sábado, 20 de junho de 2015

3846) Palavras intraduzíveis (21.6.2015)



(ilustração: Berenice Abbott)

Há muitos blogs e saites por aí explorando sutilezas das línguas, como por exemplo as palavras que não têm equivalente direto em outros idiomas. Nós, lusófonos, nos orgulhamos de nossa “saudade”, uma palavra preciosa para um sentimento que talvez a gente sinta melhor do que os demais, graças à variedade de contextos pessoais e coletivos em que a palavra é usada.

Todo idioma tem esses termos que, noutra língua, precisam ser explicados, e que, quando se trata da tradução de um livro, forçam o tradutor, rangendo os dentes de raiva, a fazer longos circunlóquios para explicar o que o autor conseguiu dizer com um único termo. No alemão cita-se muito “Schadenfreude”, que é “a alegria que sentimos quando vemos alguma coisa ruim acontecer com alguém”. Esta é uma descrição aproximada, claro; todo mundo que a descreve adiciona uma fímbria nova de sentido, e é pra ser assim mesmo. “Schadenfreude” talvez seja aquela sensação que nos faz ficar olhando algo e murmurando baixinho: “Bem feito!”, ou “Toma!”.

Num desses saites um leitor norte-americano lembrou a quantidade de palavras assim que há no inglês e lembrou “discombobulated”. Para este, eu sugeriria o nosso “descompensado”. “Fulano era um cara normal, mas passou anos tomando LSD direto, e ficou meio descompensado”. O mesmo leitor pede um equivalente para o inglês “rigmarole”, que o dicionário define como “conversa ou história sem nexo ou sentido”, e que entre nós talvez possa ser preenchido com “xaropada”, “lero-lero”...

Também em inglês tem o caso de “shenanigan”, uma palavra traiçoeira que pode significar, de acordo com o contexto e o tom: trapaça, golpe, embromação, enrolada, um-sete-um, caô, papo-de-urubu-pra-moribundo. Palavras assim são sempre fortemente coloquiais, e de etimologia confusa. Para “shenanigan”, p. ex., já foi sugerido o francês “ces manigances” (“essas trapaças”).

E o que dizer desse verdadeiro vírus-mutante do inglês que é “thingamajig / thingumabob / thingumadoodle / thingmananny” e centenas de variantes, palavras para designar algo que não nos ocorre no momento? Esse troço, negócio (“me dá aí o negócio da coisa”, como pede Walter Carvalho aos seus assistentes de câmera), parangolé, badulaque, não-sei-que-lá... O mineiro usa “esse trem”, o baiano diz “a porra aí”; são termos criados de dentro para fora, da fala coloquial até chegar um dia aos dicionários de gíria, depois aos dicionários oficiais da língua. Em casos assim, a palavra em português tem equivalência meramente funcional na frase, mas a rigor estamos muitas vezes traduzindo uma palavra intraduzível do inglês por outra palavra intraduzível do português.



3845) "eXistenZ" (20.6.2015)



Coordenei para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes nos sábados às 14:00h, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 20 de junho, será exibido o último filme dessa mostra: eXistenZ de David Cronenberg (1999). O diretor tem realizado thrillers policiais realistas nos últimos anos, mas marcou sua posição no cinema com uma série de filmes semi-FC descrevendo os tipos mais incômodos e delirantes de relacionamento entre seres humanos, máquinas, criaturas monstruosas em geral, num clima de estados alterados de consciência e morbidez mental generalizada. Ele já filmou autores como Don DeLillo, J. G. Ballard e William Burroughs, sempre encontrando neles pontos de contato com sua própria visão.


eXistenZ tem essa grafia no título, ao que parece, porque dois produtores do filme são húngaros, e a palavra “isten” em húngaro significa “Deus”. E o filme, embora não seja propriamente sobre Deus, é sobre o conceito de realidade, mostrando pessoas que mergulham num videogame que é plugado ao usuário via uma porta cibernética implantada na espinha dorsal, com o auxílio de cordões umbilicais biotecnológicos. Como geralmente se dá nessas situações, depois que o personagem dá o primeiro salto para a “outra realidade” (o game), nunca mais vai ter certeza de onde está, se de fato voltou à realidade onde estava antes, ou se está saltando para níveis cada vez mais remotos de realidades ilusórias.

Saber em que plano está acontecendo cada cena é um dos passatempos deste filme que, segundo dizem, Cronenberg teve a idéia de escrever quando entrevistou Salman Rushdie, na época escondido do mundo devido à “fatwa” islâmica que ofereceu um prêmio por sua cabeça. O diretor pensou em explorar num filme uma situação assim vivida por um designer de games perseguido por um grupo armado.

É um filme com atentados, perseguições, fugas, conflitos. Há momentos arrepiantes em que o “jogo” fica em pausa e seus personagens sorriem, paradões, sem nada ver, enquanto os dois protagonistas comentam o que farão em seguida. Uma incerteza tipo Philip K. Dick permeia o filme, além das eventuais imagens bizarras e meio repulsivas que parecem fascinar o diretor. (O filme é mais leve, contudo, do que pesos-pesados como Videodrome, Almoço Nu ou A Mosca). É um cinema fantástico que deve igualmente à psicanálise, à cibernética, à teratologia, à teoria dos universos múltiplos, às aventuras pulp-ficcionais de heróis por acaso.