sábado, 31 de outubro de 2015

3959) A lei do linchamento (31.10.2015)



Bob Dylan falava sobre os cartões-postais com fotos de linchamentos sendo postos à venda, e virando itens de colecionadores. Naquele tempo, principalmente lá no Sul dos EUA, linchavam-se negros e migrantes, que depois eram fotografados em encenações grotescas. Outras fotos são meros retratos crus dos corpos pendentes, como a “estranha fruta” cantada por Nina Simone. E as pessoas colecionavam isso. Por que? Bem, primeiro porque gostavam, segundo porque não era proibido, e terceiro porque colecionador é alguém que tem que colecionar alguma coisa, então eles escolheram aquilo.

“As pessoas passaram a achar que têm mais direitos do que realmente têm,” disse José de Souza Martins (“Revista e”, Sesc-SP); só que “a relação social, no dia a dia, é uma negociação permanente.”  Repito que nada no mundo se compara à intensidade com que um rico exerce seus direitos e um pobre os seus deveres. E o direito de vida ou morte é a distopização final.

Tremam, míseros mortais, diante de qualquer grupo de pessoas com certeza absoluta de uma total impunidade e do mais inviolável segredo! O mundo está cheio delas. Existem, sim, e agem como se fossem a mais mefistofélica Camorra dos Bórgias.  De situações assim estão cheios os techno-thrillers cyber-conspiracionistas. Elites intocáveis de homens de terno preto decolando em helicópteros e falando em cifras. Os superóis do lumpen. A mitologia do século corporativo criou tais poderes, e a impenitência desses poderes, para que um bilhão de zés-ninguém se catapultem como super-homens, e tomara que algum saiba aterrissar.

“O linchamento,” diz o professor da USP, “se desenrola em um quadro mental de absoluta loucura, é uma loucura súbita. (...) As pessoas não sabem o que estão fazendo, e não é que elas estejam fingindo.”  Isso deve valer para esses linchamentos brutais de rua, uma pessoa sendo atacada por um grupo, e os dois acompanhados por uma multidão. Às vezes se verifica, depois, que foi tudo meio por acaso, um ladrãozete passou correndo e deu azar de ser pegado, somente isso. “Olhe, doutor, minha vida pra mim é tudo, mas eu sei que pra sociedade a minha vida não vale nada, então vida nenhuma pode valer mais do que a minha,” disse um que por enquanto escapou.

Já escrevi aqui sobre os postais do linchamento (aqui: http://tinyurl.com/kcfhpop). Em “Desolation Row”, “... os postais de linchamento estão à venda, o salão de beleza está cheio de marujos, e o circo chegou na cidade”. O circo vislumbrado por Dylan nessas livres-associações não é o de Chaplin nem o de Fellini, pode ser algo como o Circo do Dr. Lao, que presenteava tanto a vida quanto a morte aos seus espectadores.






quinta-feira, 29 de outubro de 2015

3958) A ditadura do chiclete (30.10.2015)



George Orwell previu a TV onipresente e vigilante; Aldous Huxley previu as drogas recreativas. Disse ele que mais importante do que praticar violências contra a população é dar-lhe pão e circo. Hoje, as ditaduras eletrônicas cobram caro pelo pão e pelo circo, e todo mundo paga feliz. A publicidade vive a bradar: “Não se reprima! O mundo lhe deve todos os seus sonhos! Você está aqui para satisfazer seus desejos, e seus desejos são estes produtos que oferecemos aqui! Quem tentar impedir você de se divertir é um fascista.”  

Esta é a linguagem da publicidade, idioma preferencial do capitalismo de consumo. O desejo é o desejo de possuir alguma coisa que está à venda. A felicidade está mais no ato de comprar do que no de consumir, porque é o primeiro que é estimulado, e assim que ele se cumpre percebemos (meio inconscientemente) que o segundo não nos era tão indispensável assim. Na verdade eu não queria ler esse livro, queria comprá-lo.

