quarta-feira, 27 de abril de 2016

4108) Quem inventa o sonho? (27.4.2016)





Há um texto famoso de Robert Louis Stevenson sobre os sonhos, que incluí na minha edição/tradução de O estranho caso do dr. Jekyll e Mr. Hyde (São Paulo: Hedra, 2011). “Um capítulo sobre o sonho” é um longo depoimento autobiográfico em que Stevenson fala sobre a importância dos sonhos em seu processo criativo, com riqueza de exemplos, contando episódios tão bizarros que só podem mesmo ser verdade, porque um ficcionista imaginativo como ele não teria a menor necessidade de mentir.

A certa altura, Stevenson narra uma complicada história de amor e de crime que inventou dormindo, um romance inteiro, cheio de pessoas e de reviravoltas de enredo, com uma revelação final espantosa, quando uma das personagens, numa frase curta, revela toda a verdade escondida até então. O autor diz que acordou estupefato, e confessa a sua perplexidade diante disto. Se a mente que sonhava (raciocina ele) é a dele próprio, como é possível essa cisão psíquica onde uma parte da mente consegue esconder da outra parte um segredo? A mente que conta e a mente que presencia a história não são uma só? Então, como é possível o segredo? Como é possível a espantosa surpresa final diante de algo que nós mesmos estávamos pensando?

A mente que sonha e a mente que escreve literatura são a mesma? Acho que cada pessoa é diferente. Muitos dos meus contos e poemas se originaram de sonhos, que memorizei com cuidado ao acordar e depois, levantando da cama, anotei sem perda de tempo. Mas raramente o sonho vem com a história completa. Em geral ele fornece um sentimento, uma ambientação, um fragmento meio “nonsense” de um episódio que depois eu procuro reconstituir e ampliar, sem tentativa de explicação. Charles Dickens comentou, numa carta de 1843:

“A propósito de sonhos, não é uma coisa estranha que autores de ficção nunca sonhem com suas próprias criações, reconhecendo, mesmo adormecidos, que elas não têm existência concreta? Eu nunca sonhei com meus personagens, e acho que isso é tão impossível que sou capaz de apostar que Walter Scott nunca sonhou com os dele, por mais reais que sejam.”

Lewis Carroll registrou em 1899 um sonho no qual ia visitar uma família de amigos, e durante a visita ficava sabendo que uma das filhas, Polly, estava se apresentando numa peça num teatro local. Nesse momento, Carroll avistava a própria Polly sentada nas proximidades, só que era Polly quando tinha nove ou dez anos apenas. Ele perguntava à mãe se poderia levar Polly ao teatro consigo, e ela autorizava. Diz ele:

“Eu estava claramente consciente do fato (mesmo sem a menor surpresa diante daquela incongruência) de que eu estava levando a Polly criança para assistir uma apresentação da Polly adulta! Ambas as imagens, Polly como criança, e Polly como mulher, são, imagino, igualmente nítidas na minha memória normal, da vigília; e ao que parece durante o sonho eu dei um jeito de dar a cada uma delas uma individualidade independente.”

Como se sabe que Carroll tinha fascinação por garotinhas (uma espécie de pedofilia platônica, pois não há registro de qualquer ação dele neste sentido, o que condiz com seu temperamento tímido e cortês), dá para perceber que em sua memória a mulher crescida não tinha conseguido eliminar do seu mundo imaginário a menina.

Edmond de Goncourt (escritor, criador de um famoso prêmio literário francês juntamente com seu irmão Jules) conta que pouco tempo depois da morte do irmão, a quem era muito unido, sonhou que caminhava ao lado dele pelas ruas de Paris, e encontrava um grupo de amigos, entre os quais Téophile Gauthier. Todos vinham ao seu encontro e lhe apresentavam as condolências, e ele as aceitava, roído pela dúvida, porque avistava a poucos metros de distância o irmão vivo, esperando para continuarem a caminhada, e também tinha bem clara na memória os anúncios fúnebres que vira pregados por toda parte.

É um sonho que lembra o que Gabriel Garcia Márquez conta no prólogo dos seus Doze Contos Peregrinos (1992). Quando morava em Barcelona, o escritor sonhou que estava acompanhando o próprio enterro, a pé, num grupo de amigos em clima de festa, embora todos trajassem luto. Amigos do mundo inteiro tinham comparecido à cerimônia, e Gabo sentia-se feliz por ver todos juntos, depois de tanto tempo. Quando tudo chegava ao fim todos começavam a ir embora e ele tentava acompanhá-los, mas alguém lhe dizia: “Você é o único que não pode ir embora.” E ele conclui:

“Só então compreendi que morrer é não estar nunca mais com os amigos”.















domingo, 24 de abril de 2016

4107) Shakespeare e Cervantes (24.4.2016)



O conceito de contemporaneidade é uma coisa engraçada. Usa-se muito essa palavra como sinônimo de “atual”, “da época presente”: A música brasileira contemporânea tem explorado tais e tais caminhos.  Mas o que me interessa é a contemporaneidade como laço entre duas coisas, dois acontecimentos bem separados no espaço.

Já li uma crítica questionando uma dessas contemporaneidades históricas (“Fulano e Sicrano viveram na mesma época”). É quando Castro Alves diz, em “O Livro e a América”:

Por uma fatalidade 

dessas que descem de além, 

o sec'lo, que viu Colombo, 

viu Gutenberg também. 

Quando no tosco estaleiro 

da Alemanha o velho obreiro 

a ave da imprensa gerou... 

O Genovês salta os mares... 

Busca um ninho entre os palmares 

e a pátria da imprensa achou...

Não há sincronia entre as vidas e os tempos dessas duas grandes figuras, embora tenham de fato vivido no mesmo século. A primeira Bíblia de Gutenberg é de 1455, quando Colombo era ainda um guri de cinco anos. O “quando” usado pelo poeta não supõe que os dois fatos que refere são simultâneos, mas que são sucessivos. Quando isso, depois aquilo.

Vejam com que fluência o poeta compara a invenção de um com o voo de uma ave, e o descobrimento geográfico do outro com o achamento de um ninho. Essa ligação metafórica suaviza o fato de que os dois viveram em mundos separados. Gutenberg morreu em 1468, sem desconfiar que existia outro continente além do Atlântico. Já Colombo, era um leitor voraz de obras impressas, como as Viagens de Marco Polo.

Salman Rushdie, num texto aludindo à contemporaneidade entre Shakespeare (1564-1616) e Cervantes (1547-1616), faz alguns comentários pertinentes, como o de notar que os livros do soldado têm muito menos batalhas, e as guerras são menos levadas a sério, do que as peças do dramaturgo que nunca esteve em campo de batalha.

Em casos assim, resta sempre a curiosidade de saber se dois escritores dessa estatura, vivendo praticamente no mesmo continente, não teriam ouvido falar na fama do outro, e se interessado para ler algo que o outro escreveu. Acho isso sempre um detalhe importante para um bom biógrafo literário investigar. O que ele lia? O que chamava sua atenção? Quem eram os mais lidos na época dele, pelos amigos, pelos colegas, pelo público-alvo?

A crítica registra que entre o Bardo de Avon e o criador do Cavaleiro da Triste Figura (que em inglês recebe o charmoso apodo de “the Knight of the Doleful Countenance”) o único contato possível pode ter sido (não se sabe ao certo) Shakespeare lendo o Dom Quixote, grande sucesso europeu, traduzido ao inglês por Thomas Shelton em 1612 (a parte I). Houve portanto um período de quatro anos em que o dramaturgo inglês podia tê-lo lido em sua língua. Quanto a Cervantes conhecer suas peças, seria bem menos provável. Eram um sucesso localizado, ao contrário do Quixote, e só séculos depois ganharam o mundo.

