terça-feira, 17 de novembro de 2015

3974) O repente (18.11.2015)



A arte do repentista não consiste apenas em inventar versos na hora, mas também em lembrar, no calor do momento, versos que fez ou que ouviu ou que pensou ou que lhe contaram, e que ele pode reproduzir parcialmente, para responder em questão de segundos, ao verso que o companheiro acabou de cantar. Sempre repito uma verdade que me parece indiscutível, na arte da cantoria: É impossível decorar aquilo tudo, e é impossível improvisar aquilo tudo. A cantoria mistura versos improvisados e versos lembrados, anotados mentalmente ou num caderno, e que na hora de cantar raramente saem da maneira como foram escritos, saem modificados, seja para melhor ou para pior, de acordo com a memória do cantador.

Cantadores decoram versos para cantar em ocasiões específicas, mas negam que o façam. Por que? Porque a cantoria é cercada de espectadores meio leigos e com espírito-de-porco, os quais, na hora em que ouviram um cantador dizer que decorou alguns versos, vão sair dizendo: “Eu não disse? É tudo decorado! Tive agora a prova! Fulano de Tal acabou de confessar que só canta decorado”. O Fulano pode ter confessado que decorou apenas um ou outro verso, mas para o anti-apologista (o que vai para a cantoria torcer contra os cantadores) era a prova que faltava para confirmar que aqueles caras não sabem improvisar, e portanto não são melhorres do que ele. Como qualquer outro ambiente que cerca uma atividade artítica, a cantoria está cheia desses negadores da arte.

Alberto Cunha Melo, em seu livro Um certo Louro do Pajeú (Natal: EDUERN, 2011), à pág. 24, diz: “É tempo de alguém ousar uma análise literária da produção do repente e do folheto. Quanto ao repente, um estudo comparativo de suas técnicas e resultados diante do automatismo psíquico praticado pelos surrealistas poderia colocar em confronto, por exemplo, o propósito de conciliar o urgente com o consciente, do primeiro, com o uso do urgente para abolir o consciente[,] do segundo”.

O cantador precisa conciliar o urgente e o consciente, ou seja, produzir em poucos segundos um verso que tem a obrigação de metro, de rima e de fazer sentido. Quem quiser que ache fácil. Quando ele recorre, premido pelo tempo (que é um dos fatores mais importantes na arte do improviso), a um verso ou pedaço-de-verso que já cantou há dez anos ou já ouviu há vinte, ele está fazendo algo que não faria se não tivesse apenas poucos segundos para pensar. Esta é uma expressão crucial na cantoria: “poucos segundos para pensar”. Tudo tem que ser feito nesses poucos segundos. Até mesmo um verso decorado, a repetição de um verso já cantado um dia, é uma pequena  façanha dentro de um quadro de urgência como esse.



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