sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

4185) Os 100 anos do samba (2.12.2016)



(da esq. para a dir.: Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Gilberto Alves, Bide e Marçal)


Estamos comemorando 100 anos do samba, data estabelecida em função da gravação de “Pelo Telefone” de Donga, em 1916. O jornal O Globo reuniu um enorme painel de compositores e jornalistas para que cada um fizesse sua lista dos “dez sambas fundamentais”. Não me arrisco a voar tão alto, não conheço o gênero tanto assim. Mas acho que todo compositor de MPB (como é o meu caso) tem seus sambas-referência.
O número de dez é a camisa-de-força obrigatória pra neguinho não chegar com lista de 237. Vão aqui, portanto, dez sambas “meus”, canções que na minha vida são referência estética, poética, afetiva, autobiográfica. Sem ordem de preferência.

1) PRESSENTIMENTO (Elton Medeiros & Hermínio Belo de Carvalho)
Pra quem não liga o nome a pessoa, é aquela jóia que começa: “Ai, ardido peito... Quem irá entender o teu segredo? Quem irá pousar em teu destino? E depois morrer do teu amor?”. Não só como samba, mas uma das canções de amor mais bonitas da MPB. Começa melancólica, reflexiva, em tom menor, mas vai se animando, o tom modula para maior (“Vem, meu novo amor, vou deixar a casa aberta!...) e vai subindo, em modulações sucessivas, a melodia vai galgando patamares cada vez mais altos, até terminar numa última frase triunfalmente lá em cima: “Tudo faz pressentimento, que este é o tempo ansiado de se ter felicidade!”. Olha o braço como fica.

2) SAUDOSA MALOCA (Adoniran Barbosa)
Os Demônios da Garoa eram minha banda favorita aos 12, 13 anos. As músicas tinham humor, pareciam histórias em quadrinhos com seus personagens, suas narrativas aparentemente ingênuas mas cheias de sutilezas. “Saudosa Maloca” é o hino nostálgico, estoico, resignado, de todos os sem-teto de São Paulo e do mundo, dos invasores, dos squatters. Adoniran foi um contemporâneo de Noel que viveu mais do que Noel, foi precursor de Vanzolini e de Itamar; ninguém compreende sua cidade se não passar por dentro da obra dele.

3) UM APITO NO SAMBA (Luiz Bandeira & Luiz Antonio)
Das tantas músicas de Luiz Bandeira eu podia ter escolhido a clássica “Na Cadência do Samba (Que Bonito É)”, que, em sua gravação com a orquestra de Waldir Calmon, virou hino do futebol brasileiro como tema musical dos jogos do “Canal 100”. Mas o “Apito no Samba” faz a ponte entre o samba das Escolas, regido a apito, e o samba orquestral dos anos 1950, quando o balanço sambista encontrou tantas orquestras (Tabajara, etc.) dispostas a concretizar o que Jackson do Pandeiro sonhou e fez: o samba cadenciado, melódico, fluente, encorpado com orquestrações complexas e balançadas como as de Glenn Miller, que Jackson curtia tanto. É o samba épico dos anos 1950.

4) OLÊ, OLÁ (Chico Buarque de Hollanda)
Antes de surgir “A Banda”, antes de clássicos como “Quem te viu, quem te vê” ou “Roda Viva”, foi essa a primeira música que eu vi cantada na TV por aquele rapaz de smoking, gravatinha borboleta e cara encabulada. Era um samba, mas não era um samba! Era uma canção com formato próprio, melodia insinuante cheia de acordes que a mão não achava. Era uma canção sobre o samba, mas não era a mera exaltação, era outra dicção, outra filosofia. Tinha horas que parecia até ficção científica (“é um samba tão imenso que eu às vezes penso que o próprio Tempo vai parar pra ouvir”). E era uma canção-de-boêmio, aquelas que levam o ouvinte madrugada afora e, como o “Mr. Tambourine Man” de Dylan, se encerram com o nascer do sol (“quem passa nem liga, já vai trabalhar”). E ainda por cima deixou de herança na fala brasileira a fórmula imorredoura de quem vai pra farra: “a noite é criança”.

5) ALVORADA (Cartola)
E por falar em dia amanhecendo, não sei de música que fale isso com maior beleza e simplicidade do que Cartola: “O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo... E a Natureza sorrindo, tingindo, tingindo...”  Cartola é um desses sambistas como Elton, Jamelão, Nelson Cavaquinho, que parecem sobreviventes de uma guerra e quando pegam o instrumento pra cantar falam de tudo menos da guerra. Falam que quando um dia começa lá no morro ainda não existe a tristeza, o dissabor. Sofreram todas as desilusões, mas a ilusão da beleza continua intacta. E o sol quando nasce, nasce embelezando o mundo, “tingindo, tingindo”.

