terça-feira, 28 de junho de 2016

4128) O Natal, o Carnaval e o São João (28.6.2016)



“Existe o tempo de apertar o pavio da vela”, diz o Eclesiastes, “e o tempo de acender.” 

Não, o Eclesiastes não diz especificamente isto, mas a verdade é que os tempos se sucedem em função de uma lei causal, não em função de nossa conveniência. O regimento interno do mundo tem um artigo dizendo que cada coisa na vida vem, ou deveria idealmente vir, o que dá no mesmo, no momento certo para a gente desfrutar.

Em vista disto, proponho meu axioma número um: “O tempo certo para o Natal é a nossa infância”. Como diria Sinhozinho Malta, chacoalhando a joalharia: “Tô certo ou tô errado?”. 

Na infância, até o mais salafrário dos futuros raparigueiros é a pureza em pessoa. Ele acredita que o algodão é neve, e acreditaria que crediário é dinheiro, se alguém se dispusesse a lhe explicar. Acredita na existência de Papai Noel, e se alguém lhe mostrasse o quanto é improvável esse “plot” envolvendo Lapônia, renas, trenó, tempo hábil de deslocamento e distribuição logística de cargas, ele retrucaria com o mais invulnerável dos argumentos, um fato: a caixa com o sonhado PlayStation reluzindo ao pé do pinheirinho piscante.

A infância é o tempo do Natal, de rasgar sofregamente o papel estampado, quase arrebentar a tampa de papelão que se ergue como Derradeiro Obstáculo à Visão Beatífica... E o que sai lá de dentro? Uma divindade refulgente? Não, apesar do tributo pago ao bezerro de ouro: um sonho impossível tornado realidade. 

O sonho de fazer teletransportar, mediante anseios, meios-pedidos, sugestões, melancolias inexplicáveis, dedos hesitantemente correndo sobre uma página de revista e indicando um produto ao olho presciente e calculista de um adulto, enfim: teletransportar por meios psico-econômico-científicos desconhecidos (mas certamente eficazes) um objeto que estava numa vitrine lá no centro da cidade para uma caixa de papelão aqui no meu colo, e não é por outro motivo que ainda hoje vou às lágrimas quando ouço Luís Bordón – A Harpa e a Cristandade.

Corramos um véu sobre as chantagens, as alianças espúrias, as delações premiadas, os subornos imperceptíveis, as guinadas morais, as vergonhas-alheias, os inesperados triunfos, as imprevistas responsabilidades, tudo o que a infância nos obriga a executar para virar gente. O fato é que, quando abrimos os olhos, ela se foi de repente. Negociamos tanto para sair dela, e agora a porta dela se fechou e é só para a frente que podemos saltar.

E vamos parar na famosa juventude.  Ponho de novo a coroa-de-louros de profeta e anuncio o axioma número dois: “O tempo certo para o Carnaval é a juventude”. 

Pense numa festa e num período pra darem certo que só caçuá em bêsta!  A juventude é uma doença infantil da vida humana. A gente pensa que de agora em diante tudo vai ser gratificação dionisíaca, com breves intervalos de poesia apolínea para acalmar os batimentos cardíacos. E o Carnaval nos serve como uma luva de carne.

Não há melhor época para entender a essência do Carnaval do que a febre hormonal dos vinte e tantos anos. Diante daquela coorte de deusas eufóricas, de odaliscas lantejouladas, de huris de vinho em punho, de hetaíras ressumantes, o sujeito olha para a câmera ou a quarta-parede imaginária, diz: “Se eu gritar por socorro não me salve”, e pula. É Carnaval; todos pulam. Todos pularam. Eu também pulei.

Carnaval tem uma coisa interessante que é o desabrochar de carismas nas circunstâncias em que aparentemente todos se nivelam em torno do canto do bode. E eu já fui testemunha, protagonista e coadjuvante em mil cenas onde o carisma salvador brotou do ator menos provável, do papel menos favorável, do arranjo menos ad-hoc. Vi noitadas de farra em que o talento que mais brilhou foi o talento inconteste celebrado por todos, e vi noitadas em que um talento obscuro se ergueu e o eclipsou a ponto de fazê-lo bater palmas com os demais e louvar a divindade da Lua, a deusa que muda todo mês, mais esperta e mais safa do que o Sol, que só muda de luz quando Ela atravessa o seu caminho.

Não posso me alongar sobre o Carnaval sem reviver aquelas horas que eram como correntinhas-de-clipes, intermináveis, reiterativas, sempre parecidas e sempre diferentes, variações barrocas em torno de uma tema gozoso que nos aprisionava em chuva, suor e cerveja. 

Quem brincou um Carnaval já foi jovem, mesmo que tenha estreado nesse ramo com mais de setenta. Quem quiser que reclame. O fato é que quem estava acendendo cigarro com fogo e bebendo álcool éramos nós, mas curiosamente, historicamente, estatisticamente, quando alguém tocava fogo no mundo não era um de nós, em geral, era um deles.

Muito bem. Chega de acondicionar com circunlóquios o Inefável. E para a velhice, a madureza (dirá o leitor), qual a festa que mais se enquadra? E eu vos direi: o São João. 

São João não é necessariamente uma festa de velhos, mas é pra quem já deu voltas no circuito e sabe o formato da pista. O formato envolve plantio, colheita, consumo e plantio. O formato envolve gozo, sofrimento, morte e ressurreição. O formato envolve, neste caso específico, fogo e inverno. 

O Natal é uma festa voltada para o Futuro (“tudo sempre vai ser bonito assim, acredite, é para sempre”), o Carnaval para o Presente (“nada será como antes amanhã”), mas o São João é uma festa voltada não propriamente para o Passado, mas para o Passar.

A lenha, o fogo, a cinza. 
O fogo, a cinza, a terra. 
A cinza, a terra, a lenha. 
A terra, a lenha, o fogo. 
A lenha, o fogo, a cinza.

