quarta-feira, 2 de setembro de 2015

3909) Borges, Calvino e a tradução (3.9.2015)





A Antologia de Literatura Fantástica (1940), organizada por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo é um clássico do gênero; no Brasil, saiu recentemente pela editora Cosac Naify, com tradução de Josely Vianna Baptista. 

Numa nota incluída na edição brasileira, é citada uma frase de Borges sobre a edição italiana. Queixa-se ele: 

“Não traduziram nossa antologia: procuraram as fontes e traduziram. Agiram assim em prejuízo do leitor, naturalmente. Não deveriam ter escolhido um livro de autores que se distinguem por suas transcrições e citações infiéis”.

Deixo para os mais metódicos e mais disponíveis do que eu a tarefa de comparar com os originais as versões dos contos desse volume. As traduções de Borges são famosamente não-confiáveis; uma vez chequei sua versão de “A carta roubada” de Poe e constatei que era substancialmente mais enxuta do que o original. 

Isso é um crime de lesa-arte? É um péssimo exemplo para tradutores jovens e apressados, ou idosos e impacientes?  Para mim, essa atitude desabusada tem a ver com o valor quase místico que Borges atribuía aos grandes enredos, os grandes “plots” literários, que ele julgava capazes de sobreviver a séculos de traduções, adaptações, etc.

Isto me trouxe à mente uma atitude parecida, a de Ítalo Calvino ao compilar as suas Fábulas Italianas (Companhia das Letras, 1992, trad. Nilson Moulin). Reunindo versões de contos populares da Itália, num trabalho comparável ao feito entre nós por Câmara Cascudo ou Sílvio Romero, diz Calvino, em sua longa e excelente introdução, que não se furtou a “meter a mão” nas histórias compiladas e traduzidas de fontes em dialeto: 

“Inventei nomes e lengalengas... montei a narração conforme quis... trabalhei por inventiva própria... ocasionalmente, atribuí nomes às personagens...”  

E afirma: 

“Quantas vezes defrontei-me com uma página vernácula cuja tradução equivalia à morte?; e quantas outras vezes, por outro lado, só encontrava testemunhos tão frágeis de uma fábula que me interrogava se não deveria, para salvá-la, redesenhá-la de alto a baixo com novas imagens e soluções?”.

A atitude do escritor, como se vê, é inversa à do tradutor ou à do folclorista profissional. Ele não vê o original como algo precioso a ser preservado a todo custo mediante uma cega fidelidade. O escritor é (diz Calvino) “um elo da anônima cadeia sem fim pela qual as fábulas se perpetuam”. E cita um provérbio toscano: “a novela vale por aquilo que nela tece e volta a tecer quem a reproduz.” 

Um precedente perigoso, claro, dado o grau de irresponsabilidade em nossas selvas editoriais. Mas esta é uma questão crucial onde quer que um autor-criador se preste a intermediário em qualquer ponto da cadeia de transmissão das histórias.