quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

4036) "O original de Laura" (29.1.2016)



Antes de morrer num hospital, em 1977, Vladimir Nabokov vinha trabalhando num romance, que acabou ficando incompleto. Ele afirmara já ter a história pronta na cabeça, mas seu método era meticuloso, punctilioso. Costumava escrever à mão, em pequenas fichas ou cartões, pautados, com lápis de grafite. Aqui e ali, ele borra linhas inteiras com o lápis, ou apaga com borracha palavras específicas, e sobre a mancha ele desenha outra, com letra miúda, clara, decifrabilíssima. Escreve lá no seu impecável inglês, mas como manuscreve com frequência as letras soltas, mesmo quando cursivas, isso dá a um texto-de-próprio-punho seu uma aparência meio cirílica.

Digo isso porque o que ficou do romance O original de Laura foram mais de 100 desses cartões, com fragmentos de várias cenas, diálogos, monólogo interior de um personagem, etc. Uma coisa ainda rarefeita demais para poder ser chamada de romance, mas como é de um conhecido enigmista, os demais enigmistas arregaçaram as mangas. Nabokov tinha pedido que queimassem os cartões, se o livro ficasse inacabado. A viúva não os queimou enquanto foi viva. O filho único e herdeiro, Dmitri Nabokov, publicou. Perguntaram-lhe com que autorização, e ele disse: “Sonhei com meu pai. Ele me disse que tudo bem.” 

A edição brasileira (Objetiva/Alfaguara, 2009, trad. José Rubens Siqueira) traz na página par, à esquerda, a reprodução de cada um dos cartões, e na página ímpar à direita a tradução do que está escrito nele.  Com fidelidade às peculiaridades de grafia, espaços em branco, disposição espacial das frases, etc.

Raymond Chandler cortava folhas tipo A4 horizontalmente, o que lhe dava dois retângulos de papel que, na máquina de escrever, viravam sua unidade básica. Cada segmento desses tinha sua própria unidade, mesmo que parte de uma cena maior (de ação, de diálogo, de narração, etc.).  Mas Chandler era uma metralhadora na máquina, ao passo que Nabokov parece ser aquele cara que anda com umas fichas e um toco de lápis com borracha no bolso do paletó. Os tempos mortos da vida já são muitos. Bora trabalhar.

Ah, sim, o livro é bom? Bem, tem muitos detalhes bem trabalhados, as frases surpreendentes, os adjetivos mordazes. Isso tudo pode estar presente numa obra mesmo que não haja história nenhuma, ou somente uma nesga dela, como é o caso. Mas não deviam ter queimado?  Não. Queimar é uma pena excessiva. Se o livro for ruim, publicar já é punição suficiente. O livro tem uma interessante subtrama, meio Colin Wilson, dos exercícios de um sujeito para criar uma imagem mental de si mesmo, imagem tão real que ele possa, obliterando-a na mente, obliterar-se no mundo.