Isto é tudo que conseguimos saber, e uma pequena parte do que deveríamos.




quinta-feira, 23 de junho de 2016

4127) Um "Divertimento" de Cortázar (23.6.2016)




Escrito, ou pelo menos finalizado, no carnaval de 1949, Divertimento (Madrid: Alfaguara, 1986) é uma das primeiras obras em prosa que Julio Cortázar escreveu e publicou, tendo ficado inédita por muitos anos. Na contracapa, Cortázar explica o que salvou o livro: “Me agradam de maneira irremediável sua linguagem livre, sua fábula sem moralzinha, sua melancolia portenha, e também porque o pesadelo de onde nasceu continua desperto e anda pelas ruas.”

Ele se referia a este livro e a El Examen, escrito em 1950 e publicado apenas em 1986 após a sua morte. Eram livros de uma Buenos Aires meio asfixiante pelas guerras políticas. O clima de repressão fez o escritor mudar-se para Paris em 1951. Depois dessa data, voltou a sua terra natal apenas a trabalho ou a passeio.

Divertimento é a história curta (146 páginas) de um grupo de amigos argentinos: artistas, boêmios, reúnem-se para conversar, ouvir música, beber, rir, discutir filosofia ou literatura, pintar. Neste aspecto, pode ser visto como um protótipo de O Jogo da Amarelinha (1963) que lida com pessoas um pouco mais velhas e já em Paris. O narrador da história, na primeira pessoa, é chamado pelos outros de O Inseto. Há vários detalhes interessantes, como um poeta que tenta produzir auto-alucinações verbalizadas em voz alta, como os surrealistas franceses faziam com sua “escrita automática”. Há uma espécie de mago meio charlatão, que parece invocar espíritos. Diz o Inseto a certa altura: “Nossos gostos eram Florent Schmitt, Bela Bartok, Modigliani, Dalí, Ricardo Molinari, Neruda e Graham Greene. O gato Thibaud-Piazzini escapou por um triz de se chamar Paul Claudel.”

Há poetas de estilos variados. Pergunta-se a um deles se ainda produz sonetos e ele diz: “Sim, mas como alguns produzem cálculos na bexiga.”  Há um fio de narrativa de mistério que a partir de certa altura arrasta a história rumo a um clímax. Renato, um pintor, mostra aos amigos um quadro em que está trabalhando, quadro que mostra uma rua ao amanhecer, com casas reconhecíveis, e duas figuras humanas misteriosas. A partir daí, alguns personagens se entregam a uma tarefa aparentemente impossível e absurda: andar pelos bairros da cidade à procura da rua mostrada no quadro de Renato. É uma dessas situações que Cortázar apreciava, como leitor e como autor: uma obra de arte ou um simples objeto cuja presença produz uma modificação ominosa na realidade. Outra subtrama é: a Busca Impossível. Em Cronópios & Famas ele sugere dar um nó num fio de cabelo, despejá-lo pela descarga da privada, e depois sair desmontando o edifício e esvaziando tubulações e manilhas grudentas de lodo secular, rua afora, até reencontrá-lo.

Falei em O Jogo da Amarelinha; não lembro de nenhuma cena de espiritismo nele, mediunidade, mesa Ouija ou coisa semelhante. Estas aparecem em Divertimento. Os dois livros têm em comum o ambiente de confraternização artístico-boêmia, mesclado com alguma rivalidade filosófica ou política. Essas turmas tornaram-se uma espécie de RPG poético-jazzístico-filosófico a que os personagens de Cortázar se dedicam. É o Clube da Serpente frequentado por Oliveira, no Jogo da Amarelinha; os exilados políticos de Livro de Manuel; os personagens meio bidimensionais, mas rebuscados, de 62: Modelo para Armar e outros. Turmas de esgrimistas verbais metendo-se em rosários de episódios com um pé em Jorge Luís Borges e outro em Jean Cocteau.

Por falar em poesia, Borges de vez em quando tirava um chapéu cerimonioso à milonga, e mais de uma vez arriscou suas estrofes nesse gênero, ou mescla de gêneros. Cortázar arriscou-se menos como poeta, mas uma prova do seu ouvido é este parágrafo em Divertimento:

“... e do picape saía a voz de Hugo del Carril: que el bacán que te acamala tenga pesos duraderos, que te abrás en las palabras con cafishos milongueros, y que digan los muchachos: “es una buena mujer.”

Pelo autenticidade do palavreado argentino não posso botar a mão no fogo, mas pela sextilha sim, porque é uma sextilha rimando ABABCD. (Imagino que seja citada, e não inventada. Hugo del Carril é um cantor de tango da geração de Cortázar.) Há uma milonga de Borges, Milonga dos dois irmãos, toda em estrofes de seis versos, mas com inversões de rimas, mais próximas do esquema do Martin Fierro, que Borges aliás conhecia muito bem. Tudo isto são pequenos detalhe cotidianos, da cultura radiofônica das ruas, que o autor insere como elemento realista numa trama próxima do insólito.


O fantástico cortazariano é mais uma questão de estranheza, presságio, simetrias assustadoras, alucinações, fatalidades. Muito daquilo que Freud chamou de Unheimlich, o Estranho. O sobrenatural aparece pouco. Suponho que logo após este livro ele já estava escrevendo os contos de Bestiário, onde essa tinta de fantástico se intensifica, como se alguém girasse só um pouquinho um botão, aumentando o contraste daquilo com o real-banal (que ele também reimagina tão bem). 





segunda-feira, 20 de junho de 2016

4126) T. S. Eliot, a poesia e a música (20.6.2016)



A imprensa literária tem comentado uma edição recente, em dois volumes, da poesia completa de T. S. Eliot, fartamente comentada. Eliot, mesmo incluído entre os Modernos, representa pra mim um lado conservador da poesia do seu tempo, no que isto tem de elogioso. Temática à parte, filosofia pessoal à parte, erudição à parte, o poeta Eliot é um poeta de musicalidade à flor do verbo.

