terça-feira, 13 de dezembro de 2016

4190) Algumas palavras sobre Gonzagão (13.12.2016)




Brincando, brincando, são 104 anos de nascimento de Luiz Gonzaga, e o pessoal não deixa de comemorar, lembrar, fazer homenagens. Que são sempre poucas, para a importância que teve o Rei do Baião como artista e como personalidade pública.

Anotei aqui algumas impressões sobre ele, alguns detalhes que sempre me vêm à mente quando o ouço cantando, quando o vejo dando entrevistas ou conversando nos palcos. Ou quando faço uma avaliação da importância que ele teve para a música.

Tecnologia
A invenção do baião no Rio de Janeiro foi (já escrevi sobre isso) um momento crucial na história da apropriação da tecnologia urbana pelos artistas populares nordestinos. Gonzaga e Humberto Teixeira tomaram de assalto um patamar tecnológico (gravadoras, rádios cariocas) que até então estava com porta trancada e segurança na frente. Com poucas exceções, e em fixas resttitas. Foi algo parecido com o que Leandro Gomes de Barros fez em 1895 quando se apropriou da tecnologia gráfica e começou a imprimir os poemas que antes eram recitados de memória ou copiados à mão. Foi parecido com Linduarte Noronha e sua equipe fazendo Aruanda no menos provável dos Estados onde pudesse aparecer um modo novo de fazer cinema brasileiro.

A ode à tecnologia está presente, principalmente, na canção “Respeita Januário”, onde ele reafirma orgulhoso o sua  conquista do poder high-tech da capital (a “sanfonona” de 120 baixos) e ao mesmo tempo o orgulho do artista popular: “Eu não sei pra que tanto baixo, porque espiando bem ele só toca em dois. Januário não. O fole de Januário só tem 8 baixos, mas ele toca em todos 8”. Tem toda uma teoria da Estética nessa música.

Respeita Januário:



Largueza
Gonzagão tinha um sorriso largo, franco, que iluminava o rosto em forma de lua. Sorriso de quem não tem medo. Mesmo já velho, abatido pela doença e pelos desgostos, sem poder andar direito, cantar direito, quando ele via algo ou alguém que o alegrava o sorrisão voltava inteiro. Não só o sorriso: o coração era largo, brigava mas perdoava, todo mundo cabia ali dentro. (O bolso era largo também.)  O sorriso parecia o abrir de uma sanfona. A voz era larga. Voz de quem já cantou muitas noites em cima de um caminhão, numa praça, e tinha que cantar mais alto do que a sanfona, porque não tinha microfone.

Boiadeiro:



Política
Poucos artistas se misturaram tanto com a política, não no sentido da militância, mas na convivência misturada que caracteriza o artista nordestino evoluindo entre coronéis, deputados, fazendeiros, prefeitos, vereadores , “homens por nós escolhidos para as rédeas do poder”. Qual o nordestino que nunca pediu um favor a um cidadão desses?  No tempo das vacas magras, quando passou o tsunami do primeiro sucesso, Gonzagão botou o trio no carro e saiu de Brasil afora, de cidadezinha em cidadezinha. Riscava na frente da Prefeitura, descia, avisava: “Diga ao prefeito que Luiz Gonzaga está aqui e queria humildemente uns minutinhos de atenção dele”. Descolava hotel, refeição, gasolina e cachê para aquela noite.

O povo de Exu lembra os longos esforços dele para a construção da estrada que ligou o município às cidades em volta. Gonzagão foi lobista, “lobista do povo”, como ele mesmo se apressaria a acrescentar. A convivência com políticos está no início mesmo de sua carreira. Ele contava que na época em que passava a noite tocando “In the Mood” na sanfona, na zona do Rio, um grupo de estudantes cearenses, tendo à frente o futuro ministro Armando Falcão, ficavam lá da mesa lhe pedindo para tocar as coisas do Nordeste. Esse toma-lá-dá-cá nunca mais parou.

Vozes da Seca:



Oralidade
Quem melhor do que Gonzagão cultivou, em cima do palco, a arte do monólogo entremeado às canções? Eram cinco minutos de conversa e uma música, oito minutos de conversa e outra música. Herdeiro da imensa informalidade dos forrós de candeeiro, para ele não tinha essa coisa do roteiro-de-ferro do show business. Ele aprendia tudo e botava no bolso para usar quando lhe desse na telha.

Muita conversa; e ao se juntar com parceiros igualmente loquazes como Zé Dantas, que era um tesouro de cultura oral, produzia canções-não-canções como “Sá Marica parteira”, que na verdade não tem nada a ver com a canção do show business (letra + melodia + arranjo), é um interminável monólogo puxado pelo resfolêgo da sanfona, cheio de efeitos sonoros de-boca (“piriri, piriri, piriri...”, “nheeeééém-pááá!”), sem primeira e segunda parte, sem refrão, um misto de teatro de palco e anedota radiofônica. Eita caminho largo para a música brasileira, caminho largo onde tão pouca gente já passou!

Samarica Parteira:



Gonzagão foi contraditório como todos os grandes artistas populares que saem da pobreza, chegam à riqueza, e insistem em continuar segurando ambas as pontas de um cordão tão comprido. Contraditório como quem, mesmo amado e endeusado por milhões, ainda se dirige a certas figuras com o tratamento respeitoso de “Seu Dotô”.  Contraditório ao assinar composições que só eram suas pelas beiradas, graças à adição de um riff de teclado, de um refrão concebido na hora de gravar, mas que o fazia com o coração aberto de quem sabia que aquilo ali, num sentido artístico bem profundo, era tudo seu.

Numa entrevista antiga, o repórter lhe perguntava no final como ele via toda a sua trajetória, a vida, a obra, tudo que realizou. E ele já velhão, cansado, tranquilo, alargou o sorriso e disse:

-- Isso estava escrito. Deus quis, aconteceu. Foi bom pra mim.  É bom pro povo.

Precisa mais?