segunda-feira, 5 de setembro de 2016

4155) O som ao redor do edifício (5.9.2016)




É inevitável comparar este filme, Aquarius (em cartaz pelo Brasil) com o anterior de Kleber Mendonça, O Som ao Redor. Existe continuidade temática, dramática, de linguagem, de muita coisa, entre os dois filmes.

São dois flashes da luta pelo território urbano de uma grande cidade, onde os senhores feudais de outros tempos não mandam mais em ninguém. Como sempre, só manda quem consegue se impor. O conflito imobiliário em nossas cidades não é menor que o conflito fundiário no campo.

O bairro é outro, mas a vizinhança é do mesmo tipo. O rapaz de moto que vende pó atrás do quiosque perto do edifício Aquarius lembra o neto de W. J. Solha, no outro filme, um playboy mimado que praticava pequenos furtos. Irandhir Santos fez um segurança e agora faz um salvavidas.

Há um paralelismo nessa presença discreta, mas contínua, de uma rede de pessoas secundárias, de vizinhanças, de compadrio, troca de favores, pequenos serviços, lealdades e amizades momentâneas. Aquele casulo de compromissos e de expectativas que mantém um morador em conexão com um lugar.

No Som..., um cara mal tratado por uma madame risca-lhe o carro com um prego quando ela se prepara para ir embora; em Aquarius, dois caras que ela reconhecia e tratava pelo nome surgem do nada e por lealdade colocam em sua mão uma pista.

A promiscuidade entre as classes sociais em Boa Viagem deve ser algo inimaginável para a família de Lord Grantham em Downton Abbey, mas certas leis da existência estão sempre valendo. “Dize-me quem te serve ou a quem serves, e eu te direi quem és.”

Todo mundo tem um papel social muito rígido para desempenhar. “You gotta serve somebody.” Clara e sua empregada Ladjane levam essa relação com leveza. Em certos momentos são apenas duas mulheres que se aproximam uma da outra, que precisam da presença da outra para encarar situações.

Você e um empregado (ou um amigo) podem ter quatrocentos anos de casa grande e de senzala, respectivamente, e saber que isso é diluível em tempo. O tempo até agora foi pouco. Patrões e criados nesses filmes de Kleber se confrontam, se relacionam, em tons diferentes, mas de modo sempre plausível. E todos se assemelham na busca constante de segurança territorial: o meu canto, o meu lugarzinho, o meu cafofo, o meu QG, o meu ponto-castañeda, o meu sanctum, o zero cartesiano do meu GPS.

Em O Som..., há uma cena arrepiante que ocorre à noite. Vemos do alto, por uma janela, um pátio interno, plantas, um muro. De repente um vulto humano, escuro, surge na sombra em cima do muro. Pula para dentro e corre a se esconder fora do ângulo de visão. Logo surge um segundo, diferente, mas fazendo a mesma coisa. E um terceiro, e um quarto, e assim surge do nada uma invasão silenciosa de vultos ariscos como ninjas.

Lembra o famoso episódio de Conan Doyle sobre o castelo de Villefranche, que hospeda alguns cavaleiros afamados e é sorrateiramente invadido à noite por camponeses amotinados e famintos (A Companhia Branca, 1891).

É o medo atávico de ver vultos obscuros invadindo nosso santuário na calada da noite. Os zumbis. Os vampiros. Os sem-teto. Os sem-escolha. Os sem-alma. Pode ser um arrastão noturno rebatando tudo, na mão-grande. Pode ser uma carta de intimação de uma construtora, com palavras como “nossa oferta final” ou algo que faça o mesmo efeito.

Visto por esse ângulo da expulsão do paraíso, o filme de Kleber é o contrário da passividade de "Casa Tomada” (1946), o conto famoso de Julio Cortázar, onde os remanescentes da família aceitam que a casa lhes está sendo tomada aos poucos, aposento por aposento, andar por andar, até que eles próprios vão embora e trancam por fora a porta da frente. Sabem, e não comentam, que o mundo não lhes pertence mais. Como o próprio Cortázar na época, admitindo que a Argentina não era mais sua e indo viver na França.

Mas o movimento de tomada do espaço urbano acontece sempre em mão dupla.

O filme de Kleber Mendonça capta o espírito do ano do movimento “Ocupa Estelita” no Recife e das ocupações de escolas secundaristas em São Paulo. É um choque historicamente inevitável diante da brutalidade das ocupações “gentrificadoras” do espaço urbano.

O coronel-patriarca-bíblico interpretado por W. J. Solha em O Som ao Redor pertence a uma linhagem de nobres que podem ser canavieiros, do gado, do algodão. (Hoje devem ser do mercado financeiro, fazendeiros do ar, que plantam zeros para colher percentagens.)

Foi talvez pensando na segurança financeira do futuro Coronel Francisco que em tempos remotos algum antepassado seu irrompeu, impudente e conquistador, na topografia urbana do Recife, comprando o que seriam depois quarteirões inteiros, com o destemor de quem nada à noite num mar assombrado por tubarões.

Coronéis como ele conquistaram suas terras sabe-se lá por que meios, mas certamente com muita ambição, e com bastante coragem. O coronelzão nunca teve medo de enfrentar o futuro. Os feitos dos coronéis e os malfeitos das construtoras estão guardados na poeira de um arquivo. E um belo dia um deles é pêgo como o flanco descoberto e tem prestar contas ao passado. Esse passado (dizia William Faulkner) que ainda não parou de passar.