quarta-feira, 7 de outubro de 2015

3939) O Duplo (8.10.2015)



(o ator Richard Mansfield como "Jekyll e Hyde")

O duplo é uma figura familiar a quem se interessa pela narrativa fantástica. Ele é chamado de “double”, de “Doppelganger”; é o reflexo no espelho, é o Outro... O conceito é rico, e por isso mesmo acaba acumulando variantes, nem todas com o mesmo DNA ou seguindo a mesma lógica. Nem todo conjunto de dois personagens muito próximos ou muito parecidos tem a mesma dinâmica, a mesma hierarquia de relacionamento. São dois. Mas são dois que obedecem a diferentes sintaxes de dramaturgia (não sei se o termo é absurdo, mas vá lá). O retrato de Dorian Gray é um duplo dele, mas em circunstâncias muito diferentes, por exemplo, do modo como a imagem do Estudante de Praga, também um “Duplo”, que sai do espelho para cometer crimes em nome dele.

Na noveleta famosa de R. L. Stevenson, a relação entre o Dr. Jekyll e Mr. Hyde não exprime o conceito do “duplo” no sentido de uma “aparente duplicação de um indivíduo, com variados graus de semelhança”. É uma relação de Criador e Criatura (que aliás não existe nos exemplos acima). O dr. Jekyll cria cientificamente o seu opositor. Sua narrativa tem o DNA da história do Dr. Frankenstein e o monstro que ele faz surgir em seu laboratório.

O erro mais frequente nas interpretações desse livro é opor um Jekyll bom a um Hyde mau. Ouve-se às vezes por aí algo na linha de “Fulano de Tal exibe a bondade e a pureza de um dr. Jekyll, mas dentro dele se esconde um Mr. Hyde.”  Bondade e pureza não se aplicariam nem a Jekyll nem a Victor Frankenstein. Talvez arrogância, hubris, descaso com precauções. No caso de Stevenson, ele indica Hyde como um inimigo de Jekyll, mas parece sugerir que ele é uma droga, um vício secreto com que o doutor se diverte mas quando menos espera tudo está a ponto de se tornar público.

O médico ilibado e o sadista de rua não são reflexos ou réplicas um do outro no sentido em que o são, p. ex., os sósias e xarás do conto “William Wilson” de Edgar Poe. Aí, sim, existe um espelhamento distorcido. Cada um é espelho do outro, com diferenças essenciais. A leitura moralista diria que um era a má consciência do outro. Mais interessante é notar que dois sósias, de nome igual, estudando no mesmo colégio têm que se autodestruir, como duas partículas subatômicas contrárias.

A ficção científica pegou esse conceito do Duplo e propôs o Múltiplo. E daí pôs em movimento caravanas de clones, de vítimas de duplicadores moleculares, de viajantes no Tempo arrastados num remanso onde acabam se chocando com versões alternativas de si mesmos. O William Wilson justiceiro podia ser uma versão eu-sou-você-amanhã do WW “frívolo peralta”.  Cada Duplo se rege por leis diferentes.