Borges tem um viés interessante para essa questão de duas pessoas contemporâneas. Num dos últimos ensaios de Otras Inquisiciones (“Nueva refutación del tiempo”), ele conta, com a maior seriedade:

No princípio de agosto de 1824, o capitão Isidoro Suárez, à frente de um esquadrão de hussardos do Peru, decidiu a vitória de Junín; no princípio de agosto de 1824 De Quincey publicou uma diatribe contra Wilhelm Meister Lehrjahre; esses fatos não foram contemporâneos (agora o são) já que os dois homens morreram, aquele na cidade de Montevidéu, este em Edimburgo, sem saber nada um do outro.
Ou seja, Suárez viveu num universo onde o panfleto de Thomas De Quincey não existia, e provavelmente o próprio De Quincey também. E não é difícil imaginar um mundo em que um poeta romântico inglês não tenha conhecimento da existência de um militar sulamericano. Viveram em mundos isolados, estanques.

O que Borges parece querer dizer é que não basta terem existido materialmente ao mesmo tempo, como sabemos que aconteceu. Seria preciso que de algum modo as idéias de pelo menos um deles influenciasse o pensamento ou as ações do outro. Seria preciso que pudéssemos dizer que houve um mundo em que pelo menos A conhecia a existência de B.  Seria preciso que houvesse um universo mental, pelo menos um, onde eles dois fossem reais.

Não deve ser difícil prolongar esse jogo, imaginar mil pares de eventos desrelacionados num momento histórico qualquer. Em julho de 1930, por exemplo, surgiu um dos mais famosos personagens do romance policial, o detetive Maigret, de Georges Simenon, na novela Pietr-le-Leton. Também em julho de 1930 deu-se o assassinato de João Pessoa por João Dantas, no Recife, no dia 27 daquele mês. Os protagonistas do crime desencadeador da Revolução de 30 teriam alguma informação sobre o livro do então obscuro Simenon? Duvido. Simenon e seu público saberiam do crime da Confeitaria Glória, no longínquo Brasil? Duvido.

Como diria Borges, são fatos contemporâneos agora, que, através de nós, eles começam pela primeira vez a habitar o mesmo universo. Na intuição idealista de Borges (“só é real o que é pensado”) viviam em universos estanques, até que surgiu uma mente capaz de pensar juntas suas duas idéias.




sexta-feira, 22 de abril de 2016

4106) Geraldo Azevedo no Museu da Imagem e do Som (22.4.2016)



Quarta-feira passada, passei a tarde no Museu da Imagem e do Som (MIS), no Rio de Janeiro, participando do depoimento de Geraldo Azevedo para o projeto Depoimentos Para a Posteridade. A sessão de cerca de quatro horas e meia de conversa, dirigida pelo jornalista João Pimentel, teve como entrevistadores eu, Eliana Pittman, Neila Tavares e Carlos Morel.

Acompanho o trabalho de Geraldo há décadas. Ele é de uma geração de compositores e cantores um degrau acima da minha: Alceu Valença, Zé Ramalho, Elba Ramalho, Fagner, Ednardo, Belchior etc. Artistas nordestinos que gravaram seus primeiros discos nos anos 1970. Depois deles veio uma segunda leva de “paraíbas”, incluindo eu, Ivan Santos, Lenine, Fuba, Lula Queiroga, Tadeu Mathias, Alex Madureira e muitos outros.

É sempre bom ouvir a narração da carreira de alguém por ordem cronológica, ver a sucessão de pequenos fatos que vão, sem que a gente perceba, nos conduzindo na direção da vida artística. Geraldo nasceu num sítio em Jatobá, nas vizinhanças de Petrolina (PE). Antigamente, era distante; hoje, o local foi engolido pela cidade, que cresceu muito mais do que sua vizinha Juazeiro (BA).

Geraldo conta que na infância a escola ficava a alguns quilômetros de distância, e ele ia montado num jegue, que já sabia o caminho: parava exatamente no local da professora. Na volta, no sol a pino, o calor era tanto que ele adormecia agarrado ao burro em movimento (como o vaqueiro do conto “O Burrinho Pedrês” de Guimarães Rosa), e o burro voltava para casa sem precisar de guia. A mãe de Geraldo, dona Nenzinha, alfabetizou todos os filhos, e também o marido, já adulto.

Jatobá ficava pertinho do rio São Francisco. Às vezes, nas cheias do rio, as árvores onde os meninos brincavam ficavam só com a copa do lado de fora, e o pai advertia: “Depois que baixar, não subam nessas árvores, está cheio de cobra lá em cima.” As cobras subiam para se proteger.

Ele lembra uma época, já rapaz, quando a equipe de Carlos Coimbra andou por lá filmando Lampião, Rei do Cangaço, com Vanja Orico e Geraldo del Rey. Os dois Geraldos ficaram amigos e tocavam violão juntos. O método preferido naquela época era um daqueles métodos de violão “pé-duro”, de acordes “quadrados”, o Método Bandeirantes. Na mesma época, Geraldo conheceu João Gilberto, que tinha ido visitar o pai em Juazeiro.

Geraldo veio ao Rio trazido por Eliana Pittman, que o tinha visto tocar violão nos bares do Recife. Era jovem, e de repente viu-se tocando com pessoas como Antonio Adolfo e Erlon Chaves. “O violão não tinha captador, era com microfone,” lembra ele. “Quando eu sabia a música, aproximava o violão do microfone. Quando não sabia direito os acordes, afastava”.

Ele fala também dos seus primeiros contatos com outros artistas, inclusive Geraldo Vandré. Quando Vandré se escondeu por causa do golpe de 1968, os dois fizeram a “Canção da Despedida”, que segundo Geraldo foi composta nos lugares onde ele estava escondido: na casa de D. Aracy Moebius (esposa de Guimarães Rosa) e depois no sítio da modelo e atriz Marisa Urban.

Ele fez um longo depoimento sobre as torturas que sofreu depois que foi preso pela ditadura, porque tinha amigos envolvidos com organizações clandestinas e colaborava com desenhos em alguns panfletos. E ironiza o regime. Quando ele e Alceu Valença gravaram seu primeiro disco juntos, em 1972, o então ministro Jarbas Passarinho apareceu na imprensa exibindo o disco, o primeiro disco quadrafônico da música brasileira. Depois, quando Ernesto Geisel visitou a Alemanha para discutir energia nuclear, no pacote de presentes que levou para as autoridade estava outro disco do ex-preso Geraldo.

E por aí vai. A carreira de Geraldo me parece uma carreira única na sua geração de compositores nordestinos. Não conheço nenhum outro, naquela faixa, que domine o violão como ele, que tenha sua inventividade de melodia e harmonização. Cria da Bossa Nova na adolescência, ele evoluiu para outros estilos na idade madura, e assimilou influências da música africana, latino-americana, o rock, o tropicalismo e o mais que se seguiu.

A primeira vez que assisti um show de Geraldo foi muitos anos atrás, quando eu era um cineclubista cabeludo em Salvador, e fui vê-lo no Teatro Vila Velha, um show voz e violão. Na hora do bis, ele pediu à platéia que sugerisse uma música. Eu gritei: “Cravo Vermelho!”  E fiquei super orgulhoso quando ele (que nem sabia da minha existência, então!) tocou. É aquela música linda que começa: “Eu sou daqui – mas vim de longe...”




terça-feira, 19 de abril de 2016

4105) O horror cósmico de William Sloane (19.4.2016)



Veio parar às minhas mãos a edição-ônibus de The Rim of Morning (New York: New York Review Books, 2015), que reúne duas novelas de William Sloane, ao que parece suas duas únicas incursões como autor de FC. Os dois livros são To Walk the Night (1937) e The Edge of Running Water (1939). As duas novelas vêm sendo publicadas em conjunto com o título The Rim of Morning desde 1964.

