terça-feira, 22 de março de 2016

4081) Tragédias e vinganças (22.3.2016)



Uma vez, entre amigos, alguém contou uma história terrível a respeito dos seus antepassados. Não era ninguém famoso, nenhum fato “exarado nas efemérides”, como diria Guimarães Rosa, mas ao que parece havia cavernas ocultas na história da família dele, e o que ele nos ofereceu só fez aumentar a nossa ânsia por mais. Sem entrar no mérito das paixões e dos parâmetros da época, deixemos que a História se conte a si mesma. Que as histórias guardadas sejam trazidas à luz, desempoeiradas, e postas a funcionar diante de todo mundo. Nada faz mais a festa nossa do que a vida alheia, principalmente quando essa vida dá uma bela história para contar depois, para quem é como eu, daquele tipo que tudo recorda.

Era uma história que envolvia violência e vingança entre famílias que se tinham em alto conceito, aquelas famílias de sobrenome imponente e impoluto, que consideram sua própria história uma mitologia, uma religião. Mortes daqui, mortes dali. A vida real é um filme terrível, do qual não se acorda nunca. A cruz da história é uma decisão que o personagem toma, entre a catástrofe A ou a catástrofe B. A gente sempre sai do cinema achando que a melhor solução teria sido a outra, tal é o poder da catarse trágica de um filme. Mas não adianta. Filmes de tragédia, mesmo os de final acautelatório, precisam confirmar que a catástrofe já acabou, já foi concluída, registrada, analisada, conceituada, ressignificada. O filme acaba, e estamos agora em boas mãos.

O que acontece (disse aquele amigo nosso) é que ele agora se via num dilema com que Shakespeare não sonhou. Estava a ponto de assinar um contrato de sociedade de não sei quantos dígitos, numa situação jurídico-financeira onde (segundo ele próprio) era preciso existir confiança cega e absoluta entre ambas as partes, porque se uma delas quisesse poderia afundar a outra com um mero documento. E a outra parte pertencia à família envolvida na bendita tragédia-familiar citada acima. Ele erguia olhos insones e dizia: “Como posso confiar nessas pessoas?!”.

Pois é, nem Shakespeare seria cruel a esse ponto. Deu-nos apenas a versão “diet”, envolvendo Montecchios, Capuletos e um casalzinho de jovens rebeldes.  Inimizades históricas (entre famílias; entre povos; entre vizinhos) não são algo que possa ser varrido do mapa por um decreto. Decretos não detergem manchas de sangue, quando houve sangue. O que meu amigo me perguntava, era, de certo modo: “Como posso saber se em pleno voo eles não cederão ao impulso atávico de destruir os meus? Como posso saber se eu mesmo resistirei ao impulso, à tentação, à missão, ao dever, ao prazer silencioso de destruir um deles?”.





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