quinta-feira, 9 de abril de 2015

3784) Dupla identidade (10.4.2015)



Oscar Wilde, o rei do paradoxo, dizia: “Se quiser conhecer a verdadeira personalidade de alguém, dê-lhe uma máscara”. Faz sentido. Quando estamos mostrando nossa própria cara, estamos mostrando uma imagem presa a convenções e regras sociais, familiares, morais, etc.  

Cada um de nós é um personagem na convivência social com família, amigos, colegas de trabalho. Sabemos que qualquer passo em falso vai manchar a reputação dessa pessoa que somos, desse papel que é o único que temos. Nosso rosto e nossa imagem pública são esculpidas pelo Superego, pelas exigências que nos massacram de cima para baixo e de fora para dentro.

Quando botamos a máscara, a coisa muda de figura. No carnaval, machões se vestem de mulher, homens pacatos empunham armas de brinquedo e promovem massacres fictícios, mulheres recatadas viram odaliscas se oferecendo (de mentirinha) a qualquer um. 

Botam pra fora o que de fato são (ou uma parte importante e reprimida do que são) e vivem o alívio de uma fantasia permissiva e consolatória.

Freud comentou que a literatura popular, com seus heróis indestrutíveis e sempre triunfantes, é “a literatura do Ego”, destinada a celebrar e gratificar essa imagem idealizada de nós mesmos. Quando colocamos uma máscara, essa máscara vira “o Eu que gostaríamos de ser”; quando criamos um herói, acontece o mesmo. 

Histórias de heróis com dupla identidade são um clichê da literatura popular: Superman, Batman, o Zorro, o Sombra, o Homem Aranha e incontáveis outros têm uma identidade pública, pacata, civil, e uma identidade secreta e famosa, o herói que a cidade inteira teme e reverencia sem saber que se trata daquele mesmo indivíduo banal que todos cumprimentam sem saber que dentro dele se esconde o herói.

A saga do Super-Homem pode muito bem ser vista como um delírio de Clark Kent: um repórter desajeitado, grandalhão, de óculos, tímido, incapaz de arranjar uma namorada. 

Por um processo de compensação, Kent começou, a certa altura da vida, a desenvolver uma fantasia de que era na verdade um extraterrestre dotado de superpoderes. Todas aquelas aventuras são imaginárias, são um processo de autoindenização psicológica onde ele cura as feridas produzidas pelo trabalho e sabe-se lá pelo que mais. 

Na sua rotina de redação, Clark Kent embarca waltermittyanamente em devaneios e delírios onde salva vezes sem conta a cidade de Metrópolis e o planeta Terra. O Super-Homem é a máscara que ele usa para “ser ele mesmo”, ser o que ele de fato gostaria de ser. A máscara é o que o Eu gostaria de ver no espelho, mas precisa de uma máscara para isso.  Ninguém contou ainda a verdadeira história de Clark Kent.








3783) Conrad Veidt (9.4.2015)



Ele foi um dos atores mais característicos do Expressionismo Alemão dos anos 1920-30, com seu rosto longo, feições salientes, olhar magnético. O crítico David Thomson o descreveu como “o mais sensível e mais romanticamente belo dos atores expressionistas alemães”, e elogiou sua capacidade de encarnar na tela “o esteta ou artista atormentado por forças obscuras e levado à violência”.  Seu primeiro grande papel foi o do sonâmbulo Cesare em O Gabinete do dr. Caligari (1919) de Robert Wiene: o homem alto, pálido, vestido de preto, que adormecido cruza os telhados levando nos braços a mocinha desmaiada. Cesare virou o modelo de inúmeros outros heróis “dark” do filme de terror, e muitos Dráculas, Frankensteins e Múmias guardam elementos de sua aparência ou de seus movimentos sonambúlicos. Críticos como Kracauer e Eisner viram nele uma alegoria do povo alemão, inconsciente de si mesmo, teleguiado pelo poder da mente de um gênio do Mal.

Em 1926 ele fez o protagonista de O Estudante de Praga de Henrik Galeen, o mesmo Estudante que Vendeu a Alma ao Diabo do folheto de João Martins de Athayde. Outro papel marcante foi o de O Homem que Ri (Paul Leni, 1927), baseado em um romance homônimo de Victor Hugo (1869), onde Veidt faz o nobre francês cujo rosto é desfigurado por uma ordem vingativa do rei. O personagem, com o rosto retalhado e recosturado num esgar que parece uma risada, é considerado a primeira inspiração para o Coringa, adversário de Batman, interpretado depois no cinema por Jack Nicholson, Heath Ledger e outros.

Veidt ainda faria um personagem com ramificações memoráveis no cinema: o grão-vizir Jafar em O Ladrão de Baghdad (1940) de Michael Powell e Alexander Korda. Com bigodes orientais e um fulgor malévolo nos olhos, o seu Jafar serviu de inspiração para o vilão homônimo do desenho Aladim da Disney.  Sua última aparição importante na tela foi como o oficial nazista que inferniza a vida de Rick Blaine em Casablanca (1942) de Michael Curtiz.

Anti-nazista a vida inteira, Veidt tinha um contrato em Hollywood estabelecendo que só faria papéis de alemães se o personagem fosse um vilão. Seu rosto era como o de Greta Garbo: tinha uma expressão que nada revelava do que lhe ia por dentro, mas que aceitava qualquer projeção subjetiva de platéia. Nunca chegou à fama de Vincent Price, Peter Lorre ou Christopher Lee, mas foi uma presença marcante da história do cinema de terror.  Tornou-se a matriz de vilões tão diferenciados que muitas pessoas assistiram Caligari, O Homem Que Ri, Thief of Baghdad, Casablanca, etc., e nunca perceberam que se tratava do mesmo ator por trás daqueles papéis.