Falarei sobre a primeira delas. To Walk the Night é contada sob a forma de flash-back por Bark Jones, um estudante recém-formado de uma universidade na região de Nova York. O início do livro mostra Bark chegando de carro, à noite, à casa do pai de um grande amigo seu, trazendo na mala um vaso com as cinzas do amigo, morto alguns dias atrás no outro lado do país. A reunião entre Bark e Mr. Lister, o pai do falecido Jerry Lister, é o tempo presente da narrativa, que consiste na narração minuciosa, por parte de Bark, de uma série de acontecimentos estranhos dos últimos dezoito meses, envolvendo os dois amigos recém-saídos da faculdade, um professor que fazia pesquisas obscuras sobre o espaço-tempo, e a misteriosa esposa deste.

Um dos aspectos mais interessantes de flashbacks deste tipo é que, como se trata de uma narração verbal, ela admite de vez em quando (e Sloane faz uso consciente disso) interrupções do flashback para o retorno ao tempo presente, quando os personagens trocam impressões e comentários sobre os fatos passados. Em alguns casos, nas histórias mais pulp fiction, este artifício é usado para fornecer explicações sobre o enredo, explicações que o autor teve dificuldade de encaixar na ação da narrativa e preferiu dar de graça ao leitor usando falas do personagem-narrador.

Não é o que faz Sloane. Os comentários entre Bark e Mr. Lister esclarecem detalhes dos acontecimentos passados mas, de um modo geral, fazem alusões incompletas a outros fatos ou circunstâncias, o que aumenta o mistério e o suspense narrativo. É uma dessas histórias cheias de referências indiretas ao futuro, do tipo “Naquele instante, não percebi a importância deste pequeno detalhe”, ou “Eu não poderia saber as consequências que esse fato aparentemente banal iria ter dias depois”. Bem usado, esse artifício é um gancho poderoso para prender o leitor até que sua curiosidade seja satisfeita.

Não revelarei muita coisa do argumento, para não dar spoilers aos dois ou três leitores que talvez venham um dia a ler o livro. Que vale a pena, sim. A história lembra, por um certo ângulo, o filme Lifeforce (Tobe Hooper, 1985), inspirado no romance de Colin Wilson The Space Vampires (1976), onde a bela Mathilda May encarna um ser alienígena que suga com indiferença a vida dos humanos com que se defronta. Lembra também aqueles contos de Lovecraft onde, depois que algum fato espantoso provoca uma tragédia sem explicação, alguns personagens se reúnem e comparam lembranças, tentam encaixar as peças do quebra-cabeças para entrender o que aconteceu. Também lembra (muito) o Arthur Machen de The Great God Pan (1894), que provavelmente lhe serviu de inspiração.

Uma história lovecraftiana, mas o que assombra, mais do que o enredo, é a prosa límpida e clássica de Sloane, um autor de quem eu nunca tinha ouvido falar. Não lembro de muita gente na FC de 1937 que escrevesse tão bem quanto Sloane neste livro. Lembra a prosa limpa-de-exageros de Heinlein, mas Heinlein só estrearia dez anos depois. E tem um certo tom clássico, talvez mais britânico do que norte-americano, o que me leva a achá-lo muito mais próximo de autores ingleses dos anos 1930 como Aldous Huxley e Olaf Stapledon do que com os grandes nomes da FC norte-americana da época, que seriam talvez E. E. Doc Smith, Stanley Weinbaum, A. Merritt, o próprio Lovecraft...  Todos podem ganhar no quesito imaginação, mas nenhum, me parece, escreveu tão bem, de forma tão clara, expressiva, controlada, quanto Sloane. Se me dissessem que o livro é de hoje, eu poderia acreditar.

Além dos dois romances citados (lerei em breve o segundo), Sloane (1906-1974) publicou duas antologias de FC: Space, Space, Space (1953) e Stories for Tomorrow (1954), sendo esta última a mais elogiada. Foi professor de escrita criativa na Bread Loaf Writer’s Conference durante vinte e cinco anos, e algumas de suas aulas foram reunidas em The Craft of Writing (1983). Durante a maior parte da vida trabalhou com editor na Rutgers University Press.







sábado, 16 de abril de 2016

4104) A ida e a volta em "O Burrinho Pedrês" (16.4.2016)





Comemorar, às vezes, implica em reler. Estamos comemorando os 70 anos de publicação de Sagarana (1946) de Guimarães Rosa. Tem alguns contos aí que eu sei quase de cor, mas tem outros que eu não lia há um tempão. Peguei para reler “O Burrinho Pedrês”, um antigo favorito. Me lembro com dez anos de idade decifrando aquilo e me maravilhando com frases tipo:
 “...uma umidade de melar por dentro das roupas da gente”...
 “seus mugidos começando por um ême e prolongando-se em rangidos de porteira velha.”




“Para ser um dia de chuva, só faltava mesmo que caísse água”...

E a melodia ritmada das descrições, prosa em anfibráquicos:

Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos, chumbados, vareiros, silveiros... E os tocos da testa do mocho macheado, e as armas antigas do boi cornalão...

Versos de galope beira-mar, células de prosa rítmica que se encaixam com perfeição numa cadência poética famosa. Esse trecho meio que funciona como a descrição da boiada passando, quatrocentas e sessenta cabeças que estão sendo conduzidas para serem embarcadas no trem, a não sei quantas léguas dali. É a partida épica da dúzia de vaqueiros em seus cavalos (e um montado no burrinho) tocando o berrante, botando a boiada no campo aberto, recitando, aboiando, tirando verso enquanto agita o chapéu de couro:

O Curvelo vale um conto,

Cordisburgo um conto e cem.

Mas as Lages não têm preço,

porque lá mora o meu bem...
É o grande momento musical do conto, essa partida da boiada. Lembra a cena famosa de Howard Hawks num filme como Red River (1948). Além dos aboios prolongados (“Ê-ê-ê-ê-ê, boi...”), os vaqueiros trocam quadras entre si, e o conto, que até então tinha sido mais descritivo, passa a ser mais narrativo, porque os vaqueiros começam a contar histórias.  E assim vão encurtando a estrada.

“O Burrinho Pedrês” é a história de uma ida e uma volta, as duas muito diferentes entre si, porque na volta ocorre uma reviravolta. Isso lembra a expressão semelhante e cara a Ariano Suassuna, “o Reino do Vai-e-Volta”. Ir e voltar é uma boa metáfora para os saltos da memória de Quaderna entre o presente e o passado.  E lembra sem dúvida a expressão famosa no romance O Hobbit: “There, and back again”. “Ir até lá, voltar para aqui.”

A comparação não é gratuita, porque o livro de Rosa se abre com duas epígrafes. Uma é uma quadrinha de desafio; a outra, este trecho cuja origem ele indica em “Grey Fox, estória para meninos”:

“For a walk and back again, said the fox. “Will you come with me? I’ll take you on my back. For a walk and back again”. “Dar uma volta e voltar, disse a raposa. Quer vir comigo? Eu levo você nas costas. Dar uma volta e voltar.”

Durante a ida, os vaqueiros vão lembrando episódios pitorescos ou dolorosos do passado. Como se fossem marinheiros no convés de uma fragata ou soldados numa trégua na trincheira, os vaqueiros fazem um toma-lá-dá-cá de histórias passadas, e assim a longa viagem de ida vai ser estirando. E tem sempre um coitado a quem acaba cabendo por montaria o burrinho, como opção derradeira, por ordem do Major Saulo, o incansável patrão. O burrinho, Sete de Ouros, é uma espécie de cursor da estória, que sempre volta a ele, depois de passear por todo aquele alvoroço.

É curioso que apesar do linguajar folgazão dos vaqueiros as histórias contadas nesse trecho da aventura, essa ida com pequenos atrasos mas sem grande atropelo, são histórias de difíceis confrontos, de vidas e de boiadas perdidas, de conflitos brutos entre homens e animais. Um conta, os outros comentam.

