quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

4054) Gosto e qualidade (19.2.2016)



Uma vez, no Cineclube de Campina Grande, preparamos uma lista dos melhores filmes do primeiro semestre. Todos líamos a crítica cinematográfica dos jornais da Paraíba, de Pernambuco, Rio e São Paulo. Sabíamos quem eram os diretores endeusados e quem eram os execrados, quem eram os gênios imprevisíveis e quem eram os “artesãos competentes” (termo levemente depreciativo).

Um filme que me causou uma impressão muito forte na época foi O Diário de Anne Frank de George Stevens, com Millie Perkins no papel da garota judia cuja família se esconde num sótão de Amsterdam durante mais de um ano mas acaba sendo descoberta pelos nazistas. Ao mesmo tempo, fiquei fascinado por Jules et Jim de Truffaut, que ente outros méritos enriqueceu meu conceito de beleza feminina ao me deparar com a anti-hollywoodiana Jeanne Moreau. Não hesitei, e na minha lista cravei palpite duplo. Indiquei o filme de Stevens como “Melhor Filme do Semestre Pelo Meu Gosto” e o de Truffaut como “Melhor Filme do Semestre, Cinematograficamente”. Achei que as duas obras não estavam “disputando a mesma Liga”, como dizem os norte-americanos.

Li há pouco um artigo de Jerry Fodor sobre ópera, onde ele diz: “Se você é apreciador de ópera, é bem possível que seja um admirador de Puccini. Mas provavelmente você acha que não deveria sê-lo. O gosto por Puccini é algo que é desaprovado inclusive pelos que o compartilham. Como se supõe que preferência pessoal e avaliação crítica devem coincidir, numa sensibilidade artística bem fundamentada, as óperas de Puccini colocam um pequeno mais genuíno paradoxo crítico.”

Nosso gosto pessoal e a opinião dos críticos coincidem apenas de vez em quando. A expressão “gosto não se discute”, para mim, revela um desejo de não querer conhecer a opinião dos críticos, de não querer discutir e aprimorar conceitos. Não se trata, na verdade, de gostar, e sim de perceber. Eu leio os críticos para tentar enxergar o que eles enxergam nos filmes, e decidir se aquilo me serve ou não. Leio para ser capaz de perceber melhor; para não ficar trancafiado no meu modo de ver de hoje.

Se eu gosto da ópera de Puccini é problema só meu, mas se a crítica oficial não gosta, é problema de todos. Em qualquer cultura há um saber oficial que, certo ou errado, é levado em conta na convivência social. Confrontar nossos gostos e porquês com os da crítica oficial não é obrigação de ninguém, mas é necessário para quem quer aprender a perceber melhor. Não basta, neste caso, dizer que A é bom ou B é ruim. É preciso começar a discutir a sério o que é arte, o que é música, o que é ópera, etc. Ninguém é obrigado a fazer isso, mas só evolui quem faz.




4053) Dicionário Aldebarã XII (18.2.2016)


(ilustração: Charles Demuth)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Karyang”: reunião de amigos para relembrar fatos ocorridos muito tempo atrás. “Vuvitos”: xícaras para café ou chá, cujo fundo se eleva à medida que há menos líquido nela. “Arnantrim”: a disposição peculiar dos vasos de plantas numa casa, nas áreas que em alguma hora do dia ou época do ano estarão sendo banhadas pelo sol. “Dalhassa”: escudo quadrado de combate, imantado, capaz de capturar armas inimigas.

“Satonima”: pequena sanfona com poucas teclas, que só consegue tocar meia dúzia de músicas, conhecidas por todos. “Balâmias”: cantigas saudosas onde cada improvisador principia dizendo o nome de sua terra natal e depois tentando encaixar versos com o maior número possível de rimas para ele. “Triamondes”: uma complexa hierarquia de favores mutuamente devidos, que em algumas aldeias chega a ter mais importância do que os laços de parentesco.

“Luhrvins”: sucos de frutas, de cores e densidades diferentes, que são misturados nas jarras e nos copos, visando efeitos cromáticos. “Andigoom”: o uso de bandeiras com símbolos coloridos, hasteadas junto à porteira de entradas das fazendas, para passar recados aos vizinhos. “Gundrillans”: espécie de besouros de carapaça colorida que se movem muito lentamente e são colocados nas paredes para formar desenhos ornamentais que se modificam aos poucos.

“Gampras”: movimentos de dança tradicionais, complexos, que em festas familiares cada dançarino tem que executar no centro de uma roda, acompanhando qualquer música tocada. “Klidudu”: estilo de decoração caseira envolvendo objetos aleatórios arrumados em volta de uma lâmpada que, quando acesa, projeta na parede formas ou palavras feitas das sombras. “Viniloy”: servidores públicos presentes em cada bairro para dirimir questões legais entre as pessoas, através de hipnose coletiva.

“Renevins”: pequenas serpentes domésticas, inofensivas, inteligentes, que ajudam na limpeza de lugares estreitos e de difícil acesso. “Lumlums”: hélices colocadas em pontos estratégicos da casa (janela, portas, clarabóias) para captar as correntes de ar e redistribuí-las, melhorando a ventilação interna. “Abôndis”: testes escolares onde, na hora que toca o recreio, cada aluno só tem direito de sair e brincar se der a resposta certa a uma pergunta feita de improviso pelo professor.