Não é a musicalidade relativamente fácil de Poe, a quem chamavam de “the jingle-jangle poet”, ou “o poeta do retintim”, segundo Jorge Luis Borges. A melodia dos versos de Poe se organiza em geral numa mandala, num bordado simétrico onde não falta um ponto sequer. Já a melodia de Eliot é variável, é uma melodia irmã-gêmea do verso livre. O verso não é “livre” no sentido de que é um verso onde vale tudo, um verso que faz o que lhe dá na telha. É um verso de metro variável, que é livre porque parece estar metrificando a si mesmo enquanto nasce. Propondo (e cumprindo) novas regras de ritmo em cada palavra que vai articulando.

Isto porque Eliot, apesar das variações naturais ao longo da vida longa de um poeta, parece ter tido sempre em mente alguns juízos que emitiu em 1942, numa conferência intitulada “The Music of Poetry”. Ele diz, entre outras coisas;


Existe uma lei da natureza mais poderosa do que qualquer uma dessas várias correntes poéticas, do que as influências do estrangeiro ou do nosso passado: a lei de que a poesia não deve se afastar muito da linguagem comum e cotidiana que nós usamos e ouvimos. Seja a poética acentual, seja silábica, rimada ou sem rimas, de forma-fixa ou livre, ela não pode se dar o luxo de perder o contato com a linguagem sempre mutante da nossa fala comum.

Existe na melhor poesia dos séculos uma gravitação recorrente rumo à musicalidade da fala. Sempre haverá, é claro, o oposto disto, sempre haverá uma fascinação paralela pela poesia feita para os olhos: caligramas, concretismos, poema-processo. Nada disso, contudo, consegue invalidar (nem precisa) a poesia que pende para o lado auditivo, a percepção sensorial da melodia e do ritmo produzindo sentido através da fala poética.

Num artigo examinando esta compilação recente (feita por Christopher Ricks and Jim McCue, aqui: http://tinyurl.com/hgyawrs), Marjorie Perloff comenta alguns detalhes interessantes e obscuros sobre as grandes obras de Eliot. Ela cita um comentário do poeta sobre a origem do título de um dos seus poemas mais famosos, “The Love Song of J. Alfred Prufrock”:

Estou convencido de que esse poema nunca teria a expressão “canção de amor” em seu título se não fosse pelo título de um poema de Kipling, “The Love Song of Har Dyal”, que se grudou teimosamente à minha memória.

A poesia de Eliot é muito diferente da de Kipling, a qual, neste sentido, era uma poesia quadradona, como a de Poe: formas fixas, rígidas, obedecidas fanaticamente até a derradeira rima e a derradeira sílaba. É uma poesia que tem muito de canção, porque Kipling não apenas metrifica perfeitamente, mas manipula os acentos internos de cada verso de maneira tão cadenciada que cada poema seu parece estar pedindo para receber uma melodia. Toda vez que leio os poemas de Kipling tenho vontade de pegar o violão.

Num texto antigo aqui neste blog, escrevi:

Diz-se que Rudyard Kipling costumava compor seus poemas de cabeça, enquanto cuidava do jardim. Ficava solfejando hinos protestantes, baixinho, mas as pessoas da família sabiam que ele estava de certa forma “botando letra” nesses hinos – estava compondo um poema valendo-se da estrutura mnemônica do hino. Fico pensando que curiosa tese de doutorado isto poderia render, se alguém de cultura inglesa-protestante se desse o trabalho de comparar os poemas do mestre aos hinos em voga durante o seu tempo de vida. Como dizia o poeta – ‘de la musique, avant toute chose!’
(http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2010/02/1635-com-musica-nos-ouvidos-862008.html)

“The Love Song of Har Dyal”, de Kipling, na voz de uma mulher que espera o retorno do guerreiro que ama, é uma canção de amor mesmo, um lamento em nome de uma personagem, como as canções de amor dos personagens das peças de Brecht. É um gênero milenar, que toma a forma da cultura que deve conter dentro de si.

The Love Song of Har Dyal 

 

Alone upon the housetops to the North
I turn and watch the lightning in the sky—
The glamour of thy footsteps in the North.
Come back to me,
Beloved, or I die. 
Below my feet the still bazar is laid—
Far, far below the weary camels lie—
The camels and the captives of thy raid.
Come back to me,
Beloved, or I die! 
My father’s wife is old and harsh with years
And drudge of all my father’s house am I—
My bread is sorrow and my drink is tears.
Come back to me,
Beloved, or I die!

Já “Prufrock”, a canção de Eliot, embora tenha o amor como um horizonte inatingível, é tudo menos uma canção de amor. Prufrock é um personagem travado, reprimido, patético.  Até o nome sensaborão de J. Alfred Prufrock nos lembra o nome do anódino e vitorioso J. Pinto Fernandes usado por Carlos Drummond em “Quadrilha” (“Lili casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha nada a ver com a história”). Talvez seja até uma alusão indireta por parte de Drummond, já que o poema de Eliot, de 1915, possivelmente lhe era familiar.

A canção de amor de Kipling é tradicional e formulaica: forma fixa, rima regular (ABAB), estribilho. Pede para ser cantada com uma melodia também quadrada (no bom sentido). Já a canção de amor de Eliot tem rimas entrelaçadas, cadências variáveis, um desenho rítmico imprevisível em que nenhuma regularidade nos autoriza a prever de que tamanho será a próxima linha, mas quando surge ela prolonga harmoniosamente o desenho principal.

No ensaio que citei, Eliot afirmava: “Nenhum verso é livre para um homem que pretende fazer direito o seu serviço. (...) Uma grande quantidade de má prosa já foi escrita sob o nome de verso livre.”  Esse reconhecimento da necessidade rítmica do verso livre é um traço de união entre a obra dele e a de Manuel Bandeira, seu contemporâneo. O Itinerário de Pasárgada (1957) pode ser lido lado a lado com o ensaio de Eliot, na mesma defesa do verso livre como uma região de equilíbrio entre as formas fixas da tradição, a espontaneidade e vigor da fala, e as lições da música.