O discurso publicitário pós-anos 1960, pós-contracultura, apoderou-se de todas essas senhas dirigidas à juventude: desejo, vontade, aventura, afirmação de independência, de liberdade, individualidade. “Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada”. 

Como previu Huxley, as ditaduras do Super Ego repressor foram substituídas no Ocidente pelas ditaduras do Ego gratificado. O chiclete é mais eficaz do que o chicote. Em vez de reprimir, melhor manipular e direcionar os impulsos da multidão. Dar aos prisioneiros conflitos localizados e estanques, onde possam descarregar suas energias: o esporte, as eleições. A alternância de vitórias e derrotas que não mudam nada serve para dar a sensação de que “agora vai ser diferente”.

O próximo estágio é a participação eletrônica, interativa (vide as votações do “Big Brother”), que produz uma sensação de consulta democrática, “aqui quem decide é o povo”. Além de ser uma boa fonte de renda repartida entre a TV e as telefônicas, esse sistema serve de termômetro de opinião que ajuda o sistema a fazer correções de rumo, e um treinamento para que no futuro questões políticas como plebiscitos de mudança na Constituição venham a ser realizadas dessa forma (aposto como o Legislativo ainda vai permitir isso um dia).

A ditadura do chiclete e a democracia eletrônica se baseiam na infantilização do público e dos meios de comunicação, na brutalização dos conteúdos (para efeito de choque e catarse) e na perpétua reciclagem de preconceitos contraditórios, que nunca se resolvem porque são construídos exatamente para promoverem uma queima contínua de energia psíquica que se dirigida de outra forma poderia colocar em risco o sistema.






quarta-feira, 28 de outubro de 2015

3957) Mosaico Andaluz (29.10.2015)



Ele comprou o troço pela Internet numa madrugada, durante o paraíso da entressafra, aquele período mágico em que um dinheiro de um serviço ainda não acabou e o trabalho do próximo não começou ainda. Na terceira cerveja descobriu dez saites novos de animações pornô, na quarta baixou a obra completa de um trumpetista egípcio elogiado por um filósofo romeno, na quinta torrou 21 dólares e 99, frete incluso, no tal do puzlo.

Essa era a grafia proposta por ele no ensaio que estava escrevendo sobre os jogos de quebra-cabeças com paisagens, etc., daqueles grandes, tipo mil peças. O ensaio era erudito mas despretensioso, misturava citações de Georges Perec, Robert Altman, Orson Welles. O pacote chegou pelo correio um mês depois e ele já tinha esquecido. Uma caixa com rótulos cheios de ficha técnica, nenhuma ilustração, e dentro um saco enorme com pecinhas soltas de um plástico maciço, fosco, agradável às pontas dos dedos.

Quem não tem uma mesa imensa pode ter duas mesas de ping-pong numa ex-garagem, que não são usadas há anos e por isso podem ser arrastadas para o centro, sob a luz, forradas com um tecido escuro, para que ali comece a ser encaixada a paisagem. Ele começou a separar por cor, depois foi tateando, descobrindo, juntando umas vinte pecinhas para mostrar uma estátua com a garganta mordida por um macaco, ou um sol oblíquo revelando um rosto numa parede de barro.

Usou como referência o horizonte ao fundo. A separação entre o verde de um e o azul do outro parecia aquelas telas luminosas de Sérgio Lucena onde céu e mar formam um tecido de uma só luz inconsútil. Dali ele situou as bordas, encheu-as de imagens, resolveu essa moldura retangular e veio compondo o quadro de fora para dentro, rumo ao centro.

Ao chegar no meio, descobriu que restava um buraco – e a última peça, que era bem maior do que esse espaço. A última não se encaixava. Levou semanas, meses, anos? No dia em que varreu tudo ao chão com fúria ele teve a idéia. Recolocou e forrou as mesas, pôs no centro do espaço escuro essa última peça, sozinha, soberana. Percebeu que partindo dela como início havia encaixe, sim, desde que as demais peças em volta fossem inseridas numa ordem específica.

