terça-feira, 15 de março de 2016

4076) O passeio de Joãozinho (16.3.2016)



É uma rotina antiga, confortável. Como toda rotina, é uma tentativa de volta a um passado onde tudo correu bem. Quando D. Helena pega Joãozinho e desce pelo elevador de serviço, ao lusco-fusco do entardecer, todos os dias, religiosamente, ela, aos 72 anos, está fazendo na verdade uma viagem no Tempo. Na cabeça dela, descer para o passeio diário de Joãozinho não é apenas uma ida até a pracinha, é uma visita ao dia de ontem. O que ela espera é voltar ao dia de ontem, a tudo que ontem ocorreu de confortável, de reconfortante, o diálogo com as empregadas domésticas e as babás, com os donos de pets, com o pessoal de short e tênis acenando um boa-noite arquejante nas subidas e descidas do quarteirão. Ela quer voltar às coisas boas do dia de ontem, quer que aquilo-bom que já aconteceu venha e aconteça  de novo, com alguma variante ou interferência, tanto faz, desde que o dia-de-ontem-revisitado-hoje seja tão pacífico, pacato, cordeiro, manso, quanto o dia de ontem original.

Ela vai portanto à área de serviço, onde Joãozinho já a espera, olhos brilhantes, cheio de expectativa. Recolhe os jornais sujos que forram o chão, espalha jornais limpos, troca a água. Prende a correntinha à coleira e Joãozinho já se agita feliz. Em momentos assim ela lembra às vezes o dia em que o conheceu e o escolheu, no meio de tantos outros, todos tão abandonadinhos, todos tão carentes. Acompanhada por dois funcionários ela se debruçou na mureta, ficou olhando aquelas criaturinhas, coitadas, tão sem ninguém. E viu os olhinhos pretos dele fitos no dela, e exclamou: “Aquele! Vai ser aquele ali! Olha como ele me olha! Parece até que está me reconhecendo!”  Foram poucos dias de assinatura de documentos, exames médicos, termos de responsabilidade, e Joãozinho veio e se instalou no centro da vida dela. Como um pequenino imperador, alguém que foi feito só para dar amor, dar gratidão.

Ela caminha pela calçada, mantém corrente curta para Joãozinho não se chegar demais ao meio fio, não atrapalhar a passagem dos transeuntes. Ele tem algumas vitrinas favoritas onde se detém fascinado vendo aquelas cores e luzes que decerto não compreende. Ela segue até a praça, onde há um vasto quadrilátero cercado onde ele pode ser solto, correr um pouco, brincar com os outros, enquanto os donos se cumprimentam, conversam amenidades, trocam conselhos sobre alimentação, remédios antipiolhos e tudo o mais. Hora de voltar, Joãozinho! As primeiras estrelas já brilham no céu. Ele volta, meio relutante, meio satisfeito, mas essa meia-horinha é tão importante para o coitado, olha só a felicidade nos olhos dele, parece gente.




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