quarta-feira, 25 de março de 2015

3771) "O Terceiro Policial" (26.3.2015)




Flann O’Brien (não era este seu verdadeiro nome) é um desses escritores fora-de-esquadro cujas obras se recusam tanto ao sucesso popular quanto ao desaparecimento. Ficam gravadas na memória de quem as leu no momento certo, e a cada geração ressurgem diante de um novo público leitor.  


The Third Policeman foi escrito nos anos 1940, recusado pelos editores, e publicado apenas em 1967, logo após a morte do autor.  É uma espécie de romance policial absurdista, numa Irlanda rural onde todo mundo se locomove de bicicleta, inclusive os policiais.

Há um crime cometido logo no início que lança o narrador numa fuga, ao longo da qual ele vai dar numa delegacia de polícia que parece pertencer a um mundo de dimensões diferentes. 

“Ela dava a impressão de ter sido pintada em cima de um outdoor, e muito mal pintada aliás. Parecia totalmente falsa e inconvincente. (...) Eu estava vendo a frente e a traseira do prédio ao mesmo tempo, quando me aproximava dele pela lateral.”  

O narrador, que não tem nome, passa então por aventuras notáveis. 

Desce a um subterrâneo cyberpunk cheio de encanamentos, tubulações de aço, medidores, mecanismos gigantescos. 

Ouve falar de uma teoria atômica segundo a qual um homem e sua bicicleta são seres híbridos, pois cada um está impregnado de átomos do outro, devido ao longo uso, tanto que em alguns crimes de morte é mais sensato prender e executar a bicicleta. 

Toma conhecimento de cores que não podem ser percebidas pelos olhos, e de um lugar onde o tempo não corre e a barba não cresce. 

Ouve a história do balão que subiu à estratosfera com um homem, e desceu vazio. 

Discute as teorias do filósofo De Selby, como a de que a noite não passa de um acúmulo de pó preto largado pelos vulcões ao longo do dia, e que escurece o mundo quando passa de um certo limite.

O absurdismo cara-de-pau de O’Brien pode ser encontrado em muitos dos estilistas excêntricos da FC, como R. A. Lafferty, Avram Davidson, Damon Knight (Humpty Dumpty, de 1996, lembra muito este livro), além de autores que não são da FC mas tiraram um fino nela, como Alfred Jarry, Georges Perec, Raymond Queneau, além de dramaturgos do absurdo como Ionesco e Samuel Beckett. 

É um livro incrustado de teorias científicas mirabolantes, num clima de filme de animação, com pequenos detalhes realistas de total verossimilhança. 

Entre nós, O’Brien poderia ser apreciado pelos leitores de Campos de Carvalho ou Victor Giudice, dois praticantes dessa literatura que caminha sobre uma linha de fronteira, um pé no realismo da vida material, um pé no absurdo das teorias cósmicas.










3770) "Gimme Shelter" (25.3.2015)



O ano era 1969, e Merry Clayton era uma cantora profissional de Los Angeles que fazia vocais em estúdio e na banda de Ray Charles. Estava grávida, era cerca de meia-noite e ela já estava deitada com o marido quando o telefone tocou. 

Era um produtor pedindo para ela dar um pulo num estúdio e fazer um vocal, coisa rápida. Ela reclamou: “Cara, já estou deitada pra dormir, não vou mais sair pra trabalhar uma hora dessas.”  O produtor insistiu, disse que seria bom pra carreira dela, e pagava bem. 

O marido pegou o telefone para discutir com ele, falou, ouviu, ouviu, aí desligou e disse: “Merry, é melhor você ir. Vai ser bom pra sua carreira”.

Ela vestiu uma capa e, de bobs no cabelo, foi direto para o estúdio, onde foi recebida pelos Rolling Stones, que estavam gravando “Gimme Shelter”. 

Quem conhece bem a música deve lembrar aquela voz feminina rasgada, lancinante, no refrão: 

"War, children, it’s just a shot away, it’s just a shot away... 
Rape, murder, it’s just a shot away, it’s just a shot away...”  

É uma canção dark, falando da guerra, da brutalidade da época, da violência onipresente.  Sentada num banquinho (“minha barriga estava muito pesada”), ela gravou três takes do vocal, onde sua voz dobra com a de Mick Jagger, e foi pra casa.

Acho difícil traduzir esse refrão. “It’s just a shot away” significa mais ou menos “está a apenas um tiro de distância”. Seria algo como: “Pra guerra, rapaziada, só falta um tiro”. Para o estupro, para o assassinato, só falta um tiro. Só falta “um tantinho assim”. 

Os Stones amenizam a mensagem no final, dizendo: “Love, sister, it’s just a kiss away”: “para o amor, minha irmã, só falta um beijo”. Concessão aos tempos do “Paz & Amor”? Pode ser, mas “Gimme Shelter”, uma das canções mais fortes da banda, não ficou marcada como uma canção de alto astral, e sim como uma canção de “os tempos estão sombrios”.  Como o “Cálice” de Chico & Milton, e tantas outras dos nossos tempos de ditadura.

Aqui neste link (http://tinyurl.com/ldz24jj) é possível ouvir a música, a faixa somente com a voz de Merry, e uma entrevista de Jagger onde ele lembra o episódio. 

Foi bom pra carreira de Merry? Difícil dizer, mas tornou-se a performance mais famosa dela. A história, contudo, não teve propriamente um final feliz. A hora tardia e o esforço desgastaram Merry Clayton, e pouco depois da gravação ela perdeu o bebê. 

“Foi um período muito sombrio para mim,” disse ela, “mas Deus me deu forças para superar. Dei a volta por cima. Encarei isso como parte da vida, do amor, da energia, e desviei noutra direção, de modo que hoje não me incomoda cantar ‘Gimme Shelter’. A vida já é muito curta e eu não posso viver no passado.”