E daí o quebra-cabeças foi se rearmando. De dentro para fora. As imagens pareciam as mesmas e outras. Sáurios, arranha-céus, samovares, frutas, mecanismos infatigáveis, estelas dormindo na jângal. E quando colocou a última peça, ele entendeu que um quebra-cabeças que começa a partir do próprio centro não tem a menor necessidade de ter a forma final de um retângulo, ou mesmo qualquer forma que seja.



terça-feira, 27 de outubro de 2015

3956) Traduzir o poema (28.10.2015)


(poema de Mallarmé)

No Suplemento Literário Minas Gerais sobre tradução (maio), diversos tradutores fazem avaliações sobre a literatura traduzida entre nós: Ivo Barroso, Cláudio Willer, Augusto de Campos, Denise Bottmann e Guilherme Gontijo, entre outros. Tradução é aquela atividade onde geralmente se perde, na melhor das hipóteses se empata, e é proibido ganhar (=ficar melhor que o original).

A tradução de poesia tem dificuldades específicas, e não apenas pelo fato de que se pressupõe ser a linguagem poética mais concentrada, mais rica de nuances, etc. Grande parte da produção poética em qualquer cultura é rimada e metrificada. Obedecer de forma estrita à rima e à métrica do original em outro idioma, e além disso manter o sentido dos versos, é uma tarefa inglória. Rimas exatas poderiam ceder lugar a rimas toantes, por exemplo; o verso poderia variar minimamente de extensão.

No SLMG, o tradutor Álvaro Faleiros diz, sobre isso, que nas traduções poéticas brasileiras há uma “busca de estrutura isomórfica”, ou seja, de um poema que reproduza com rigor o conjunto de efeitos do original. Mas ele diz:

“O ritmo do poema não se devia apenas à distribuição acentual do verso, mas (...) a sintaxe, o léxico e o encadeamento das idéias eram tão determinantes quanto a rima e a métrica. Desde então, tenho procurado inverter a famosa máxima de Haroldo de Campos, para quem a tradução deve ser isomórfica (ou paramórfica) e o sentido deve ser uma ‘baliza demarcatória’. No jogo de perdas e ganhos da tradução, estou tentando tratar os aspectos formais como ‘baliza demarcatória’ e fazer da sintaxe e do encadeamento de imagens o meu ‘topo’”.

São opções opostas, ma não contraditórias; é só uma diferença de ênfase. Alguns poemas têm uma estrutura tão caprichada e original que traduzi-los sem reproduzi-las é deformar o poema: penso, p. ex., em “The Raven” de Poe ou “L’Aura Amara” de Arnaut Daniel. Em outros poemas, contudo, eu preferiria ter a liberdade de alternar versos com 9, 10, 11 linhas ou mudar a natureza e posição das rimas, desde que pudesse reproduzir com mais fidelidade o texto em si, as frases, as imagens, o discurso poético. Produzir uma estrutura isomórfica ao original e ainda manter-lhe o sentido não é impossível (muitos tradutores o fazem), mas equivale a andar numa corda-bamba jogando malabares. É uma façanha para tradutores muito cultos e experimentados. Colocar tão alto o sarrafo, como prova a ser ultrapassada todas as vezes, não pode ser regra obrigatória. Esse modelo é um teto de perfeição a ser alcançado, não é uma façanha a se exigir de qualquer um, e esse esforço nem sempre faz justiça ao original.



segunda-feira, 26 de outubro de 2015

3955) Borges nos EUA (27.10.2015)




Muita gente não sabe, mas a primeira publicação de Jorge Luis Borges nos Estados Unidos não foi numa revista acadêmica, e sim no popularíssimo (ainda que sofisticado, no gênero) Mistério Magazine de Ellery Queen, revista conhecida pelo público de literatura policial no Brasil. Não achei nenhuma publicação dele anterior a esta, e olha que procuro há tempos.

