não ver no Walker de Brando uma espécie de Judeu Errante, destinado a caminhar de país em país a soldo de Sua Majestade Britânica, erguendo e derrubando líderes populares, interferindo, seduzindo, doutrinando, armando, financiando, e depois sumindo de vez para ir fazer o mesmo em outro grotão perdido do Terceiro Mundo.

Como outro Walker: aquele encarnado pelo Fantasma, de Lee Falk, um dos ídolos meio esquecidos da minha infância. The Phantom vive também no meio de pigmeus africanos, como um colonialista qualquer, trazendo-lhes os benefícios da inserção no Mercado.

Ele veste uma dessas roupas colantes e coloridas de super-herói dos quadrinhos, mas quando visita a civilização o faz de chapéu, óculos e sobretudo – e se faz chamar de “Mr. Walker”. Porque ele é no fundo o Fantasma-Que-Anda, “the Ghost-Who-Walks”.  Imortal, como o Judeu Errante.



Outro herói (este conheço pouco) que se aproxima dessa equação “judeu errante / herói mascarado” é o Phantom Stranger (DC/Vertigo).


É interessante o paralelismo desse arquétipo. Ele é uma divindade que desce até os mortais para interferir na sua vida, e é um europeu que desce até o Terceiro Mundo para fazer o mesmo (sempre de forma ambígua). E é sempre alguém de fora, um outsider, que não pertence àquele lugar. (O Fantasma de Lee Falk tem domicílio fixo numa selva, como Tarzan; não vive errando de mundo afora; mas continua a ser, sempre, um “despaisado” alguém sem pátria, alguém de fora.)

Lévi Strauss dizia (com outras palavras) que um mito não corresponde a nenhuma de suas versões, mas aos traços que se reforçam quando todas as versões são superpostas. Os arquétipos literários têm essa mesma característica.

Quem é o Caminhante-na-Terra? Não sabemos (o autor não o revela), mas ele nos parece familiar porque tem traços do Fantasma de Lee Falk e de Lawrence da Arábia; de um anjo desterrado e de um agente-provocador branco em continente negro; de alguém que não morre mas que nunca viveu; de Richard Francis Burton e do judeu errante de Castro Alves, “invejado, a invejar os invejosos”.