quinta-feira, 1 de setembro de 2016

4152) O Trazedor (1.9.2016)



(ilustração: Clarividência, René Magritte)


Minha escola de tradução foi aula vaga na faculdade, biblioteca, caderno, caneta e dicionário. (Isso se eu descontar minhas experiências adolescentes de tradução de letras de músicas, começando por Ray Charles e “Eu Não Posso Parar, Amando Você”).

Profissionalmente, comecei a traduzir por volta de 1986, por indicação de Julio Ludemir. Livrinhos de bolso, de banca-de-revista: histórias de amor, de faroeste. Alguns eram bem ruinzinhos. Outros tinham uma certa aventura, uma confiança narrativa que tornava suas fórmulas menos previsíveis. É bom começar a traduzir pelo material profano, barato, pedestriano mas bom de entretenimento. Muitos querem começar pelos autores que mais admiram, e dão com os burros nágua.

Assim, quando em 1987 recebi da Editora Récord um livro de L. Ron Hubbard, soltei dez foguetões comemorando o upgrade. Quando peguei um Isaac Asimov me senti os próprios deuses.

Traduzo por dinheiro, em primeiro lugar, e por amor à arte em segundo. (Acho que essa ordem está errada. Se o amor à arte desaparecesse eu não sei se faria, por dinheiro somente, uma coisa tão cansativa e tão consumidora de tempo.) Em todo caso, eu ainda acho quem me pague mais de 30 reais por lauda traduzida, e, como autor, meu sonho era encontrar quem me pagasse o mesmo por uma lauda escrita. Não existe. Se existisse, eu já teria publicado uns dez romances.

Isso me obriga a traduzir somente o que posso traduzir rápido: seria ótimo poder fazer 2 a 3 mil palavras por dia. Parei de traduzir livros durante anos, depois de 1994 porque me apareciam trabalhos que pagavam muito melhor. Fiquei traduzindo somente alguns contos das antologias que eu mesmo organizava. Mas era menos pela grana do que pelo gosto de “traduzir Fulano”.

E só voltei porque agora tem Google, tem tradutores online (mil), forums de discussão, o escambau. Hoje o ofício é bem mais aparelhado do que há 20 anos. E ainda assim a gente erra.

Quanto menos a gente relê e revisa mais a gente erra, e mesmo quando revisa mais, erra também.

Já vi editores reclamando ter recebido uma tradução onde nem corretor ortográfico foi passado, nem os erros de digitação foram corrigidos. E já entreguei originais assim, só para evitar uma desgraça maior. É arte, mas é profissão também, é “silviço”. Nem todo dia a gente acerta, e todo time grande tem uma tarde no Maracanã que é pra esquecer.

Cada um tem seu método, sua linha de montagem de-um-homem-só. Pense Carlitos apertando parafusos em Tempos Modernos. O arquivo final é enviado para a editora com a rubrica VALE ESTE e na mesma noite é enviado outro com a rubrica VALE ESTE 1.

Ninguém pense que depois de digitada a palavra FIM o trabalho acabou. O suposto fim é o fim da primeira volta no circuito. É o recomeço, o eterno retorno. Aquela frase problemática deixada para trás há quatro meses começa a reaparecer no horizonte.

Volto ao começo, e vou saltando ponto-a-ponto para resolver as dúvidas, uniformizar termos, escolher entre opções, fazer cair cada ficha.

O primeiro rascunho é um matagal de [dúvidas???], de [alternativa 1 / altern. 2 / alt. 3], que na primeira passada vão sendo deixadas para trás pra resolver depois, porque o importante no momento é não perder o ritmo.

Ritmo de prosa, principalmente prosa de ficção, romance de gêneros populares bem escritos, é muito difícil de readquirir depois, fazendo revisão salteada, um ponto aqui, outro ali. Ritmo, ou é na hora em que a frase está passando, ou nada.

Depois, volta-se ao começo. Guarda-se o livro original, e se revisa frase a frase o livro todo, considerado agora como um texto que vai falar só por si. É nessa fase que se dá o polimento final no ritmo e na melodia.

Ganha-se algum dinheiro. E alguma luz com isso.

Há alguns romances que prefiro não ler logo. Prefiro traduzir à medida que vou lendo, no ritmo da narrativa, traduzindo um parágrafo sem saber ainda o que há no parágrafo seguinte. Vou passando por cima das palavras que não entendo, nome de planta, nome de roupa, detalhe, deixo o original [entre colchetes] e sigo, para não perder o ritmo da narrativa. Resolvo na revisão.

Outros livros requerem leitura prévia, pra não se perder. No meu caso, ficção científica. A maioria dos textos de FC propõe universos novos, criaturas desconhecidas, termos técnicos inventados pelo autor, uma enciclopédia inteira de informações que não adianta buscar no Google, porque só tem naquela obra.

A maior parte dos neologismos de FC, quando o autor é atento, se resolvem na terceira incidência. O autor sabe que aquela palavra não existe, a gente não sabe o que é o verbo “grokkar”. Na sequência da história esses termos se auto-explicam. Mas é preciso ler na frente. Em geral, pelo menos um capítulo inteiro adiante, para poder fazer uma idéia geral de que mundo é aquele.

Em textos assim, o tradutor tem que ser o batedor de si mesmo, ir na frente analisando o terreno e voltando para informar o grosso da tropa. (O grosso da tropa é ele mesmo também.)

Traduzir é escrever. Traduzir é trazer. O tradutor é um escritor sem licença para inventar.







Um comentário:

Carmelo Ribeiro disse...

Caro Braulio,

O historiador é também um escritor sem licença para inventar.