quinta-feira, 18 de junho de 2015

3844) Gelo e Fogo (19.6.2015)



Nenhum indivíduo deveria morrer sem saber sua origem, de onde veio, quem o pôs no mundo, qual o mistério que cerca seu nascimento. O folhetim clássico já nos deu centenas de vezes  o drama de quem passa a vida em busca de solver o mistério de si mesmo até se deparar com a mais terrível das revelações. O folhetim moderno parece ter condenado alguns dos seus personagens não apenas à morte, mas a uma vida em vão. Nunca saberão de nada; chega parece que seu destino é algo que já estava escrito há muito tempo, por alguma divindade impaciente. “Procurarás, e não ficarás sabendo.”



E olha que estamos falando de um universo onde há não apenas uma luta entre casas reais de um continente, mas entre continentes distintos, cada qual pouco ligando para as distinções e as dissidências internas do outro. O povo de um deus numérico contra o povo de um deus cromático, isso para não falar em outros que por enquanto permanecem na penumbra, mas próximos. Como se manifesta o vosso deus? seria uma boa pergunta inicial na primeira reunião entre dois embaixadores.



Nada mais verdadeiro, segundo Bob Dylan, do que o gelo e o fogo. Basta perguntar às pontas dos nossos dedos. Gelo e fogo são o xibolete materialista terminal. A pedra de toque: saber se posso ou não tocar nessa pedra. O que nem sempre se deve fazer. Quando um personagem entra num recinto e existe um botão bem à vista, não há como não pensar que todo o fluxo da história depende de que ele estenda o dedo e aperte. Alguém bastante curioso, imprudente ou maluco para apertar esse botão sem pensar a que ele se refere. São as pessoas que fazem a História dar um solavanco, que tanto pode levá-la para a frente (como a Segunda Guerra Mundial) quanto para trás (como a Primeira).



Parece que a narrativa de Fantasia Heróica em questão levantou um tapete, ou uma série de tapetes religiosos, e se deparou com seitas purificadoras, fogueiras sacrificiais em praças públicas, o poder da fé subjugando o poder da espada. Os sem fé parecem ser todos canalhas e calígulas. Os crentes parecem ser ceifadores do erro, máquinas de povoar o mundo das almas purificadas durante o próprio castigo.


Qual a governante que não gostaria de montar num dragão, passar o rodo em tudo ao seu redor, e partir rumo a uma aventura terramarear?  Qual a espada-paga que recusaria uma aventura sem pé nem cabeça, desde que pudesse enfrentar alguém com um bom pretexto? Qual o roteirista que recusaria a chance de mexer na quantidade dos mandamentos, no número de lados de um pentágono, na quadratura do círculo, na vida e na morte de pessoas reais o bastante para serem levadas em conta e nos servirem de selfies disfarçados?





3843) Jazz, FC e cantoria (18.6.2015)






O jazz talvez venha a ser visto um dia como a música que melhor refletiu o século 20. (Não, não é o rock. O rock só cobriu a segunda metade do século.)  

O jazz é visto como a música do improviso, mas todo ano se gasta, na indústria editorial, um Rio Negro de tinta para descobrir e glosar novas sutilezas suas. Geoff Dyer, num artigo de 1991 (em The Picador Book of Blues and Jazz, 1995) examina uma hipótese de George Steiner, de que toda a crítica de artes e de literatura deixasse de existir. Haveria apenas a justaposição entre artista e público, sem explicadores, sem intermediários. Um “ozônio de comentários”, diz Dyer, sugerindo que a crítica é uma camada protetora cuja ausência fosse talvez perigosa demais para a arte.



Mas logo adiante ele lembra que para o próprio Steiner a própria arte é a melhor reflexão sobre a arte. Dyer transpõe as referências clássicas de Steiner para o jazz, onde, segundo ele, cada performance, cada fonograma, é ao mesmo tempo criação musical e crítica da música que veio antes. 

No jazz, diz Dyer, “se traçássemos linhas ligando todas as canções disponíveis num diagrama assinalando todas as homenagens e tributos, logo o papel se tornaria impenetravelmente preto, e o sentido do diagrama seria eclipsado pela quantidade de informação que precisaríamos registrar”.



Essa reflexão pode ser aplicada a muitas formas de arte além da música clássica e do jazz. Ela é especialmente aplicável a duas artes com que tenho certa familiaridade: a ficção científica e a cantoria de viola. Dois universos onde todo mundo que cria já leu todo mundo que criou, formando uma imensa teia de citações, homenagens, paródias, paráfrases, glosas, variantes, universos-compartilhados, sequelas e prequelas, alusões, influências. 

É difícil um autor significativo de FC que em qualquer momento não esteja reciclando e renovando idéias de Wells, de Clarke, etc; idem um cantador de viola que volta e meia não lance mão de temas ou de recursos estruturais vistos pela primeira vez nos versos de Romano do Teixeira, de Pinto do Monteiro, de Vila Nova, etc.


Espírito imitativo ou fervente caldeirão cultural? Fico com a segunda. Para quem é escritor de verdade (músico, cineasta, repentista, etc) a arte em si é o oxigênio. Poeta que passa 24 horas seguidas sem pensar em poesia cai torrado por um raio. Daí que quando o talento individual aparece todo mundo vê logo, porque críticos, leitores, apologistas, editores, todos compartilham o mesmo Banco de Dados Universal, todos são astrônomos que conhecem de cor cada espaço ocupado ou vazio daquele céu, e todos veem ao mesmo tempo a explosão de cada Nova.