Enquanto isto, atravessam com alguma dificuldade o rio da Fome, que está encorpando devido a chuvas fortes na cabeceiras. Os vaqueiros conseguem passar tudo sem perder nem uma rês. Logo estão na cidade, na estação do trem, e o embarque “durou mais de hora e meia”. Os vaqueiros, desincumbidos, vão encher a cara até de noite.

E então começa a volta. Vêm mais histórias tristes, de morte, de perda. São agora somente os vaqueiros e suas montarias, burrinho inclusive. E quando querem atravessar de volta o rio da Fome, percebem que nas últimas horas o rio aumentou muito de tamanho. Já é noite. Eles entram na correnteza, mas ela está muito mais forte do que horas atrás. O final é trágico para muitos, mas não para seu herói, o burro Sete de Ouros.

Relendo o conto notei uma semelhança com um dos meus preferidos, “O Recado do Morro” (em Corpo de Baile, 1956), sobre o qual já escrevi em A Pulp Fiction de Guimarães Rosa (João Pessoa, Marca de Fantasia, 2008). Assim como o grupo de vaqueiros conduz a história no conto do burrinho, no “Recado” o início da história acompanha a partida de um grupo de viajantes (um cientista, um dono de terras, etc.), cujo guia é Pedro Orósio, uma espécie de Schwarzenegger sertanejo, capaz de carregar um boi nos braços. Ao longo da viagem, um doido que os acompanha julga ter ouvido o Morro da Garça lhe gritar alguma coisa ao longe, quando passaram ao largo dele, no horizonte. As frases sem nexo que ele brada são decoradas e repetidas ao longo da viagem por outras pessoas, cada qual querendo passar adiante uma história que não ouviu bem nem entendeu direito. De ruído em ruído o recado vai se modificando.

O grupo percorre várias localidades e fazendas, e depois retorna. Nesse retorno, é um dia de festa no lugarejo, e, como os vaqueiros do outro conto, vão tomar umas cachaças noite adentro para descarregar a tensão. E ali Pedro Orósio escuta a versão mais recente do recado ouvido pelo doido, cujo teor ele sabia, só que agora em forma de canção pelo violeiro local, com versos que falam de um rei combatendo sozinho contra sete cavaleiros. Pouco mais adiante há uma batalha campal onde quase todo mundo se dá mal, mas Pedro Orósio escapa ileso e triunfante.


É mais ou menos este o esquema de ambos os contos: uma ida longa, horizontal, cheia de episodiozinhos incrustados, e uma volta curta, plena de ação e de tragédia. Não creio que seja planejado. Nota-se que é uma sucessão de peripécias que diz muito ao autor, emocionalmente, e ele extrai de cada uma delas efeitos literários muito diferentes. Guimarães Rosa era um desses autores que “escrevem com o corpo todo”, empolgam-se, entregam-se. Autores assim tendem a repetir estruturas profundas, porque são aquelas histórias que por variados motivos se incrustaram na sua memória afetiva, são aquelas situações que vivem lhe pedindo para ser recontadas. E anos depois o cara as reconta, com outro enredo, outros personagens, outras situações. Escrever é sempre ir e voltar. 



sexta-feira, 15 de abril de 2016

4103) O psicógrafo Rogério Duarte (15.4.2016)




("Rogério Duarte", por Caó Cruz Alves)



Já conversei por cerca de meia hora com Rogério Duarte, o grande tropicalista agora falecido. Se me pagassem cem mil dólares por um relato desse papo eu teria que deixar passar a oferta, ou então recorrer aos meus talentos de ficcionista (ou às minhas licenças de cronista), porque não me lembro de nada. Foi no Encontro da Nova Consciência, em Campina Grande, num ano em que o tema central era A Contracultura (tem trechos da fala dele no YouTube). A conversa foi num grupo numeroso, no saguão do teatro, com o zum-zum-zum de muita gente em volta, num evento em que pelo menos algumas dezenas de pessoas presentes eram fãs dele.

Em 1968, Gilberto Gil lançou o seu famoso disco do fardão, o Gilberto Gil tropicalista. É o disco de “Domingo no Parque”, “Marginália II”, “Frevo Rasgado”, “Ele falava nisso todo dia”. Minhas músicas preferidas ali são “Domingou” e “Luzia Luluza”. A capa, atribuída a Antonio Dias e Rogério Duarte, é cheia de elementos pop. Na foto principal, Gil veste um fardão estilo Academia Brasileira de Letras, mas que também evoca o Sgt. Pepper’s dos Beatles, lançado pouco antes. Fotos menores mostram o cantor fazendo poses com uniformes e figurinos diferentes. Não sei avaliar o que, na parte visual, pode ser atribuído a Antonio Dias ou a Rogério. Parece com os dois. Mas no pezinho da contracapa aparecia um texto.

O texto era este aqui:

Eu sempre estive nu. Na Academia de Acordeão Regina tocando La Cumparsita, eu estava nu. Eu só sabia que estava nu, e ao lado ficava o camarim cheio de roupas coloridas, roupas de astronauta, pirata, guerrilheiro. E eu, do mais pobre da minha nudez, queria vestir todas. Todas, para não trair minha nudez. Mas eles gostam de uniformes, admitiriam até a minha nudez, contanto que depois pudessem me esfolar e estender a minha pele no meio da praça como se fosse uma bandeira, um guarda-chuva contra o amor, contra os Beatles, contra os Mutantes. Não há guarda-chuva contra Caetano Veloso, Guilherme Araújo, Rogério Duarte, Rogério Duprat, Dirceu, Torquato Neto, Gilberto Gil, contra o câncer, contra a nudez. Eu sempre estive nu. Minha nudez Raios X varava os zuartes, as camisas listradas. E esta vida não está sopa e eu pergunto: com que roupa eu vou pro samba que você me convidou? Qual a fantasia que eles vão me pedir que eu vista para tolerar meu corpo nu? Vou andar até explodir colorido. O negro é a soma de todas as cores. A nudez é a soma de todas as roupas. (Texto de Gilberto Gil psicografado por Rogério Duarte)

É um texto bem da época, aquele fluxo de frases puxadas por associações de idéias, de imagens, de palavras, ao invés dos raciocínios cartesianos com começo, meio e fim, praticado pelos conservadores tanto da direita quanto da esquerda. Um dos grandes problemas do Tropicalismo com a esquerda não foi nem o cabelo nem as roupas de plástico, foi o questionamento dessa história de que tudo tem que ter começo, meio e fim.

Melhor que o texto era essa assinatura refratada, no final. Como minha família é cheia de espíritas kardecistas, inclusive minha mãe, eu sabia calcular o peso da palavra “psicografado”. E pensei: “ É isso, você pode psicografar uma pessoa que você conhece muito bem, porque conhecer bem uma pessoa é como ter na mente um filmezinho dela onde você pode ver-se ouvindo-a dizer isso ou aquilo com propriedade absoluta e achar que ela disse mesmo. Tudo isso, é claro, à revelia do de cujus, seja ele um morto ilustre ou um vivo indefeso."

Na casa de Jakson e Marcos Agra, junto à velha Estação Rodoviária de Campina, eram noites inteira de dedo apontado para cada elemento da capa, cada verso do encarte, quando havia. Foi nessa época que os discos começaram a trazer as letras impressas, uma grande novidade; talvez pela influência maciça de Sgt. Pepper’s. Algum de nós perguntou: “É possível psicografar uma pessoa viva? Como? Telepaticamente?”  Falei que essa seria a explicação de ficção-científica, mas que a explicação psicossemiótica, digamos, era essa que descrevi no parágrafo de cima.

Meu amigo releu o texto todo, cuidadosamente, aí bateu na linha final com o dedo e disse: “Eu sinto o dedo de Gilberto Gil nesse negócio”. Implicando, claro, que o texto seria do próprio Gil imitando o que, na cabeça de Gil, poderia ser Rogério imitando Gil. Esse meu amigo pronunciava “Gílberto Gil”, proparoxítono.