Alguém pode achar que essa discussão sobre verso livre é uma discussão de cem anos atrás, mas a verdade é que gerações sucessivas de novos poetas tendem a pensar que verso livre é verso banda-voou, é verso qualquer-nota, e que basta estar dizendo algo importante ou original. Cada um escreve com o que tem, mas que isto não nos impeça de ver a forma superior quando ela aparece.

Comentando os simbolistas franceses (com os quais se identificava mais do que com a poesia inglesa), Eliot dizia: “O prazer que se extrai da irregularidade desses versos se deve à sombra ou à sugestão da existência, por baixo dele, do verso de métrica regular.” E ironizava certa produção poética de D. H. Lawrence dizendo que seus versos livres “pareciam mais anotações feitas aos poemas do que poemas propriamente ditos.”

Ezra Pound, o homem que copidescou “The Waste Land”, dizia que a grande poesia era composta de três elementos: idéia, imagem e música. (Na terminologia dele, Logopéia, Fanopéia e Melopéia.) Eu diria que na poesia de hoje, vista em plano geral, do alto da montanha, é a música o que mais falta. E é mais uma vez o autor de “Prufrock”, em seu ensaio de 1942, quem afirma:

Um poeta pode sair ganhando muito do estudo da música; quando conhecimento técnico da forma musical será desejável eu não sei, porque eu próprio não tenho tal conhecimento. Mas acredito que as propriedades em que a música toca de perto o poeta são o senso do ritmo e o senso de estrutura. (...)  Um poema, ou um trecho de poema, pode tender a se realizar primeiramente como um ritmo peculiar antes mesmo de encontrar sua expressão em palavras, e esse ritmo pode fazer nascer a idéia e a imagem.








quinta-feira, 16 de junho de 2016

4125) Contracapa de Messenger (16.6.2016)



(ilustração: The Sea Hunter, de Alexis Solha)

&  todo elogio é um placebo 

&  ainda faremos festa junina com transcanjica, balões-drone e fogos holográficos 

&  guerrilha dadaísta ocupa TV e desencadeia mimimi ao tocar forró no Dia Nacional do Orgulho Blue 

&  não devemos julgar uns aos outros pelas nossas convicções políticas, se é que existe alguma 

&  bigamia: crime e castigo 

&  eu nunca vi nenhuma história passada no Céu que estivesse chovendo 

&  quanto menos um eleitor se interessa em entender de política maior a chance de estar votando nos seus próprios inimigos 

&  jornalista é a segunda mais antiga das profissões

&  pastel de carne é aquele que falta carne, pastel de queijo o que falta queijo

&  a coisa tá de tubarão perseguir baleia

&  um ventilador se movendo na velocidade de um relógio

&  a barra agora pesou pra quem não é da elite: não se-estremeça, não grite, o futuro começou 

&  burocracia é um sistema fractal onde cada fragmento é capaz de reproduzir integralmente as ramificações do todo

&  pelo andar da carruagem, quando o apocalipse zumbi acontecer será recebido com alívio

&  certa literatura consiste em cobrir com frases alheias a ausência de idéias próprias

&  é possível um indivíduo virar santo sem nunca ter feito o bem a uma só pessoa?

&  o Brasil tem 200 milhões de candidatos a ditador, armados de soluções infalíveis

&  a poesia é pedra lascada e a prosa é pedra polida

&  um professor de Lógica consideraria um absurdo ver um transatlântico cruzando o Pacífico

&  certos executivos têm olhos de vidro fumê, não se sabe o que acontece por trás deles

&  o tempo na verdade não passa, somos nós que passamos através dele

&  há tesouros tão grandes que não podem ser roubados, o máximo que se consegue é ir morar junto deles

&  assédio sexual é um homem tentando obrigar uma mulher a se comportar como um homem se comportaria naquelas circunstâncias

&  um computador de escritor é um canteiro de obras inacabadas

&  ler essas frases de auto-ajuda é o mesmo que passar açúcar numa ferida

&  um trumpete produz um filete de notas sucessivas capaz de dar a volta ao mundo em poucos minutos

&  não importa o estado real da empresa, desde que não se reflita no preço das ações

&  é um desses dias em que a gente se olha no espelho e murmura: “agora aguenta, véi”

&  o som de certas bandas parecem essas mesas de restaurante onde todo mundo fala ao mesmo tempo o tempo todo

&  a calçada é o embaixo-do-tapete da cidade

&  você é o gundará do meu senzoliú

&  existe mestre para repassar respostas e mestre para desencadear perguntas

&  o Destino é a pauta do caderno, o livre arbítrio é a caligrafia do texto

&  ah um cofre-forte que pudesse ser trancado pelo lado de dentro

&  o sucesso é o ar rarefeito dos picos, o anonimato é a pressão das fossas submarinas

&  dou um prognóstico na tua profecia e ainda ofereço dois palpites de lambuja

&  o verdadeiro ambicioso não destrona o rei, ele o canibaliza vivo










segunda-feira, 13 de junho de 2016

4124) Quinze escritoras (13.6.2016)



Tem circulado no Facebook uma espécie de corrente (que me foi repassada) pedindo que a gente cite 15 autores que nos marcaram.  Tempos atrás fiz uma dessas listas, e uma amiga, cuja opinião respeito muito, chamou minha lista de machista, porque só citei autores homens. Eu nem tinha reparado. Claro que não foi proposital.  Como a maior parte dos preconceitos, meu machismo deve ser inconsciente, embutido no piloto automático. O que não me impede de ter grande carinho e gratidão por cada escritora da lista abaixo (que poderia ser maior, evidentemente). Vamos às damas, portanto.

1. Agatha Christie. Era a autora preferida de minha avó Clotilde. Os primeiros dos mais de 30 livros seus que li foram, aos dez ou onze anos, O Caso dos Dez Negrinhos e O Assassinato de Roger Ackroyd. Com ela me acostumei a admitir o maquiavelismo por trás das aparências bonachonas, das reputações inatacáveis dos cidadãos acima de qualquer suspeita. E aprendi que às vezes quem está contando a história do crime não é um narrador neutro, é o próprio criminoso. (Vale para nações, civilizações inteiras.)