6) SEI LÁ, MANGUEIRA (Paulinho da Viola & Hermínio Belo de Carvalho)
Na linha dos sambas filosóficos, nenhum me estremece tanto quanto essa homenagem do portelense Paulinho à verde e rosa, que Hermínio cobriu com versos definitivos: “E a beleza do lugar, pra se entender, tem que se achar que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais – que os olhos não conseguem perceber, as mãos não ousam tocar, os pés recusam pisar”.  Uma dessas canções “nascidas clássicas” como diz a crítica, e o simples fato de ser feita por um não-mangueirense nos faz acessar o veio profundo do samba, que não é somente um estilo de música, é “um modo novo da gente viver”. Que o futuro o escute.

7) LAPINHA (Baden Powell & Paulo César Pinheiro)
Eu quase furei o meu elepê da “Bienal do Samba” de 1968, com canções que ficaram na história (como “Coisas do mundo, minha nega” de Paulinho da Viola e “Pressentimento” de Elton) e foi vencida por Elis Regina com essa música de Baden Powell (que àquela altura eu já conhecia com “Canto de Ossanha”, etc.) e de um pirralho de 16 anos chamado Paulo César Pinheiro. Essa música sempre me deu uma emoção enorme e eu pensava: um dia vou morar no Rio e fazer samba. Ela tem uma estrutura clássica: primeira parte (ou refrão) tirada do folclore, e segunda parte “erudita”, fazendo uma variação melódica e poética, mais elaborada. E uma poesia que nos inundava: “ah, tanto erro eu vi, lutei, e como perdedor gritei: que eu sou um homem só, sem poder mudar, nunca mais vou lastimar...”

8) CONTO DE AREIA (Toninho & Romildo Bastos)
É um daqueles sambas praieiros onde Clara Nunes deitava e rolava: “É água no mar, é maré cheia, ô... Mareia, oi, mareia...” A letra cadenciada, melodia linda, cheia de imagens bonitas. É principalmente a estrutura desses sambas que me encanta, fugindo ao esquema primeira/segunda/refrão; não são estrofes longas de formato recorrente, mas guardam, dos sambas antigos do tempo de Donga, aquela estrutura de quadrinhas ou sextilhas superpostas, com células melódicas de quatro ou seis linhas que, quando se encerram, em vez de voltarem ao começo dão lugar a uma nova célula semelhante com letra nova, melodia diferente. Sambas encadeados, sambas-colagem, surpresas poéticas e melódicas que se renovam, um modo antigo e novo de fazer canção.

9) FESTA PARA UM REI NEGRO (Zuzuca)
Tinha que botar um samba-enredo de escola para representar o gênero. Qual, no meio de mais de mil? Este aqui (Salgueiro, 1971), o famoso “Pega no Ganzê, Pega no Ganzá”, é um dos meus favoritos, inclusive porque lembra o auge da “Batucada de Lanka” dos nossos fins de semana em Campina, regados a samba, forró, suor e cerveja. Eita tempo bom; que o digam Biliu de Campina, Tadeu Mathias e Elba Ramalho, cujas carreiras começaram ali. O samba de Zuzuca é samba pra levantar arquibancada, com sua letra lembrando os velhos congados, estrutura simples (primeira + refrão), aquela clássica subida onde um milhão de pessoas eleva a voz em uníssono, até quem não sabe a letra (“que beleza...”), e o carimbo africano das sonoridades “ê / á” (que Chico aliás já evocara em “Olê, Olá”).
Com a Velha Guarda do Salgueiro: https://www.youtube.com/watch?v=2qvDJ9BXhA0

10) CONVERSA DE BOTEQUIM (Noel Rosa & Vadico)
Pois é, faltava Noel. O samba urbano, refinado, afiado. Samba crônica, como Lenine insiste em lembrar: o samba que fotografa um momento da História. Riqueza de rimas, de vocabulário, de detalhes fotográficos, da cenografia de época, da pequena malícia das relações de classe. O cotidiano do malandro folgado mas sem maldade, o bon-vivant, o flâneur de mãos nos bolsos indo de cabaré em cabaré, de café em café, esticando a noite para que o dia não amanheça. A noite de Noel foi curta, 27 anos somente, mas ainda hoje transborda para dentro das nossas.


Não é nada, não é nada, são dez sambas no meio de milhares. Se eu quiser, amanhã apago essa lista e faço outra tão-boa-quanto. Pra quem gosta de ouvir, de cantar, de fazer, de analisar samba, existe uma floresta amazônica de alegrias e tristezas a serem aprendidas, impregnadas, depuradas, sublimadas em forma de música. Viva o samba centenário! Tomarei uma em sua homenagem.