quarta-feira, 12 de outubro de 2016

4169) A arte do improviso (12.10.2016)



(busto de Antonio Marinho, em São José do Egito, PE)


Para quem é músico, o improviso é o solo instrumental feito na hora, com um mínimo de preparação, acompanhando a cadência rítmica e a sequência harmônica que o resto da banda está segurando, e, a partir disso, com liberdade total para inventar.

Para quem é cantador de viola, improviso é o verso pensado e cantado quase no mesmo instante, o verso quente, pegando fogo, forjado no toma-lá-dá-cá das sextilhas alternadas. O desafio instantâneo, onde, como me disse inesquecivelmente um cantador, “eu só sei o verso que fiz quando escuto minha boca dizendo”.

A verdade, porém, é que todos nós improvisamos o tempo inteiro quando falamos com alguém. São raros os casos em que “ensaiamos um texto” antes de ir conversar com quem quer que seja. Entrevista de emprego, pedido de noivado, reunião na firma, brinde em banquete... sim, às vezes a gente rabisca umas frases no papel, decora, repete, pra elas irem ficando maleáveis e darem a impressão de ser espontâneas.

Raramente dão: todo mundo pressente que é coisa decorada. Nossa prática constante do improviso é tal que geralmente percebemos de cara quando alguém está contribuindo com a conversa com um “texto pronto”, com frases trazidas de casa.

Achamos fácil improvisar porque nossa fala não tem restrições de métrica, rima, assunto, nada. Basta falar organizadamente o que vem à cabeça. Fazemos isso o dia todo, bem ou mal, a vida inteira. Somos os reis do improviso em prosa. (Está aqui um bom motivo pro cara ficar todo empavonado, como aquele personagem de Molière que a certa altura da vida descobriu que “falava em prosa”.)

O que chama mais a atenção nos improvisos da vida cotidiana é quando diante de uma situação inesperada a gente se sai com uma resposta perfeita, pensada em fração de segundo. Uma resposta que todos em volta percebem que não poderia ser adrede preparada, porque ninguém poderia prever o fato ou a frase que desencadeou a resposta.

É essa rapidez de raciocínio que a maioria dos cantadores tem, mesmo que não seja em verso.

Diz-se que Antonio Marinho estava em casa quando uma comadre dele, esposa de um tal Irineu, botou a cara na janela e perguntou: “Seu Antonio, o senhor viu Irineu?”, e ele em cima da bucha respondeu: “Não!  E fôro?...”

É uma dessas respostas geniais que só fazem sentido no contexto linguístico local. O diálogo, com a segunda-intenção projetada pelo poeta, é: “O senhor viu irem n’eu?”(=sexualmente), e a resposta: “Não!  E foram?...”

Vittorio de Sicca contava um episódio engraçado do início de sua carreira teatral. Jovem e desempregado, arranjou uma “ponta” numa peça, fazendo o criado que a certa altura entrava em cena para entregar uma mensagem ao Conde, algo assim. Sem comer há três dias, Vittorio vestiu a libré e entrou no palco. Quando viu a platéia, o famoso Monstro de Mil Rostos, deu-lhe uma turica e ele desabou no chão, desmaiado. O ator que fazia o Conde, entendendo tudo, recolheu o bilhete que ele tinha na mão, ergueu-o nos braços e levou-o para a coxia, comentando na direção da platéia: “Ora, ora, preciso esconder a chave da minha adega.”

Isso é um desses milhares de improvisos brilhantes que toda noite acontece nos teatros, mundo afora. A reação improvisada pelo ator foi necessária devido a um imprevisto; uma resposta rápida, e à altura. Marca de um ator que, sem sair do personagem, está consciente de tudo em volta.

Improvisos desse tipo acabam no entanto se vendo desvalorizados pela mania dos “cacos”, frasezinhas ausentes do texto que alguns atores enfiam no diálogo o tempo inteiro para deleite da platéia, e que de improviso geralmente não têm nada.

O verdadeiro improvisador dá um nó num pingo dágua em pleno trajeto entre a torneira e o chão.

É como o sertanejo da história contada por Dantinhas Vilar.  Era caçador e mentiroso. Tudo que ele dizia a mulher dele confirmava. Uma vez, tarde da noite, com a sala cheia de amigos, ele falou que tinha caçado uma marreca na lagoa.

- Não foi, Fulana? – perguntou.

- Foi, - disse ela, que estava sonolenta, distraída. – Ele caçou uma macaca.

Houve aquele silêncio, e um dos circunstantes perguntou:

- Macaca?!  Como assim?

- Ah, rapaz, não te conto. É porque eu construí um corredor de estacas entrando na lagoa pra ajudar o gado a descer pra beber. Aí apareceu do mato uma macaca que tinha o costume de correr por cima das pontas das estacas, ficava indo e voltando. Aí eu dei um tiro numa marreca, e pegou na macaca.

Quando os amigos foram embora ele falou pra mulher:

- Da próxima vez que você me obrigar a construir um corredor de estacas a essa hora da noite, eu lhe dou uns cascudos.