2. Cecília Meireles. Os primeiros livros papel-bíblia que comprei, aos 14 anos, foram as poesias completas dela e as de Manuel Bandeira. Que releio até hoje. O Romanceiro da Inconfidência já bastaria para tornar qualquer pessoa um Poeta Maior. Posso ter herdado dela um certo desligamento, uma certa ausência da vida prática, um jeito mais de contemplar do que de agir. Não me arrependo.

3. Emily Bronte. Li O Morro dos Ventos Uivantes na adolescência. Foi o único livro dela que li, mas é como dizer: “foi a única bomba atômica que caiu em cima de mim”. Meus referenciais de literatura gótico-romântica passam todos por ali, misturados às ilustrações de Fritz Eichenberg na edição da José Olympio.

4. Mary Shelley. Outra de quem só li um livro (e alguns contos esparsos, tentando achar algo que coubesse numa das minhas antologias). Frankenstein fundou, para alguns, o romance moderno de terror, aquilo que chamo de “ciência gótica”. Grande escritor é aquele que cria um personagem e desaparece por trás dele. E neste livro pela primeira vez simpatizei com o monstro, entendi o lado do monstro, senti que por um triz o monstro não era eu.

5. Simone de Beauvoir. Quando li O Segundo Sexo, com vinte e tantos anos, eu já estava arriado-dos-quatro-pneus por ela, graças às Memórias de uma Moça Bem Comportada, A Força da Idade, Sob o Signo da História. Vieram ainda A Cerimônia do Adeus, A América Dia a Dia e algum outro que não lembro agora. Eu a achava linda, e mesmo com a propalada visão-crítica-que-é-apanágio-da-maturidade continuo achando.

6. Nélida Piñon. Nos anos 1970 ela foi uma autora que li miudamente, atentamente, decifrando livros densos, impressionantes, meio oníricos, meio poéticos, como Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo (sua estréia, pela editora GRD), A Casa da Paixão, Sala de Armas e outros. Em matéria de “prosa elevada” entre nós, para ombrear com ela só mesmo Osman Lins e muito poucos.

7. Shere Hite & Nancy Friday. Vou trapacear um pouco e dar uma só vaga para estas duas compiladoras enciclopédicas da vida sexual nos EUA. Shere Hite publicou dois Relatórios Hite, um sobre mulheres, outro sobre homens (li os dois na íntegra). Nancy Friday escreveu livros sobre fantasias sexuais pesquisadas por correspondência (My Secret Garden, O Homem e o Amor). Depois de ler estes quatro livros a gente percebe que toda exceção não passa de uma regra que ainda não cresceu o bastante, que em sexo tudo é possível, que tudo pode ser normal entre quatro paredes e em pé de igualdade, que cada um gosta do que gosta, e que não existe um chinelo velho que não encontre um pé doente.

8. Karen Blixen. Também conhecida como Isak Dinesen, era uma baronesa dinamarquesa que escrevia em inglês como gente grande. Suas histórias correm o tempo todo numa raia do insólito que a faz de vez em quando triscar no fantástico. Sua prosa é brilhante em Winter Tales, Sete Contos Góticos, Last Tales.

9. Emily Dickinson. Acho essa “solteirona reclusa” o maior mistério literário da América. Inventou uma linguagem própria, pontuação, notação própria, imagens surpreendentes de um poder simbólico desconcertante, e que só se revela em parte. É uma dessas poetas que inventam não apenas uma obra, mas uma poética só sua. Parecem versículos bíblicos, pequenas adivinhações, bilhetes anônimos e incompletos. Muito difícil de traduzir.

10. Dorothy Parker. É o oposto simétrico de Dickinson. Extrovertida, famosa, língua ferina, teve uma vida atribulada e cheia de paixões e sexo. Contista  mordaz e precisa (Big Loira), poetisa de versos curtos, compactos, dolorosamente verdadeiros. Também difícil de traduzir, embora mais coloquial, mais urbana, mais moderna.

11. Hilda Hilst. Por falar em quem cria uma poética própria, a paulista Hilda me deixou bambo nas cem primeiras tentativas de ler sua poesia densa, ziguezagueante, de imagens consistentemente inesperadas. Seus poemas estavam espalhados pelas publicações literárias da imprensa alternativa dos anos 1970 e eu os lia com o cuidado de quem desarma uma bomba. Depois de certa idade, começou a publicar narrativas fesceninas e virou uma “velha dama indigna” igualmente deleitável.

12. Shirley Jackson. É engraçado, nunca li o livro mais famoso dela, Hill House, tido como o melhor romance de casa mal assombrada. Mas os contos incluídos em The Lottery e em Come Live With Me vão do gótico ao doméstico, do bizarro ao cotidianamente banal, e ninguém melhor do que ela escreve histórias de mulheres que de repente jogam tudo pro ar, chutam o pau da barraca, mudam de nome e vão morar num hotel numa cidade desconhecida.

13. Clotilde Tavares. Pode parecer nepotismo. Mas minha irmã mais velha dividiu comigo livros, filmes e discos até que eu fiquei um rapazinho com 16 anos, capaz de escolher sozinho o que ia ler. Suas novelas de histórias encapsuladas (A Botija, O Monstro das Sete Bocas) reelaboram histórias que ouvimos na infância, mas ela também escreve teatro, poesia, cordel, ensaio, o escambau. Não é mais minha professora, é minha colega, mas ainda influencia.

14. Karen Joy Fowler. Minha professora na Clarion Workshop (em 1991) já foi publicada no Brasil, com O Clube de Leitura Jane Austen, mas ninguém se animou a publicar seus contos brilhantes, premiadíssimos, onde o protagonismo feminino é colocado sem arrogância nem coitadismo; e o romance Sarah Canary, sobre uma mulher alienígena (embora o livro nunca diga isto) que aparece na região rural dos EUA por volta de 1880. Vi poucas pessoas falarem sobre literatura com mais propriedade e finesse.