De modo que quando cheguei à “Autopsicografia” de Fernando Pessoa já havia terreno aplainado para ele passar, ou quando Silviano Santiago escreveu um romance de Graciliano Ramos, ou quando John Banville psicografou Benjamin Black que psicografou Raymond Chandler.

Há pessoas que imitam a voz de alguém com perfeição, e outras que sabem fazer sua assinatura de modo que nem ela mesma percebe que é falsa. Então, pode haver quem consiga pensar em nome de outro, produzir um texto, literário ou não, que poderia ter sido produzido pelo outro. Um texto que o outro ao tomar conhecimento e ler, dissesse sinceramente: “Nunca vi isso, mas puxa vida, é a minha cara. Eu já pensei algumas dessas coisas.”  O que Cervantes pensaria ao ler Pierre Menard.

Se o texto atribuído a Gil no álbum parece ou não com Gil é assunto para outro tipo de análise. Tem referências a Noel Rosa e a João Cabral (no poema dedicado a Drummond em O Engenheiro, 1942-45). Tem Caetano. Tem um pouco do espírito dos dois primeiros discos pop de Bob Dylan, com longas contracapas poéticas. Tem um pouco dos arranjos tropicalistas de Rogério Duprat, que muitas vezes não tinham nenhuma intenção melódica nem propriamente harmônica, eram comentários sonoros à canção. Mesma relação que ilustração/texto.

Um dos conceitos psicoestéticos mais interessantes da época foi esse estilhaçamento do “eu poético” como exercício de suporte para os violentos estilhaçamentos do eu pessoal que a sociedade de consumo (o termo era novo) impunha. A multiplicação de eus falsos para reduzir a pressão sobre o eu verdadeiro no centro de tudo, senão o cara endoidece. Como endoideceu Bispo do Rosário. Como o “homem duplo” de P. K. Dick (A Scanner Darkly, 1973). Como Edward Norton no Clube da Luta (1999). Fernando Pessoa não endoideceu, por mais que vestisse identidades novas a cada vez que sentava à mesa.

As pessoas psicografam a si mesmas o tempo todo: para enfrentar situações práticas diferentes, relacionamentos afetivos diferentes, ambientes de trabalho diferentes, culturas diferentes da sua cultura de origem. Usei em sala de aula uma vez um texto que falava dos três grandes golpes que o Homem tinha sofrido em sua empáfia cósmica. Com Darwin, ficou sabendo que era um animal igual aos outros. Com Freud, ficou sabendo que havia um outro eu dentro dele, tão ele quanto ele próprio, e que em geral era esse outro ele que mandava, não ele. Com Marx, ficou sabendo que as sociedades humanas estão sujeitas a gigantescos movimentos tectônicos da economia e da política, e que somos absolutamente impotentes e insignificantes diante deles. Não há como controlá-los individualmente. Mais fácil um indivíduo controlar a atmosfera.

Só nessa breve passada são três estilhaçamentos do eu, da primeira e da última certeza dos cartesianos. Depois que descobrimos que pensar não é prova de existir, agora só falta alguém vir me dizer que o eixo das coordenadas e abscissas também não existe.

Psicografar qualquer um é saber que é impossível ser esse um, mas que é permitido tentar aproximar-se dele como um limite, um horizonte de eventos inalcançável, num avanço negativamente exponencial onde cada passo à frente nos deixa mais próximos do 1 pretendido, mas ao preço de um avanço cada vez mais lento mesmo que nunca venha a cessar.

Pois bem: Rogério Duarte plantou essa faísca. Quando Chico Buarque, depois de “Com açúcar, com afeto”, começou a se especializar em canções numa primeira pessoa feminina, alguém da nossa turma falou: “Chico é o Chico Xavier da mulher brasileira”. É engraçado que o Tropicalismo acabou chamando a atenção da gente para um tal de Fernando Pessoa que fazia um cameo no famoso improviso oratório de Caetano, “Ambiente de Festival”, onde ele gritava para a platéia em fúria: “Hoje não tem Fernando Pessoa!”. Alguém perguntou, ouvindo o compacto simples: “E quem danado é esse Fernando Pessoa?” Outro coçou o bigode e respondeu: “Deve ser dos Pessoa de Umbuzeiro.”

Foi o bravo Fernando, psicografista emérito em mais de um sentido, quem melhor explicou num famoso texto seu conceito de poesia dramatúrgica (não sei se o termo é exatamente este). É aquela poesia onde o poeta não imagina apenas os personagens do drama que está a escrever, mas imagina um personagem a mais: o poeta imaginário que vai escrevê-lo. Os heterônimos nasceram assim.

Autores imaginários são mais interessantes do que personagens imaginários. Bustos Domecq, autor de algumas coletâneas de contos curtos e de ensaios, é um nome fictício adotado por Jorge Luís Borges e Adolfo Bioy Casares. Seus textos têm enredos extravagantes e cheios de alusões, mas os autores afirmavam se deleitar mesmo era com as paródias e os pastiches de vozes argentinas, faladas e escritas, familiares aos dois. Nos diários de Bioy (Borges, Buenos Aires, Destino, 2006) transparece o quanto se divertiam; era uma forma sofisticada de falar mal da vida alheia. E nessas horas, diz Borges, brotava o ectoplasma literário de uma terceira personalidade que não era nenhum dos dois, era uma síntese fictícia verbalizada em voz alta (um pouco como se faz com personagens de role playing game) e que nenhum dos dois conseguiria reproduzir sozinho.

Eu gostaria de jogar isto como mote numa conversa para Rogério Duarte, mas, dadas as circunstâncias, melhor deixar aqui para ele psicografar.




quinta-feira, 14 de abril de 2016

4102) Julio Cortázar, os Beatles e os hippies (14.4.2016)



Quando a contracultura roqueira explodiu no mundo ocidental em meados da década de 1960, Julio Cortázar era um circunspecto senhor argentino de seus 50 anos, morando em Paris com a esposa, Aurora Bernárdez, trabalhando na Unesco e já famoso pelo romance O Jogo da Amarelinha (Rayuela, 1962), publicado nos primeiros anos da década. 

Um intelectual cheio de leituras filosóficas e influenciado pelo Surrealismo. 

Em princípio nada o identificava com aquela coorte de criaturas hirsutas e esfarrapadas cantando iê-iê-iê.  Lembro de nos anos 1970 mostrar os livros de Cortázar aos meus amigos malucos-beleza dizendo o velho papo de “você tem que ler esse cara, esse cara é doido demais”. Eles pegavam o livro, viam na contracapa a foto de Julio de terno e gravata e sentenciavam: “Vestido desse jeito careta não pode ser doido. Mande ele desencaretar, e aí traga de novo.”

E no entanto foi Cortázar o inventor dos cronópios, uma das criações literárias que para mim melhor exprimem o espírito da contracultura anglo-americana, aquele misto cambiante de ingenuidade, alegria de viver, imprevidência, imprevisibilidade, imaginação, prazer lúdico de mexer em tudo e por tudo.

Existe alguém mais cronópio do que os Beatles? Se não os Beatles reais, pelo menos os Beatles mostrados nos filmes de Richard Lester (A Hard Day’s Night, 1964; Help!, 1965).  Um grupo de rapazes mordazes e felizes, dançando na rua, correndo pra todo lado, brincando com qualquer objeto que lhes caísse às mãos, fazendo trocadilhos, sempre em movimento, sempre de alto astral.

Numa carta datada de Genebra (7-3-1966), para o pintor e poeta argentino Eduardo Jonquières (em Cartas a los Jonquières, Alfaguara, 2010), Cortázar troca confidências e comentários com o amigo distante. 

