quinta-feira, 12 de março de 2015

3760) Falar certo errado (13.3.2015)



Fui ao salão onde corto o cabelo e perguntei se tinha sido feriado na véspera, pois o salão não abriu. O barbeiro respondeu: “Uma das meninas que trabalha aqui o pai dela morreu.”  

Eu entendi, embora vendo a frase escrita pareça haver algo de errado nela.  A comunicação falada tem uma sintaxe mais frouxa, mais permissiva do que a escrita, porque tem a vantagem de reforços como mudança de tom de voz, pausas, expressões faciais, gestos...  

Ele poderia ter dito: “Morreu o pai de uma das meninas que trabalham aqui.”  Seria mais gramatical. Mas do modo que disse, não tive nenhuma dúvida. “Uma das meninas que trabalha aqui---“ houve então uma pequena pausa, para que eu guardasse esse “sujeito” da frase, e depois o complemento: “O pai dela morreu.”  

Houve algum engano? Alguma dúvida, algum ruído na comunicação?  De jeito nenhum. Por mim, comunicação 100%.

Raymond Queneau já fez algumas tentativas quixotescas de mudança no francês, que é uma das línguas mais artríticas do mundo apesar da beleza.  O francês é cheio de consoantes mudas, vogais mudas, uma porção de cacoetes de sintaxe.  

No seu livro Bâtons, Chiffres et Lettres (1952), ele fala no “chinook”, um idioma de índios americanos. Nele, segundo Queneau, começa-se dizendo as indicações gramaticais (os morfemas) e depois os dados concretos (os semantemas). Uma frase como “Tua prima ainda não viajou para a África”, em francês, sairia em chinook mais ou menos como “Ela ainda não viajou, tua prima, para a África”.

Queneau usou isso de brincadeira na frase inicial de seu romance Le Dimanche de la Vie (1952), que começa assim: “Ele não tinha dúvidas de que quando passava diante da loja dela ela o observava, a balconista, o soldado Brû.”  

A organização dessa frase é chinookiana, e é uma tática de Queneau para dar um pequeno susto no leitor, mantê-lo acordado. Na mesma página um personagem diz: “Le vlá” (=le voilà), porque é assim que se pronuncia, mas nenhum outro francês ousaria escrever assim nos anos 1950.

A língua falada conta com muitos recursos paralelos (faciais, sonoros, etc.), e pode se permitir uma aparente imprecisão que seria intolerável na forma escrita, a qual geralmente depende só das palavras para dizer algo.  

Daí que, quando escrevemos um romance, muitas vezes os diálogos, apesar de inteligentes e expressivos, são escritos em linguagem escrita, nada guardam das lacunas, das repetições, dos aparentes “non sequiturs” da linguagem falada. 

É muito difícil usar a linguagem escrita para dar a impressão de que aquilo foi falado. Não é só uma questão de botar gírias ou termos coloquiais, é a própria estrutura sintática do que está sendo dito.






3759) Onde foi que eu vi (12.3.2015)



(Oscarito)

Para um crítico ou historiador das artes narrativas existe sempre uma pergunta que pode ser aplicada a qualquer tipo de criação: Quem foi o primeiro que fez isto?  O crítico sabe que um filme ou um livro é apenas um fotograma (rico de informações, é claro) de um filme mais longo, onde aquela idéia sofrerá suas próximas e sucessivas mutações. Aquela obra é o instantâneo atual daquela idéia. Mas o espectador (leitor, fã, etc.) tem uma pergunta diferente, quando ele pensa em todas as histórias que já foram contadas.  Ele pensa: Onde foi que eu vi isso pela primeira vez, e minha alma nasceu, ou nasceu de novo?

Leitores muitas vezes têm suas epifanias mal acompanhados. Quando ele lê uma das grandes cenas da literatura, que encanta a humanidade há milênios, vai ler numa versão contemporânea, mal traduzida ainda por cima, mas vai ser uma epifania do mesmo jeito. A primeira vez em que li sobre o jardim das veredas que se bifurcam foi num romance de F. Richard-Bessière aos dez anos. Fiquei pronto para conceber o espaçotempo como os fios de uma tapeçaria que não enxergamos por inteiro. Sabemos apenas que nosso fio vai em tal e tal direção, muda de cor aqui e ali, e que se isso não acontecesse o desenho final ficaria maculado ou incompleto.

Onde foi que eu vi minha primeira máquina do tempo?  Foi no filme de George Pal, e sem ele eu não teria ido atrás de um escritor chamado Wells, que eu na verdade pensava ser um ator de cinema que tinha inventado uma invasão de discos voadores num programa de rádio.  Qual foi a primeira vez em que eu vi uma mulher nua no cinema? Acho que foi uma vez no cine São José de Campina Grande (que está em processo de restauração, salvou-se uma alma!). Eu tinha uns nove ou dez anos.  Tia Adiza me levou, como fazia quando era à noite, para ver uma chanchada qualquer com Oscarito, Zé Trindade, Ankito... aquela turma. Antes do filme, entrou um trailer onde aparecia (em preto e branco, anos 1950) uma dançarina usando o que uma rainha de bateria de Escola de Samba usa em 2015.  Um cronoclasma, na terminologia de John Wyndham.

Na volta, após o filme, vínhamos a pé pelo balde do Açude Novo e alguém comentou: “Que absurdo!”, com minha tia. “Sim, é um absurdo, passar uma coisa daquela num filme que as crianças vêm ver,” disse Tia, com luterana convicção. Eu estava ansioso para botar alguma coisa pra fora e tentei concordar com ela: “Eu, pelo menos, venho sempre que posso”.  A ousadia masculina dessa frase, aliás absurda nas circunstâncias “presentes”, me sobressaltou. Eu pensei baixinho: “Quem vê diz que tu pode vir sozinho.”  E respondi, mais baixo ainda: “Um dia eu venho, e aí vocês vão ver.”