15. Rachel de Queiroz. Meu pai tinha um volume dela, da José Olympio, com o título Três Romances, que incluía O Quinze, Caminho das Pedras e João Miguel. Nunca me saiu da cabeça a linha inicial deste último, algo como “João Miguel sentiu a peixeira rasgando a barriga do outro homem, depois puxou a arma, jogou longe, saiu correndo”. Não conheço melhor exemplo de início de narrativa in media res. Meio século depois, coloquei o conto de ficção científica dela, “Ma Hôre”, na minha antologia Páginas do Futuro – Contos Brasileiros de Ficção Científica





sexta-feira, 10 de junho de 2016

4123) A importância de uma boa história (10.6.2016)





(ilustração: Alesha Sivartha)

Uma pessoa acostumada a ler histórias, que as lê com certa frequência, que se diverte (ou se emociona, ou se distrai, ou se inspira, etc.) com elas, fará algum esforço para seguir uma história até o fim, se existir algo ali que lhe desperte interesse e que lhe dê a sensação de que ir até o fim vai valer a pena.

Se naquele conto (ou romance, ou filme, ou peça teatral, etc.) houver uma história que desperte a curiosidade, a atenção, o envolvimento do leitor, ele próprio se encarregará de produzir reservas de paciência. Ele dará um crédito de confiança ao autor quando este quiser exibir floreios estilísticos, discursos ideológicos, propostas vanguardistas, ou o que for. Se a história for interessante, o leitor vai em frente.

Um livro é como uma lâmina dágua onde de meio em meio metro aparece uma pedra confiável, formando uma trilha. A pessoa pula de pedra em pedra, confiando que não vai faltar logo adiante uma nova pedra onde possa pular com segurança. Uma história precisa fornecer essas pedras.

Uma relativa esperteza de James Joyce (cujo senso de marketing, imagino, era tão hipertrofiado e bizarro quanto sua prosa) foi ter usado o Ulisses de Homero como escada, como grade, como meta-mapa para que os pobres leitores não se perdessem. Já se disse que a Odisséia é somente a história de um homem querendo voltar para casa depois do trabalho. Não sei se a frase é anterior ou não a Joyce, mas o fato é que o Ulisses dele era literalmente isso, era o sr. Bloom querendo cumprir as estações da sua cruz, para poder novamente adentrar o tálamo conjugal.

Muito pouca gente deve pegar o Ulisses de Joyce para ler sem saber de seu parentesco com a Odisséia de Homero. Sabendo que a história-por-trás-da-história existe, e é facilmente acessível, muitos leitores dedicam-se a compará-las e isto já lhes basta como incentivo para ler. Outros lerão em busca dos episódios de cunho fescenino, ou da linguagem desabrida. Outros pelos trocadilhos, que é só o que tem. Muitos, pela obrigação de ler e a culpa de não estar gostando.

O Catatau de Leminski parece à primeira vista um fluxo comentativo, não narrativo, mas os estudiosos percebem nele um fio de narrativa projetando o filósofo René Descartes no Brasil Holandês, em pleno delírio tropical. Ninguém (a não ser críticos especializados) lê o Catatau em busca de história. O que tem de história, que é bem pouquinho, não seduzirá jamais o leitor comum. Eu, pelo menos, o leio em busca de pepitas, em busca de frases, rimas, trocadilhos, alusões clivadas ao meio, pastiches, referências sagradas e profanas.

O ideal seria que um livro (qualquer narrativa) fosse lido no cru, sem opinião ou informação prévia. Uma leitura a partir do zero. Num caso assim, o autor fica com muito mais saldo junto a esse leitor se lhe fornecer o caminho-das-pedras do “q q tá contesseno”, como se diz na web. Faça o vanguardismo que quiser, mude as palavras que estão em tom maior para tom menor, escreva fosforescente ou em 4D: mas conte uma história ao leitor. É uma concessão tão pequena! Contar uma história ao leitor não é um pecado, assim como não o é compor uma melodia bonita. Tem muito leitor que só precisa de um álibi pra embarcar numa história.

Uma história é uma espécie de sintaxe, de sistema mimetizador das nossas experiências e expectativas. Se a maneira como os episódios se sucedem têm alguma lógica, o leitor aceitará uma total falta de lógica de algum outro lado. Se eu digo: “Todos os ontoratismos são mutérios; todos os mutérios são fardioplasmas; e todo fardioplasma é mull, portanto os ontoratismos são mulls.” Esse trecho faz sentido como um conjunto, mesmo que as partes que o compõem sejam indecifráveis. O que o sustenta como texto é a presença de termos de funções bem nítidas, como todo, ser, portanto, etc. O resto pode ser qualquer coisa. O caos só acontece quando não há sintaxe e não há desenvolvimento de uma idéia. Se eu digo: “Cataplasma justo tição mesa mesa alegre bambu fugir”, cada palavra isolada parece ter um significado óbvio, mas o conjunto não faz sentido.

Deve haver muito mais leitores em busca de histórias do que escritores que se dedicam a contá-las. Claro que a vontade não é tudo, querer não é sinônimo de conseguir. Claro, também, que não basta uma boa história para garantir a adesão do leitor, se o autor escreve mal, os personagens são banais, as situações são uma coleção de clichês. O bom leitor espera outras coisas além de um bom enredo. Mas uma história onde vários acontecimentos se desenrolam no tempo é a melhor das iscas para fazer o leitor querer saber o que vai acontecer em seguida. Se não fosse assim, se não houvesse uma história interessante sendo contada, ninguém leria catataus como a série Harry Potter, a série Uma Canção de Gelo e Fogo, nem Grande Sertão: Veredas, Moby Dick, Em busca do tempo perdido, Os detetives selvagens, Cem anos de solidão, Crime e castigo.