Fala da emoção de receber o primeiro exemplar da tradução norte-americana de Rayuela (Hopscotch, traduzido por Gregory Rabassa), fala de ter terminado de ler Pale Fire (Fogo Pálido, 1962) de Nabokov, e a certa altura diz:

“Você não vai acreditar, mas ontem fomos assistir Help!, o filme dos Beatles, e tampouco vai acreditar, nos divertimos muito. Acontece que quando a pessoa vive à beira na inópia [=penúria, escassez] lança-se a explorar as zonas mais absurdas da programação cinematográfica, e acontece também que isto lhe reserva grandes surpresas. Se você viu o filme, terá percebido que sociologicamente é um documento de primeira ordem sobre a ‘alienação’, tão celebrada e difundida nos salões das velhas sabichonas todas as sextas-feiras à cinco da tarde. Nem os Beatles nem o diretor do filme sabem, provavelmente, que nos deixaram um curioso testemunho do robotismo dos ‘sixties’. Primeiro que tudo, os 4 Beatles são robots, bonecos de cera que não têm relacionamento algum nem entre si nem com os demais. (Símbolo evidente: a casa com as 4 portas, que finalmente consiste em um único aposento, mas tampouco aí há possibilidade de contato, pois até para conversar de uma cama para a outra os B. utilizam o telefone e além disso limitam-se a monossílabos muito britânicos. Etcétera: é para dar calafrios se se leva a coisa a sério, pelo qual é melhor rir-se das aventuras absurdas que acontecem a esses pássaros simpáticos.)”

Alguns anos depois, noutra carta (Viena, 1-10-1970), Julio narra uma viagem que fez a Wiesbaden (Alemanha) para uma conferência, e os passeios que fez de carro, sozinho, por aquela região. E diz a certa altura:

“Vi o belo vale do Neckard, cheio de ecos de Hölderlin e com um vinho sobrenatural, e Heidelberg me fascinou. Estranhas circunstâncias me puseram em contato com um grupo de hippies, e durante toda uma noite descobri até que ponto não somente não são o câncer social denunciado pelos bem-pensantes, mas que o câncer é precisamente tudo aquilo que os rodeia e os hostiliza; em todo caso, nesse grupo havia algo muito parecido com a felicidade, com o fim de uma longa viagem, com uma reconciliação. A marijuana ajudando, claro (eles a fumam, e fumamos sentados nas escadarias da catedral, o que em si já era engraçado, e sem que a polícia interferisse em momento algum, apesar do cheiro, que tem muito pouco a ver com o incenso). E eu durante todo esse tempo lendo (relendo) Pedro Salinas, do qual vou organizar uma antologia, e tudo isto se harmonizava tão bem com esse pessoal fora-do-sistema.”

Em Ultimo Round (México, Siglo XXI, 1969), Cortázar reproduz a foto de uma pichação de parede na Venezuela, registrada na revista Rocinante, que diz: “Aqui habita la poesía – los cronopios vs. el sistema”.  Uma pichação que não ficaria deslocada nos muros de Abbey Road ou na esquina de Haight/Ashbury em San Francisco.





quarta-feira, 13 de abril de 2016

4101) A perda do centro (13.4.2016)



Uma nação começa a se formar quando obriga (por exemplo) todo mundo a falar a mesma língua. Em cada país da Europa, antigamente, cada um falava sua língua e a de meia dúzia de vizinhos. Chega uma fase na História, contudo, em que todos têm que falar a mesma língua.  A Espanha toda fala castelhano (mesmo havendo regiões com fala própria: catalão, galego, basco...). A Itália fala italiano e é toda cravejada de dialetos ininteligíveis no resto do país. E por aí vai.

E depois todos têm que usar a mesma moeda. Impor moeda única naquele quebra-cabeças de condados e baronatos europeus deve ter sido um sofrimento. O que é isso? É uma formalização, uma maneira de facilitar a comunicação entre todos, facilitar as transações comerciais, a atividade humana em geral. Uma coisa boa. Na intenção, pelo menos. A tentativa recente com o euro, de subir um degrau mais alto nessa formalidade, está meio bambeante. Muita gente acha que nunca vai dar certo.

A destruição da civilização se dá às vezes de dentro para fora. Entre outros processos, com um que pode ser chamado de desformalização, ou quebra do padrão coletivo, do “centro” a que todos os segmentos da sociedade estão conectados. A civilização é um contrato social, é uma formalidade consensualmente aceita em algum momento da história. Quando uma nação afunda, dá-se aquilo que falou o poeta Yeats: “the centre cannot hold”. O centro não mais se sustenta.

Os economistas sempre distinguiram entre a Economia Formal e a Economia Informal, o famoso por “debaixo do pano” ou “caixa-2”. Quando o contrato social é forte, quando um Estado é forte (há outras possibilidades), ele pode impor uma formalização: todo mundo usa a mesma moeda.  “Só quem emite moeda sou eu” (o Estado). Todo mundo que ganhar bem ou que passar por aqui tem que pagar tanto. Ou pelos menos registrar que passou.

Lucro e controle. São dois oásis do capitalismo num mundo incompreensivelmente repleto de coisas que ele não compreende. Só compreende as relações que têm a ver com lucro e com controle. São seus dois eixos de ordenadas e abscissas.

Enquanto existe um pacto social, uma Constituição que é obedecida, ou até mesmo uma família real servindo de âncora simbólica com a tradição, os Estados se sustentam. Quando tudo isso se esfarela, vira cada um por si.

Quando não há um Livro que decida, não há livro sagrado como nas religiões, nem Constituições como primeira e última instância, o centro não se sustenta. Não existe mais lei. A economia informal engolirá a economia formal, e a política informal engolirá a outra, com o mesmo silêncio de duas torres desmoronando juntas num dia de sol.




terça-feira, 12 de abril de 2016

4100) O Kafka da era digital (12.4.2016)



(ilustração: Elena Scotti)

A fazenda de Joyce Taylor, 82 anos, no Kansas, tem sido assediada nos últimos anos, para grande espanto na região, por “agentes do FBI, xerifes federais, cobradores da receita federal, ambulâncias tentando socorrer veteranos-de-guerra suicidas, policiais à procura de crianças desaparecidas”.  Ninguém ali sabe por quê. É uma zona rural, e a cidade mais próxima tem 13 mil habitantes. Levou algum tempo para alguém perceber que isso se devia a um erro básico de mapeamento da Internet.

Quando a gente diz que “está na Internet” pensa o que? Eu penso em algo como uma biblioteca, onde a localização exata de um livro obedece a um código numérico. Tendo o número de código, a gente se encaminha para o andar, o setor, a estante, a prateleira, o volume procurado. Do mais amplo para o mais restrito. É como procurar a cidade, o bairro, a rua, o prédio, o apartamento.

A Internet é um pouco assim, só que mais bagunçada. Todo computador (celular, etc.) tem um endereço IP, que é como um CPF, da máquina que você usa. É um número único, que fica registrado cada vez que a gente conecta em algum ponto. (Teoricamente, é assim que a polícia localiza os pretendentes a malfeitores do ciberespaço – os verdadeiros malfeitores sabem como evitar isso.)

Uma matéria recente de Kashmir Hill no websaite Fusion revela o lado avesso desse processo que parece tão certinho. Explica ele que existem empresas especializadas em mapeamento digital, ou seja, em informar a localização de um endereço IP. Digamos que alguém me mandou mensagens ameaçadoras, ou que me aplicou um conto-do-vigário via Internet, e que eu consegui descobrir o endereço IP do computador original, que fica nos EUA. O que faço? Entro em contato com uma empresa como a “MasterMind”, e ela me diz o endereço onde está essa máquina.

