quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

3999) Os estrangeiros (17.12.2015)




Anthony Boucher é um nome familiar a quem conhece a literatura policial e de FC norte-americana de 50 anos atrás. Ele foi uma figura decisiva nos dois gêneros, como autor, editor, crítico, resenhador. Era um escritor católico, com formação latina que lhe permitia traduzir do espanhol e do português para o inglês. Philip K. Dick foi grato a ele pela vida inteira, pelo incentivo que recebeu. Foi ele quem traduziu e publicou (no Mistério Magazine de Ellery Queen) o primeiro conto de Jorge Luís Borges a sair nos EUA.

Entre 1942 e 1947, Boucher manteve uma coluna periódica no San Francisco Chronicle.  Em um artigo de 5 de maio de 1946, ele comenta duas traduções recentes para o inglês: O Homem que Via o Trem Passar de Georges Simenon e O Estrangeiro de Albert Camus (ambos traduzidos por Stuart Gilbert). Diz ele:

“Trata-se em essência da mesma história: a de um homem que não consegue aceitar em seu íntimo as convenções usuais da sociedade, mas apenas deixa-se levar por elas até que um assassinato, cometido quase por acaso, lhe dá a chance de explodir a moldura social”.  Boucher descreve Camus como “um jovem romancista com respeitável estatura filosófica e estética, que é uma das duas figuras-chave do curioso movimento contemporâneo francês do Existencialismo”. O ano era 1946 – ainda não era o Camus do Prêmio Nobel; era apenas mais um jovem escritor botando as unhas de fora.

Boucher lembra: “Camus se dedica à criação de um personagem extraordinário, um caixa de banco na Argélia cujas reações (ou ausência delas) apenas não são aquelas que a sociedade exige. Comentaristas do Existencialismo parecem dar a esse personagem um valor filosófico para além da literatura; mas ao nível do romance propriamente dito, é um retrato espantosamente bem executado de um indiferentista em estado puro.”

De fato, o jeitão à deriva do “estrangeiro” Meursault está somente um degrau acima de um indiferentista total, no caso o escrivão Bartleby, de Melville, que reagia a todos os pedidos para que fizesse não importa o que, dizendo: “Eu preferiria não fazer isto”. Meursault é meio que uma versão pop disso, porque tem namorada, toma cerveja com amigos, se preocupa com isso e com aquilo... Mas é como se a vida dele fosse ligeiramente irreal, sem propósito.

Boucher lembra que Camus trabalhou como leitor na editora Gallimard, que publicou o livro de Simenon em 1938. Não é exagero supor que Camus o leu e que foi um dos policiais “hardboiled” que ele diz ter querido emular quando escreveu O Estrangeiro, quatro anos depois: os livros (provavelmente) de Hammett e Chandler... Talvez se possa colocar Simenon nessa lista.



Um comentário:

Jáder Santana disse...

Excelente análise, Bráulio. O Estrangeiro é dos meus livros favoritos da literatura universal, e fiquei curioso para ler o Simenon.