 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

4122) No tempo do cinema de arte (6.6.2016)




Numa entrevista recente no Literary Hub (http://lithub.com/salman-rushdie-on-poetry-being-a-reader-and-going-to-the-movies/), Salman Rushdie, que é um literato com espírito de cinéfilo, lembra a época de ouro do chamado cinema de arte:

“Eu acho que fui um cara de sorte em ser jovem num tempo em que o cinema do mundo inteiro passava por uma fase brilhante. Talvez seja difícil agora, na era do Netflix, explicar às pessoas a sensação de ir ver o filme novo desta semana e ser Pierrot Le Fou de Godard. E na semana seguinte havia um filme novo de Fellini, e na semana depois dele, o novo filme de Kurosawa. E na semana seguinte veríamos o novo filme de Bergman. E depois, o novo de Buñuel. E estes filmes nos quais pensamos hoje como os grandes clássicos do cinema mundial eram as estréias da semana.”

Rushdie está sendo benevolente e deixando de mencionar que essa época era também a era dos Épicos Halterofilísticos de Cinecittà, estrelados pelos Schwarzeneggers da época no papel de qualquer herói mitológico, os espada-e-saiote cujo sincretismo foi imortalizado em Hércules, Sansão e Ulisses (Ercole sfida Sansone, Pietro Francisci). Foi a época (pelo menos aqui no Brasil, não sei na Índia ou em Londres) de maior concentração de comédias bestas de Hollywood por hora de projeção, filmes estrelados por Doris Day, Elvis Presley, Rock Hudson, Dean Martin & Jerry Lewis, Pat Boone, o escambau, e eu assisti quase tudo.

Foi uma grande época não só para quem aprecia a arte cinematográfica, mas para quem gosta de se divertir no cinema.

Eu tinha pensado nisso vendo comentários de Julio Cortázar depois que se mudou de Buenos Aires para Paris. Talvez por se dirigir a um amigo artista plástico e poeta (Cartas a Los Jonquières, 2010) ele fale pouco em cinema, mas de vez em quando ele mostra que deve ter estava vendo os mesmos filmes que Rushdie (nessa época, ambos eram desconhecidos e inéditos, e ver aqueles filmes pode lhes ter encorajado a ambição):

“Mais notícias de Paris. Vimos Intermezzo pela companhia de Barrault (suponho que o viste em B. A.) e gostamos muito. Mas quem nos sacudiu de verdade foi La Strada [A Estrada da Vida], uma película italiana de Fellini que deixou Paris inteira com as patinhas para cima, e com razões. Não sabes se vai passar aí? É um produto quase indefinível, onde a pantomima está sempre presente através de sua estranha e assombrosa protagonista. Se passar aí, não deixes de vê-lo. Cedendo a uma fraqueza que nos custou 500 francos fomos ver On the Waterfront [Sindicato de Ladrões], o filme tão elogiado de Elia Kazan, com Marlo Blando [sic] de herói (acho que me equivoquei com o nome). Nos deparamos com a repetição de todas as receitas ianques, e com um grande ator. Mas o que pode fazer um ator a quem quer que seja, se não está a serviço de algo que tenha sentido? Me senti tão culpado quanto se tivesse acedido em escutar um concerto de Tchaikovsky somente porque Heifetz estaria tocando.” (29 de abril de 1955)

Em 23 de agosto de 1954, Julio tinha escrito para Maria Jonquières, a mulher de Eduardo:

“Aqui em Paris a Cinemateca tem coisas excelentes, mas infelizmente não se pode ver nada porque a sala é horrível, com o piso horizontal, de modo que basta que se sentem duas ou três pessoas com o torso medianamente erguido e daí em diante tudo que se pode ver são uns recortezinhos de filme entre seus pescoços, orelhas e cachos (se houver). De qualquer maneira, assisti ali La Edad de Oro [L’Âge d’Or, Luis Buñuel], que é uma maravilha, e Que viva México! de Eisenstein. Nada mau. E já que estou falando de cinema, não há nada para ver no momento. Na última vez que fomos nos coube Touchez pas au grisbi [Grisbi, Ouro Maldito, Jacques Becker] que é muito bem feito e nada mais. Na Itália não vimos absolutamente nada, primeiro porque estávamos mais pobres que um casal de ratos, e depois porque os italianos não gostam do bom cinema que fazem, e só querem Lollobrigida (e os compreendo) e cowboys e gangsters. I Vitelloni [Os Boas Vidas, Fellini], que vimos em Paris, nos pareceu muito bom.”

O pessoal diz que não se fazem mais filmes tão bons quanto esses filmes europeus dessa época. Eu diria que fazemos filmes tão bons quanto, mas são filmes de uma época diferente, com subtextos diferentes. A obra de caras como Fellini, Buñuel, Kazan, Godard etc. se beneficiou, entre outras coisas, de um momento em que o cinema de arte pôde criar para si uma elite pensante que flutuava entre a imprensa geral, a imprensa especializada, a universidade (as teorias dos professores e as práticas dos estudantes), os circuitos alternativos (cineclubes, cinematecas).

Nos meus tempos de cineclubista imberbe me passou muitas vezes pela mão um livro de Henri Agel chamado O cinema tem alma?.  O substrato religioso já me incomodava (eu já era sherlockiano então), mas eu sentia (acho que corretamente) que a alma em questão não é espiritual, é uma epifania mental.  Não existiria sem neurônios que a abrigassem. É a alma que brota do centro de nós, o feixe de emoções gerado por cada filme. A alma é uma estalactite por onde gotejaram Casablanca, Aruanda, Viridiana, Scanner, Shane. A alma é uma resposta sensorial, intelectual e emocional que esse tipo de cinema fez nascer na gente. O lado bom é que isso é possível. O lado ruim é que para que isso aconteça é preciso que esses filmes (ou outros que se lhes assemelhem) sejam vistos. Porque cada tipo de filme agrega um estímulo e faz nascer uma reação.

De lá para cá, o fenômeno – a relação entre o filme de arte e a mente coletiva da sociedade em que surge - se transformou muito e nunca mais será a mesma coisa. Não se trata simplesmente de opor esses filmes aos “filmes comerciais”. Todos estes filmes acima eram produtos comerciais. Muitos deram lucro. Um diretor como Buñuel tinha produtores que apostavam nele, fazia filmes relativamente baratos, e até Oscar já ganhou.