Só que o processo de rastrear a máquina é falível, imperfeito, cheio de buracos. Às vezes chega à precisão de indicar um quarteirão, uma casa. Mais frequentemente, diz apenas: “Este IP está na cidade tal”. Quando ela não consegue saber algo mais específico, diz em que país está, mas para isso precisa fornecer coordenadas (latitude e longitude). O que faz a MasterMind, quando um IP é difícil de rastrear, e sabe-se apenas que está nos Estados Unidos? A companhia indica as coordenadas relativas ao centro geográfico do país. (É o mesmo raciocínio, acho eu, que faz com que quando o computador seja iniciado o mouse apareça exatamente no centro do monitor).

Sempre que um endereço de IP fica difícil de rastrear e sabe-se apenas que está no país, o “país” é indicado pelo seu centro geográfico. Acontece que esse centro, conforme foi calculado pela MasterMind, fica perto da fazenda de Joyce Taylor! O autor da matéria pediu um levantamento desses endereços e encontrou nada menos de 600 milhões de endereços IP que ninguém pôde localizar com mais precisão e jogou para o centro dos EUA, ou seja, para a fazenda da pobre sra. Taylor.

A matéria cita vários outros exemplos dessa nuvem de endereços fantasmas que ninguém sabe onde estão situados mas um cálculo meio descuidado (os próprios diretores da empresa admitiram) acabou empurrando para uma direção física, cheia de gente real, cuja vida começou a ser bagunçada unicamente por conta de um “gatilho técnico”. É o Kafka da era digital.

A matéria completa, de Kashmir Hill:
http://fusion.net/story/287592/internet-mapping-glitch-kansas-farm/





segunda-feira, 11 de abril de 2016

4099) Literatura e coincidências (11.4.2016)



Por que motivo ficamos um pouco decepcionados com um livro (um filme, etc.) onde uma grave situação de mistério ou de ameaça é resolvida por causa de uma coincidência espantosa e bem vinda, dessas de uma em um milhão?. O leitor sente que o autor trapaceou em benefício próprio.

Eu já vi em último capítulo de telenovela um crime antigo ser finalmente desvendado quando a polícia faz uma última varredura no local, e acha a carteira de identidade do assassino, que ele perdeu no dia em que praticou o crime.  Nem ele tinha voltado para buscar nem a polícia tinha encontrado na primeira investigação, cinquenta capítulos atrás.

O público se julga trapaceado porque o autor está usando um “deus ex machina”, está resolvendo de uma maneira meio ditatorial um problema que precisaria de uma certa diplomacia dramatúrgica. Li recentemente um ótimo livro policial onde se conta um sequestro. Procura-se por toda parte, em várias estradas do município, algum vestígio da pessoa sequestrada. A certa altura, um amigo do protagonista pede a este que pare o carro ali numa estrada remota, pois ele precisa ir urgentemente ao banheiro. Ele para, e quando fica esperando resolve ele próprio tirar água do joelho. Quando vai até o mato, vê brilhando ali o capacete da pessoa sequestrada.

Já aconteceram comigo coincidências de cair o queixo, mas não tinham outro significado a não ser o de sua raridade estatística. Não parecia que era uma falha da Matrix, ou que era uma forma nova de mandar recados. Mesmo que se prove que somos o videogame de Alguém, isso não resolve nenhum dos nossos problemas. A história continua a mesma.

Emma Coats, roteirista da “Pixar”, diz: “Coincidências para botar os personagens numa confusão, ótimo; mas coincidências para salvá-los são trapaça.”  Não sei até que ponto a maioria dos leitores controla esses detalhes à medida que vai lendo. O melodrama teatral e o folhetim literário de antigamente usavam muito a coincidência nesses dois sentidos. Uma conversa entreouvida ao pé de uma janela, uma carta ou documento que se perde por acidente, pessoas compartilhando nomes, lugares, sendo ligadas entre si por um número ou por um fato aleatório.

A coincidência “a favor do roteirista” (para tirá-lo de um beco narrativo sem saída) é golpe baixo, é como um coringa sujando uma canastra quase real. Perderá esse agravante se outras coincidências randômicas se abaterem sobre a narrativa, em diferentes pontos, sem propósito específico. Aleatório como a realidade. Num contexto assim, a coincidência salvadora se dilui entre outras que se abateram sobre o protagonista. Uma porção de coincidências inexplicáveis e sem grande repercussão no enredo podem atenuar a presença eventual de uma coincidênciazinha que ajuda o personagem.





sábado, 9 de abril de 2016

4098) Os extraordinários (10.4.2016)



É um personagem recorrente na história da humanidade. É o sujeito que tem todas as qualidades: gente boa, honesto, simpático, inteligente, trabalhador, esforçado, um profissional realizado, quando maduro, um grande potencial de futuro, quando jovem. Alguém detentor de todos os méritos, herdeiro de todas as conquistas. É o personagem sonho-de-consumo de incontáveis pés-rapados, zés-ninguém, borra-botas, os sem ofício, os sem preparo, os sem fuga, os sem noção. A fantasia de quem para na calçada e fica olhando na vitrine uma TV ligada, onde acontecem coisas incompreensíveis que despertam a veemência do senhor de terno. Nessa imagem o transeunte reencontra o personagem que ele queria ser se um dia crescesse.

Há milhões de sujeitos iguaizinhos a ele (ao notívago na calçada, no clarão da vitrine, regressando a contragosto para uma casa que é um moído de problemas que nunca se acabam) que já tiveram a chance de se aproximar do homem de terno. Puderam pedir um autógrafo, apertar sua mão por cima dos braços retesados dos seguranças, fazer um selfie, ganhar um tapinha no ombro dado por ele (o homm de qualidades). E nesse instante, ao ser valorizado pelo líder, zé-mané se infla de cidadania, sente-se realizado.

No momento republicano do selfie, o fã e o ídolo são nivelados diante de uma lei maior, de um espírito cujo culto criou as circunstâncias concretas para aquele encontro e aquela mensagem de otimismo. O fã pensou: “Somos cidadãos, somos iguais.”  E o ídolo pensou consigo: “Sim, mas é claro que uns merecem ser mais iguais do que os outros”.

E na hora em que isso é pensado (e pior, quando é agido) pela primeira vez, some tudo que não é o Arquétipo, somem o terno Armani e a toga romana, some o coronel do rancho e some o lorde inglês. Quem está ali é o arquétipo, o personagem, o cara que descobre em si mesmo um insuspeitado (ou melhor, implícito, quase minimizado) superpoder.

É por isso que o Raskólnikov de Crime e Castigo pergunta: o que aconteceria se no lugar dele estivesse Napoleão, e como um obstáculo à sua ascensão houvesse apenas alguma velha ridícula, usurária, e fosse preciso matá-la e saquear seu cofre para financiar os estudos, uma carreira literária, quem sabe um cargo de projeção política na Corte?! O Corso titubearia? Não, porque ele sabe que é um extraordinário, se não pelo sangue nobre, pela ousadia. Napoleão forneceu a Raskólnikov o argumento de passar por cima dos inferiores, a crença de que o mundo pertence a eles, os Extraordinários, e que eles não precisam sequer de justificativas. “Eu não matei para obter recursos e poder,” diz ele, “eu simplesmente matei; matei para mim, só para mim.”

(Esta foi a minha última coluna no "Jornal da Paraíba", cujas atividades impressas se encerram neste domingo, dia 10 de abril de 2016. A publicação de novos artigos continuará normalmente, apenas aqui no blog Mundo Fantasmo.) 






sexta-feira, 8 de abril de 2016

4097) A Ciência numa frase (9.4.2016)



Richard Feynman, ganhador do Prêmio Nobel de Física, foi professor numa universidade carioca durante algum tempo. Era um cientista questionador, anticonvencional. Embora tivesse adorado o Brasil pelo seu espírito extrovertido, alegre, ele deu em seus livros de memórias um retrato muito pouco elogioso da educação brasileira. “A maioria dos universitários não são estimulados a pensar,” dizia ele, “tudo que querem é decorar fórmulas e aplicá-las nas provas, sem muito interesse pelo seu significado”.  Diagnóstico que bate com a minha experiência pessoal.