O texto foi “The Garden of Forking Paths” (nosso “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”), um dos melhores contos borgianos. Um conto que poderia figurar numa revista de FC (pela sua vertiginosa teoria dos universos paralelos) mas que também cabe numa revista policial, por descrever um crime cujo propósito o leitor só descobre no último parágrafo. Essa publicação deve ter alegrado o 49o. aniversário do argentino, pois ocorreu no mês de agosto de 1948, quando ele completou essa idade.

Tudo se deveu a Anthony Boucher, grande amigo de Ellery Queen. Boucher não apenas traduziu o conto para o inglês mas também (diz a introdução) “persuadiu o autor a submetê-lo ao Terceiro Concurso Anual” da revista. O conto de Borges apareceu num “Número com Todas as Nações”, ao lado de autores como Chekhov, Simenon, Ferenc Molnar, Karel Capek, Gabrielle d’Annunzio, Cornell Woolrich e outros.


Na introdução, Queen chama o conto de “uma obra-prima em miniatura”, e diz: “Señor [sic] Borges é uma importante figura literária argentina: poeta, crítico, ensaísta e antologista. Em toda sua obra, especialmente em sua ficção, o autor usa o tema do labirinto – é uma monomania persistente, que recorre em sutis variações.”

E adiante comenta: “Outra mania sua: ele tem um apego fora do comum pela erudição fictícia. Por exemplo: é capaz de inventar um autor ou uma escola literária completamente fictícia e em seguida escrever uma dissertação deliciosamente erudita sobre a esotérica importância dessa figura ou esse movimento imaginário; mas a fantasia e a sátira que ele sabe urdir às suas opiniões críticas não são sempre destituídas de significado factual.”

Ele cita, claro, a referência direta feita por Borges (sem citar o autor) ao Mistério dos Irmãos Siameses do próprio Queen (no conto “Exame da Obra de Herbert Quain”, nome que já lembra o de Ellery Queen). Borges admitia, em seus artigos de jornal, ser um leitor fiel do autor norte-americano. E este não foi o único conto dele a sair no EQMM. Também tenho aqui a edição brasileira de dezembro de 1962, com “Os dois reis e os dois labirintos”, certamente embarcando na súbita fama do argentino depois de receber em 1961 o Prêmio Internacional Formentor, quando deslanchou de fato a sua celebridade literária mundial.



sábado, 24 de outubro de 2015

3954) Lanterna Mágica (25.10.2014)






Em meados dos anos 1970 eu estudava no Campus II da UFPB (atual UFCG) e de vez em quando apareciam uns trabalhinhos pra ajudar os estudantes a descolar uma nota. Não era muita coisa, mas para quem vivia de ser crítico de cinema qualquer “pingado” de fora dobrava a renda do mês. 

Fomos para uma cidade do sertão, fazer uma pesquisa. A equipe, dirigida por Bobó, contava comigo e mais o saudoso Geraldo Bode Rouco, e Hermano Babalu, além do motorista da kombi, Erivaldo. Nosso trabalho diário, das 8 da manhã às 6 da tarde, consistia em preencher uma cota diária de entrevistas com moradores locais. A lista tinha dezenas de nomes. Uma entrevista normal tomava de 40 a 50 minutos, prancheta em punho. De noite a gente jantava na pensão e estava livre.

Na primeira noite que passamos me informaram onde era o cinema: perto da praça tal. Naquele tempo eu queria imitar Jean-Pierre Léaud (não só eu, aliás) e me obrigava a ver um filme em pelo menos um cinema de cada cidade que eu fosse. E de tarde eu tinha visto passando no centro da cidade uma camionete de altofalante chamando todos para o cinema às oito da noite.

Cheguei meia hora antes. O local era uma espécie de garagem retangular, vazia, a parede do fundo pintada de branco. Nem poltronas, nem cortinas, nem tela, nem música de orquestra, nem bombonière, nem cartazes e fotos nas paredes. 

Quinze minutos depois parou uma camionete, uns caras armaram um praticável, em cima dele uma bancada onde pousaram um projetor IEC 16mm e de lá puxaram um fio comprido. 

