sábado, 2 de maio de 2015

3804) Que fim levou? (3.5.2015)



(foto: John Stanmeyer)

Que fim levou Marquinho Honolulu, lá de Olinda, que estava em todas as festas, não cantava, não dançava, ficava só sentado fumando e olhando as meninas, volta e meia se apaixonava pela namorada de alguém e entrava num processo etílico que durava meses, e a quem eu tentei inutilmente explicar como era o sistema correto, 4-4-3-3, de fazer sonetos?

Que fim levou Dona Terta, que todo dia pegava uma cadeira de palhinha, levava até embaixo de uma árvore frondosa em frente à oficina mecânica onde trabalhava seu filho único, Rondismar, e ficava ali fazendo crochê e ouvindo música no radinho de pilha, assim como quem não quer nada, e ai dos colegas de oficina se por causa disso mangassem de Rondismar, que tinha dois metros e cem quilos?

Que fim levou Vânder de Souza, que estudou comigo no Estadual da Prata, bem católico, bem certinho, e o único cara que eu já vi fazer um problema de palavras-cruzadas sem olhar o desenho, apenas ouvindo a gente dizer o enunciado e o número de letras, mantendo na memória cada letra de cada casa já preenchida?

Que fim levou Sônia Lima, a flor do meu bairro, musa unânime dos adolescentes locais, que desfilava inatingível do alto de seus três anos a mais do que eu, loura, nórdica, simpática, que se formou em enfermagem, e, dizem os invejosos, acabou casando com o primeiro doente a quem atendeu?

Que fim levou Dona Amarílis, doceira, quituteira, mãe de cinco filhos, esposa exemplar, que aos cinquenta anos ganhou numa loteria qualquer (e nem foi essas fortunas todas, porque acabou em menos de dois anos), largou tudo e foi viver com um primo em Caruaru?

Que fim levou Dandinho, que morava perto da bodega de Seu Anísio, trabalhava numa oficina, e um dia apareceu de cabeça raspada e disse que estava fazendo um treinamento ninja secreto para entrar na Polícia Federal, mas antes do fim da semana a irmã dele revelou que era piolho?

Que fim levou Seu Sueldo, aquele velho que vivia se balançando numa cadeira no terraço, com um caderninho na mão, anotando coisas, não se sabe o que, porque não era jornalista nem policial, era um ferroviário aposentado, e talvez por isso mesmo vigiasse tanto a rua, antes do filho ser transferido para uma agência bancária em Conselheiro Lafaiete e levá-lo consigo?

Que fim levou Valdir Bamba, amigo de um primo meu, que trabalhava no Zoológico de Dois Irmãos do Recife, e um dia tomou umas caebas, chegou triscado no trabalho, teve um bate-boca com um supervisor que quase resulta em tiro ou peixeirada, mas resultou apenas em Valdir Bamba sair abrindo tudo quanto foi gaiola e jaula, e promovendo um pandemônio que levou dias para ser corrigido?




3803) Livros interferidos (2.5.2015)



(ilustração: Ekaterina Panikanova)

Artes plásticas e literatura são primos distantes que de vez em quando passam férias na casa um do outro. Já falei aqui do artista Tom Philips, cujo livro-obra A Humument (1970) é famoso. Philips pegou um romance vitoriano achado num sebo e interferiu no texto com aquarela, nanquim, lápis de cor, etc., deixando intactas algumas frases e palavras, que, lidas no novo contexto, acabam contando uma nova história. O próprio título já é uma mutilação do título original, A Human Document. O livro, de W. H. Mallock (1892), é uma obra em domínio público. Cada página pintada por Philips sobre o texto original é uma pequena obra de arte em si. Fui agora dar uma olhada no saite (http://www.tomphillips.co.uk/humument) e vi que já existem cinco edições de A Humument, cada uma delas com novas páginas recriadas.

A russa Ekaterina Panikanova faz algo um pouco diferente. Ela pega uma certa quantidade de livros, abre-os em uma página qualquer e os arruma, abertos, em filas e colunas, como quadrados do xadrez. E usa isso como se fosse uma tela, pintando (aplicando colagens, desenhando, etc.) quadros bem amplos, com cada um dos livros abertos recebendo apenas um detalhe da pintura geral. Alguém pode lamentar que os livros sejam inviabilizados para a leitura, mas a verdade é que ela inutiliza apenas um exemplar de cada um, o que não é nada diante dos milhões de livros que vão direto para o lixo todo dia. E o trabalho é uma beleza, como pode ser visto aqui: http://tinyurl.com/mp8qqxl.

A própria literatura interfere fisicamente no livro impresso. O romancista Jonathan Safran Foer pegou em 2010 o livro do alemão Bruno Schulz, A Rua dos Crocodilos (segundo ele, o seu livro favorito) e, onde Tom Philips usou técnicas da pintura, ele as usou da escultura. As páginas do exemplar original foram recortadas, com trechos inteiros retirados (com gilete e estilete, imagino), fazendo com que pelas aberturas aparecessem frases de páginas mais adiante misturando-se às da página aberta. Este pequeno clip do YouTube (http://tinyurl.com/mwtenoq) dá uma idéia do resultado final.

Um livro (dizia Borges) não é uma explicação do universo, é apenas um objeto a mais adicionado a ele. O fato do livro de papel resultar num objeto o transforma de produto em matéria-prima. Vira material de recriação para quem tiver imaginação e paciência não só para criar, mas também para fruir a obra resultante. Obras desse tipo são uma contribuição interessante ao debate sobre livro eletrônico e livro de papel, mostrando que este último, mesmo passivamente, pode ser interativo de muitas maneiras, basta ter uma boa idéia e técnica para executá-la.