Propuseram a Feynman certa vez um problema conceitual. Digamos que acontecesse na Terra um cataclismo e toda a nossa civilização fosse destruída, com todas as nossas conquistas científicas e tecnológicas. 

E digamos que fosse possível preservar, para a humanidade futura, apenas uma frase, uma frase que contivesse o máximo de informação sobre nossa ciência, sobre o máximo a que conseguimos chegar na decifração dos segredos do Universo. Que frase seria essa?

Feynman propôs esta resposta: 

“Todas as coisas são feitas de átomos, pequenas partículas que giram em movimento perpétuo, atraindo-se umas às outras quando estão próximas, mas repelindo-se quando são ‘apertadas’ umas de encontro às outras”.

Para Feynman, bastaria um pouco de imaginação filosófica e de experiências práticas para, partindo desse ponto, recomeçar a civilização. É algo que a humanidade procurava tateando, desde os filósofos pré-socráticos, e acabou estabelecendo como hipótese central de trabalho, milhares de anos depois, no decisivo século 20. 

A definição “partículas” é questionável, mas é um bom ponto de partida para discutir a natureza da matéria. O fato de que se atraem e se repelem em diferentes condições deixa implícita a cadeia de reações cuja existência comprovamos, e cuja natureza até hoje tentamos explicar (“força forte”, “força fraca”, “gravidade”, “eletromagnetismo”, etc.). 

Como faria a civilização futura para reconstituir todo o nosso edifício científico a partir dessa frase? Bem, isso aí daria um bom romance de FC na linha de Um Cântico para Leibowitz

A frase de Feynman mata a charada? De jeito nenhum. Um biólogo, um químico, um antropólogo, um economista etc. proporiam frases-síntese muito diferentes. 

O que desafios desse tipo têm de bom é que nos forçam a voltar para o básico-das-coisas, como quando uma criança nos faz totalmente a sério uma pergunta fatal: Por quê que chove? O sol é feito do quê?  Por que umas coisas caem e outras (uma pena, p. ex.) não? Pra onde a gente vai quando dorme? O que tem embaixo do chão? De que é que eu sou feito?





quinta-feira, 7 de abril de 2016

4096) Como narrar histórias (8.4.2016)



(Emma Coats)

Volta e meia estou aqui comentando conselhos narrativos de Emma Coats, roteirista da Pixar que vive tuitando pequenas dicas. Alguns roteiristas curtem, alguns literatos acham meio plebeu ficar usando o cinema norte-americano como referência para a literatura. Ora, a arte da narrativa é algo que corta transversalmente tudo: literatura, cinema, teatro, histórias em quadrinhos, poema épico... A Narrativa tem certas regras topológicas internas que independem da linguagem utilizada. Contar uma história é uma arte transversal.

Nem toda regra se aplica a tudo, mas quanto mais atentarmos para elas mais perto estaremos de entender como se conta uma história. Estou falando de entender intuitivamente: aquele entendimento que vem de muita informação prática acumulada e que nos faz perceber de imediato o melhor caminho. É assim que um mestre de xadrez olha uma posição no tabuleiro e rapidamente elimina algunas dezenas de milhões de possibilidades nulas, para se concentrar na meia dúzia que podem dar-um-caldo.

Diz Emma: “Quando você estiver bloqueado, sem saber como avançar no enredo, faça uma lista das coisas que NÃO aconteceriam em seguida. Muitas vezes isso vai fazer aparecer as idéias para desencalhar sua história.” Esse conselho é hábil, porque quando queremos saber apenas o que DEVE acontecer, isso põe um peso muito grande na lógica, nas relações causa-e-efeito. Ficamos mais presos à explicação da história do que à dinâmica viva da história. E muitas vezes acabamos derivando para a região de alta redundância narrativa. Aquela guinada plenamente justificada mas que faz o leitor pensar: “Oi, era só isso?”.

Pensar no que não deve acontecer significa abrir diante de si mesmo todo o leque de opções da história. Se você admite que algo não deve acontecer aos personagens naquele momento é porque a narrativa está com um viés, com uma direção que precisa ser seguida. Às vezes a gente não percebe esse viés, está escrevendo somente pelo prazer de criar os episódios isolados, mas esses episódios podem estar pendendo a história numa direção geral que a gente não percebe.

Por isso acho interessante um aspecto do método criativo de William Gibson (Neuromancer), embora seja algo que eu jamais faria. Diz ele, numa entrevista recente à Paris Review: “Todos os dias, quando me sento com o manuscrito, começo na página 1 e releio o texto completo, revisando à vontade.” Quem faz isso todo dia percebe com muito mais clareza para onde a história está indo. É diferente de quem todo dia pega onde largou e, se estiver na página 120, a esta altura já esqueceu o que tem na página 50 (comigo é assim).





quarta-feira, 6 de abril de 2016

4095) Falando paraibano (7.4.2016)



No capítulo da fala paraibana (ou nordestina), tenho recorrido às minhas anotações para ver até que ponto certas expressões que sempre me pareceram “nossas” são brasileiras de ponta a ponta. Ou se (caso também possível) são nordestinas mesmo, mas as migrações e as trocas culturais já as espalharam pelo resto do país. Aqui vão mais alguns verbetes do meu inédito Dicionário Paraibano.

“Amarrar o cocó”. Diz-se de quando a chuva torna-se mais forte e mais cerrada, ameaçando durar por muito mais tempo. “Eu estava pensando em ir pra casa, mas agora a chuva amarrou o cocó e acho melhor dormir aqui mesmo.”

“Desconfiado que só cachorro em bagageiro de bicicleta”. “Desconfiado”, no caso, vem no sentido de “pouco à vontade, inseguro, receoso”.  No Rio usa-se muito uma variante: “Desconfiado que só cachorro que caiu da mudança.”

“Dar uma subida”. Passar uma descompostura; repreender alguém com veemência e agressividade.  “Quando eu cheguei atrasado no primeiro dia de trabalho, o cara me deu uma subida na frente do escritório todo, morri de vergonha.”  Tem relação com a expressão “subir de tamanco”, que tem sentido semelhante: “Com Fulano a gente tem que subir de tamanco nele de vez em quando, senão ele bota tudo a perder.”  É frequente usar complementos exagerados: “Ele subiu de tamanco e desceu de botina em cima do porteiro, porque ele dormiu e deixou a porta aberta.”

“Carrego (ê).” Pessoa complicada, com energia negativa, que só atrai problemas e confusões.  “Fulano é um carrego muito grande, quando ele senta na mesa eu vou logo perguntando quanto foi minha parte na conta”.  Tem ligação com expressões como “Aquele ambiente é muito carregado”, ou “Vou tomar um banho de sal grosso pra descarregar”.

“Bufo-bufo”. Onomatopéia usada no futebol: é o jogo à base de chutões para a frente e muita correria. "Eu não sei qual foi o milagre desse técnico pra fazer o Treze baixar essa bola, o Treze sempre foi um time de bufo-bufo."

“Até meia noite.” Modo brincalhão de confirmar uma data perguntada por alguém. "-- Hoje é sábado?...  -- Até meia-noite!"   Tem relação com o hábito de pessoas do tipo "idiotas da objetividade", que, quando alguém diz: "O aniversário de Fulano é amanhã", o sujeito exibe o relógio num inexplicável gesto de triunfo: "Amanhã, não!  Hoje!  Já passou de meia-noite!" Reflexo da substituição da noção natural de dia, que se inicia ao nascer do sol, pelo dia conceitual, que se inicia à meia-noite. 

“Despranaviar”. Cair na farra, cair na gandaia.  “O carnaval está chegando, eu agora quero é despranaviar”.   Termo popularizado pelo Coronel Ludugero, personagem criado por Luiz (pai de Lula) Queiroga.