O cinema de arte continua a ser importante para os cinéfilos, que são muitos. Mas o linguajar teórico da crítica de cinema, deixou de ter o peso que antes tinha. Existem bons críticos e bons filmes. Mas os críticos de cinema antes ocupavam o salão nobre. Agora estão noutro andar, num espaço até confortável, mas é do lado do prédio onde bate o sol no verão e o vento no inverno, e onde nem bebedouro tem.

A discussão do mercado cinematográfico submerge e dissipa a discussão do cinema, da alma do cinema, assim como discussões sobre literatura hoje em dia começam com Borges e com dez minutos estão falando de contratos, percentagens, faixas de royalties e público-alvo. O que é muito bom. Escritor brasileiro dos velhos tempos era mais desligadão do que Borges, às vezes nem cobrava nada, às vezes se sentia ofendido se um editor viesse lhe pedir para acertar contas financeiras. Eu acho que um cara só deveria ter a licença para publicar um livro como autor se antes fizesse um estágio numa editora, mas trabalhando mesmo, pra valer, acompanhando o processo desde a aceitação do manuscrito até o livro pronto, na mão.

Mas no cinema essa mobilização profissionalizante já faz parte há muito tempo. O cinema brasileiro sempre foi tipicamente mobilizado e organizado em torno da profissão. O que pode haver hoje é uma desmobilização da alma (ou do pensamento crítico) do cinema.

A discussão teórica do cinema tem um bom espaço hoje nas universidades e nas revistas especializadas (inclusive eletrônicas), mas perdeu o peso que tinha na grande imprensa.  Sua importância ficou meio espremida por uma forte contraofensiva do “cinema comercial”. Não os modestos sucessos daquela época, mas os megablasters blockbusters que estreiam ocupando simultaneamente quatro mil salas nos EUA. Diz Fellini que quando A Doce Vida (1960) foi um mega-sucesso de bilheteria no mundo inteiro ele pensou que era o começo do seu sucesso. “Em vez disso, acabou sendo meu ponto mais alto,” diz ele. Dali em diante foi só descida.

Um dia, todas as formas de arte deixarão de dar dinheiro e serão realizadas apenas por quem gosta e por quem cria, e tudo que se fizer sem um tostão será poesia.






quinta-feira, 2 de junho de 2016

4121) Falando paraibano (2.6.2016)



(ilustração: "A professora", J. Borges)


No capítulo do linguajar nordestino, trago hoje mais alguns verbetes do meu dicionário informal, que um dia publicarei com o título de “Assim falou Trupizupe” ou coisa parecida.

TU ACHA?
Expressão que pontua com frequência uma narração qualquer, chamando a atenção do interlocutor para algo estranho ou curioso que acabou de ser dito.  “Ontem de tarde meu patrão veio me chamar pra passar um fim-de-semana sozinha com ele na praia, tu acha?”  “Meu pai veio dizer que quer que eu estude para padre, tu acha?” Seu equivalente mais próximo, em sintaxe e em entonação, é: “já pensou?”

SÓ QUER SER AS PREGAS 
Crítica desdenhosa que se faz ao excesso de pretensão de alguém.  “Olha, aquele teu primo só quer ser as pregas. Ele alugou um clube pro aniversário dele e no dia só foram 50 pessoas.” Usa-se em geral nesta forma reduzida, mas a fórmula original era: “Fulano só quer ser as pregas, mas o pano não dá”.  Ou seja: há pouca substância material para suprir os planos do sujeito. Há uma variante maliciosa: “Fulano só quer ser as pregas, mas o cu não dá”. 

O tema “Fulano só quer ser Tal-e-Tal-Coisa” tem uma galeria inesgotável de exemplos: “Fulano? Aquele cara é muito metido a besta, só quer ser a bala que matou Kennedy.” “Só quer ser o Z de Cinzano” (=porque nas propagandas deste vermute a letra central aparecia maior do que as outras) Ouvi recentemente: “Fulano só quer ser o pitó de Gengis Khan”.

AMORCEGAR
Pegar carona num caminhão ou outro veículo, pendurando-se na parte traseira.  Prática comum entre garotos de bairro.  Também usa-se dizer: "Pegar morcego".  "Quando a mãe de Fulano está em casa ele passa o dia quieto, não sai nem no terraço, mas quando ela vai na rua ele corre pra pista e fica amorcegando os ônibus".  A origem da expressão é a posição em que o garoto fica, como um morcego pendurado no teto da caverna.  O "pegar morcego" pode ter função prática (ir daqui até ali sem pagar passagem de ônibus) ou ser uma simples brincadeira perigosa e excitante. 

Não se aplica quando a pessoa está numa bicicleta e se prende ao veículo com uma mão, para ser puxado e poupar esforço.

E o menino amorcegando caminhão

foi apanhado numa rede de cordão

sem entender o triste significado

da palavra educação.(Ivan Santos, “Ilha do Bispo”)

Eu, por mim, como lhe disse, tinha chegado atrasado.  Assim, só quase uma hora depois que passou a Cavalhada, foi que o primeiro devoto meteu o pé na Estrada, mas, agora, já está tudo quanto é de gente vindo de Estaca Zero, a pé, por aí, de Estrada afora!  Eu tive a sorte de amorcegar um caminhão, que me deixou no Cosme Pinto!

(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino, Folheto LXXV)

Existem palavras que são ligadas a gestos ou atitudes, como:

RABISSACA
Gesto brusco de menosprezo e irritação, quando uma pessoa (geralmente uma mulher), ao ouvir algo que lhe desagrada, vira bruscamente a cabeça na direção oposta, “ignorando” o interlocutor.  “Mas que empregada mais atrevida!  Eu reclamei que a pia estava suja, e ela deu uma rabissaca e saiu pisando duro!”   Tipicamente, a rabissaca é acompanhada por um “tunco”.

TUNCO
Ruído de irritação ou desdém que se dá com a boca fechada, contraindo a língua de encontro ao palato e puxando o ar bruscamente para dentro, produzindo um estalo surdo.  “Você me respeite quando eu estiver falando, viu, menino?!   Da próxima ver que eu ouvir você dando tunco eu dou-lhe uma surra!