sábado, 19 de março de 2016

4080) A arte de recitar (20.3.2016)




(Dante Gabriel Rossetti: Mnemosyne, a deusa da memória)


Algum tempo atrás, numa festa de cantadores em São José do Egito, subi ao palco para recitar uns versinhos. Macaco velho que sou, tinha no bolso um dos meus cordéis, pra não me perder. Mal o puxei do bolso, vi a platéia se desinflar da própria expectativa. 

O Vale do Pajeú não é apenas um lugar onde se venera a deusa Poesia. Venera-se igualmente a deusa Memória, as duas uma ao lado da outra, em dois altares igualmente enfeitados de fitas, ex-votos e velas. Ali, não basta saber fazer versos; não basta entender o que é um verso bem feito; não basta ter o tutano e a medula necessários para subir num palco e enfrentar o Monstro de Mil Rostos. Tudo isso não é nada quando o cara escreve um poema e sobe para declamá-lo com um ridículo papel na mão. Com uma “cola” na mão, na frente de todo mundo.

O camarada que precisa ler um poema é porque não gravou o poema em si mesmo, não fez do poema uma parte de si, ao preço de minutos ou horas de um ritual mnemônico que não está muito distante da prece religiosa. 

Por outro lado, essa peculiar dramaturgia pajeuzeira mostra o quanto está verde e viçoso o ramo da oralidade entre nós. Os recitadores são às vezes jovens, rápidos, precisos, verdadeiras metralhadoras, de carga inesgotável e transbordante. Outras vezes são anciãos compassados capazes de falar lentamente, sem nunca alterar o passo, seja rememorando, seja reproduzindo o verso, e dali passar por associação de idéias para outro parecido, e deste para um terceiro porque tocou no nome de Fulano, e daí brota mais um episódio semelhante... e as horas se passam e aquela fita não para de rodar.

A memória da gente, eita oceano profundo. Mas é um oceano generoso, porque se você tiver cuidado você vai ver que tudo que esse oceano engole ele devolve inteiro, depende só de você. E às vezes você já está tomando umas e outras há umas dez ou doze horas, o bar está meio fora de foco, mas alguém pede pra você dizer aquele verso de Fulano. Você vira um gole e procura no oceano de dentro de si. Como danado é esse verso? Começa como?... 

E de pouquinho, daquelas águas escuras e profundas, daquela nossa cisterna cheia de ecos, começa a brotar um pedaço, um cotoco de verso aqui, um frangalho de rima ali, uma redondilha rasgada acolá, e outras palavras vêm surgindo luminosas, dão um pequeno pulinho ao chegar à superfície, ficam boiando ali, e como por um milagre da matéria essas palavras vão se alinhando, ganhando forma e sentido, como se tivessem vindo todas soltas e misturadas mas com a ordem de se recompor quando chegassem à tona, e você cofia o rosto grisalho ou imberbe, ergue o indicador e começa a recitar.




4079) Querer sempre o melhor (19.3.2016)



Esta expressão vive na moda, e nunca deixa de me irritar um pouco. Pessoas dizem: “Ah, eu exijo sempre o melhor.” À primeira vista, parece birra minha com quem é muito rico. Pela lógica vigente, o melhor é sempre o mais caro. Se o vinho A custa 30 reais e o vinho B custa 40, B é melhor do que A. Um carro que custa 100 mil reais, então, é necessariamente melhor do que um carro que custa 50 mil, e se o seu carro custou 50 você deveria se esforçar mais, trabalhar mais, produzir mais, ganhar mais, para poder ter o que realmente importa, o carro de 100 mil. (Depois vai entrar em cena o carro de 200 mil, e tudo recomeça. É uma extorsão fractal expansiva.)

A neurose consumista é sem cura. Quando a conversa chega aí, eu me faço de doido e mudo de assunto. Mas o mesmo sintoma reaparece quando alguém me pede dicas de leitura. Quem pede dica de leitura muitas vezes o faz porque tem pouco tempo para ler, quer ir direto ao filé. Eu vivo cercado por pessoas que trabalham mais do que eu, trabalham 10, 12, 14 horas por dia. (Eu também; mas metade desse tempo é lendo. Não sei se devo considerar minha leitura como trabalho, até porque tenho prazer nela, e diz o catecismo puritano que trabalho que dá prazer não é trabalho e não deveria ser remunerado.)

“BT, eu não conheço muito a literatura policial. Quem é o melhor autor policial?” Eu respondo: “Bem, você poderia ler Raymond Chandler. Ou Ruth Rendell. Ou Cornell Woolrich.” Mas aí a pessoa diz: “Mas quem é o melhor de todos?” Eu respondo: “Olha, em literatura não existe isso de ‘o melhor’. Tudo é muito subjetivo.”  E aí vem a frase definitiva, que já ouvi tantas vezes: “Ah, sinto muito, eu não tenho tempo pra ficar testando. Quero conhecer o melhor. Se não sabem quem é o melhor, não pode prestar”.

A pessoa que “quer somente o melhor de algo” não está interessada nesse algo. Você só conhece algo de verdade se experimentar o melhor, o bom, o médio, o ruim e o pior que existe naquele âmbito. É uma espécie de lei da vida. Imagine alguém que quisesse entender de futebol mas não tivesse paciência de assistir os 90 minutos de um jogo, quisesse ver apenas os “melhores momentos” – e depois saísse cagando regra sobre o que foi aquela partida, e sobre o futebol em si. Para conhecer FC, por exemplo, não basta ler os melhores (LeGuin, Dick, Gibson, Clarke, Lem, Ballard...). É preciso ler algumas centenas de romances e de contos de todos os tipos, em todo o espectro de qualidade literária possível. Só se conhece algo quando se conhece esse algo em todas as direções, em toda a variedade de sua experiência, uma experiência que o “melhor” nunca consegue abarcar sozinho.