Como por acordo coreográfico, começaram a chegar pessoas. Chegavam e iam entrando. Um trazia um tamborete, outro uma cadeira de plástico de bar, outro uma cadeira de palhinha, um casal trazia a quatro mãos uma poltrona de dois lugares, e uma velhinha caminhava nobre à frente de três garotos magros que portavam nos ombros uma cadeira de balanço.

A luz foi apagada e vimos trinta minutos de Actualités Françaises, o jornal cinematográfico (com legendas em português), mostrando De Gaulle descerrando fitas inaugurais, etc. Finda a sessão, a platéia decampou para casa levando tudo. 

Conversei com o cara. Ele tinha sido porteiro do cinema local. O cinema fechou. O que tinha nos armários foi pro lixo. Ele salvou um caixote cheio de latas de película, e tempos depois quando viu aquela garagem sem uso resolveu alugar. Estava juntando dinheiro para comprar seu primeiro longa de faroeste. Quando juntasse, seriam sete horas de ônibus até Campina Grande, para comprar das mãos do velho Expedito um Trinity ou Sartana qualquer, sonhava ele, “e com isso eu vou ter em cinco anos grana suficiente pra montar um cinema de verdade”.





sexta-feira, 23 de outubro de 2015

3953) A Vingança do Mestiço (24.10.2015)




Me encomendaram uma sinopse de filme de aventuras. Pensei em Trigger Montanares. Trigger Montanares é pistoleiro de aluguel. É mestiço e tem rompantes de sádico, porque todo mestiço é vingativo. “O conflito de duas raças antagônicas correndo dia e noite no seu sangue não pôde deixar de produzir-lhe aquela nevrose íntima que em alguns casos se externa em mera arruaça mas em outros se refina em crueldade.” O mestiço é mentiroso e dissimulado, porque pertencendo a dois mundos ele mente a ambos e na verdade não pertence a nenhum. Ninguém precisa dele, nenhum grupo o reivindica para si.

O parágrafo acima é um arremedo das justificativas dramatúrgicas para composição de personagens. Todo personagem é movido a referências, movido a citações, a indicações psicológicas, sociais, afetivas, místicas, o escambau. Só que referências, quando muito usadas, viram fórmula-fácil do lado de quem usa e clichê-redundante do lado de quem assiste ou lê. Geralmente encontramos, em histórias de ficção de qualquer gênero, indicações que nos dão uma primeira idéia básica do personagem e colorem os seus atos subsequentes. A grande maioria só faz sentido nas fórmulas a que pertencem (folhetim, novelão, etc.). Mestiços são vingativos, bastardos são cruéis, herdeiros são abnegados, cortesãs são piedosas, jovens das melhores famílias revelam-se capazes de ações escabrosas, desordeiros de rua descobrem-se capazes de um ato corajoso e final que os redime. Todo perfil humano é plausível. O verdadeiro teste é o que o autor vai obrigar esse perfil a fazer, e é aí que o escritor às vezes desmorona.

Um sentido epidérmico de realismo diz que representação realista é a que reproduz o que os olhos veem. Eu diria que existe um realismo funcional ou relacional, mais profundo e mais ancestral do que o dos nossos olhos. Quanto lemos Pato Donald não ligamos que ele seja um pato marinheiro nu da cintura para baixo conversando com um rato que dirige um automóvel. As relações entre eles, as funções cumpridas por eles são humanas, são reais; seu realismo é todo humano.

Jonathan Lethem pode imaginar um mundo futuro de policial “noir” onde os garçons dos bares são cangurus falantes. Colin Wilson pode imaginar uma situação em que a força conjunta de vários cérebros humanos possa fazer a Lua dar um meio-giro sobre si mesma e nos expor sua face oculta. Jorge Luis Borges pode dizer que existe um objeto banal que uma vez visto por alguém não pode ser esquecido. Basta que a premissa seja nítida, e que as funções e relações sejam plausíveis, e expostas numa linguagem sem confusão. Se a base for bem assentada, é possível voar mais alto nas consequências.



quinta-feira, 22 de outubro de 2015

3952) O avanço da arte (23.10.2015)





O poeta Baudelaire, perguntado sobre “a vanguarda”, dizia que não gostava de metáforas militares. 


Vanguarda não é uma posição absoluta, apenas uma indicação relativa. O ex-presidente José Sarney já foi referido, em seu tempo, como “a vanguarda do atraso”, no sentido de ser o menos reacionário do grupo de políticos ligados à ditadura. 

O que me traz à memória os antigos desfiles estudantis de 7 de setembro, quando formávamos pelotões por ordem de altura. Era uma honra desfilar na primeira fileira de cada pelotão, chamada de “testa”. 

Acontece que desfilar nos pelotões mais à frente era também uma honra, de modo que quando a gente ficava na última fileira de um pelotão ficava soltando piada com o pessoal do pelotão que vinha logo atrás, chamando-os de “ralé”, ao que eles retrucavam: “Vocês são rabeira, nós somos testa”. 

E la nave va.

Todo artista de vanguarda imagina que é testa do primeiro pelotão, e que todos os artistas do mundo estão vindo atrás dele (ou se não estão, cabe a ele ironizá-los até que venham). 

Pintores abstratos proclamaram cem anos atrás a morte da pintura figurativa, tal como os poetas concretos proclamaram cinquenta anos atrás a morte da poesia discursiva. Talvez não tivessem razão em termos objetivos (as mortes anunciadas não aconteceram), mas compreende-se seu entusiasmo: sem uma crença cega na importância e na renovação estética do que está propondo ninguém consegue enfrentar o dilúvio de preconceitos que se derrama sobre essas tentativas de revolução.

Se precisamos mesmo de uma metáfora visual para entender esse processo, podemos dizer que cada vanguarda não é a ponta de uma seta: é como um subúrbio distante numa cidade, um arrabalde onde ninguém morava mas de repente pessoas interessantes estão se mudando para lá. 

Isso faz a cidade (= a Arte) começar a se expandir naquela direção. O que não a impede, claro, de estar ao mesmo tempo se expandindo em outras. 

Cada grupo de vanguardistas, por dever de ofício e fervor ideológico, só presta atenção ao movimento que se dá na direção do seu próprio subúrbio. Quem descobre uma maneira nova de fazer arte percebe o quanto aquilo é necessário, e diferente, e precioso, e oportuno. E tende a achar que o futuro inteiro da arte é aquilo que ele descobriu; que todos os artistas deveriam começar a produzir daquela forma, e que a cidade só deveria se expandir na direção do seu subúrbio. 

A evolução da arte, graficamente, não tem a forma de uma seta onde uns são necessariamente mais avançados do que todos os outros. Seria uma espécie de rosa-dos-ventos desigual, expandindo-se em todas as direções, só que numas mais depressa do que em outras.




quarta-feira, 21 de outubro de 2015

3951) O rosto do poema (22.10.2015)


("Poema", de Joaquim Cardozo)

O rosto do poema é o formato que ele adquire na página impressa. Aquilo que chamamos “a mancha gráfica”, o espaço ocupado pelas palavras impressas na página branca. (Quando se trata de trechos em prosa cerrada, essa mancha é um retângulo impresso cercado por margens em branco.)  A mancha do poema revela, no primeiro vislumbre, sua extensão total, o comprimento das suas linhas, a (ir)regularidade das estrofes. Nessas manchas de texto, que visualizamos de chofre antes de decompô-las em palavras, percebe-se a respiração do poema, as expansões e contrações da voz que o enuncia.

Alguém abre um livro e vê aquela massa compacta de texto que é o “Uivo” de Allen Ginsberg, aquelas linhas intermináveis que se quebram à margem direita e se derramam para a linha logo abaixo. Ao começar a ler, a pessoa sabe que todo o resto do texto vai seguir aquele formato, vai obedecer ao ritmo caudaloso daquela dicção (Ginsberg já afirmou que nos poemas dele o tamanho da linha era a capacidade do seu pulmão, era toda frase que ele fosse capaz de dizer antes de precisar encher os pulmões de novo). Se na página seguinte o leitor acha um poema de e. e. cummings, vai ter uma informação visual diferente, a começar pela abolição das maiúsculas, as palavras partidas em pedaços verticais, etc. O poema típico de Ginsberg parece uma parede; o de cummings parece uma folha caindo devagar.

Sempre que releio “O Caso do Vestido” de Drummond me pergunto por que motivo ele partiu em dísticos (grupo de 2 versos) esse longo rimance ibérico-cordelesco. Poderia ter mantido o fluxo vertical do texto, que é todo em setissílabos, marcando apenas as pausas internas à própria narração, como o fez em tantos outros (“O Elefante”, “Morte do Leiteiro”, “A Mesa”, etc.). Mas não, ele saiu quebrando o poema todo de 2 em 2 linhas, o que torna o “Caso do Vestido” facílimo de localizar, apenas folheando o livro. Tão reconhecível quanto a divisão de 3 em 3 usada em “A Máquina do Mundo”, sem que isso se deva a nenhuma imposição interna. Talvez alusão aos tercetos de Dante na Divina Comédia, mesmo sendo brancos (sem rima) os versos que ele agora usa. O efeito rítmico, ao meu ver, é o de conter um fluxo que poderia ser contínuo, como quem desce de carro uma ladeira dando pisadinhas leves e constantes no freio para brecar a aceleração da descida.

Um soneto, um haicai ou uma sextilha podem ser identificados de relance por um leitor de mediano conhecimento. É a primeira informação essencial: “o tamanho é este aqui”. É a primeira informação que se dá ao leitor (antes mesmo da leitura do título do poema) e a primeira expectativa estética que se produz nele.









terça-feira, 20 de outubro de 2015

3950) Nós fumo (21.10.2015)



“Não é somente no cinema que isto veio a se cristalizar como clichê, mas também na literatura,” disse Philip Marlowe, batendo a cinza do Camel num cinzeiro redondo de vidro. Levou o cigarro aos lábios, aspirou a fumaça, soltou-a em dois tubos paralelos, parodiando um touro enfurecido. “Nem todos os autores têm facilidade para preencher os tempos mortos de uma cena onde duas ou mais pessoas falam entre si. É preciso fazer com que essas pessoas interajam com o ambiente, façam algum gesto. Os outros personagens me servem bebidas, oferecem-me tabaco, e quando eu bebo eu acabo aceitando.”

“Pois eu não sabia o que fazer com as mãos,” disse James Bond, cigarrilha no dedo.  “Não era disso que aquelas coadjuvantes se queixavam,” observou Miss Marple, firmemente limitada ao seu chá de sempre. “Minha cara senhora,” disse Bond fazendo uma curvatura risonha, “na mesa de jogo ou no leito amoroso geralmente já se sabe o que se vai fazer. O problema, como nosso bom Marlowe assinalou, são os bate-papos dos personagens. A ‘conversation piece’ dos nossos pintores. Descrever o que alguém faz com o cigarro ajuda a intercalar as falas com algo que contenta os olhos. Alguns leitores precisam dessas informações visuais mais do que outros.”

“E alguns autores sabem fornecer isto melhor do que outros, Mr. Bond, mas permita lembrar-lhe que nem só de cigarros vive a nossa estirpe,” disse Sherlock Holmes, sugando repetidamente ao cachimbo de roseira-brava, constatando-o de fogo morto, riscando um fósforo de cera, aplicando-o ao fornilho inerte e vendo-o esbrasear-se e consumir-se quase que de dentro para fora. “A proverbial nitidez e o proverbial claro-escuro de tudo que é ficção vitoriana, sem dúvida”, disse Miss Marple, “sempre levando em conta, claro, que quem viveu a era vitoriana desconhecia essa palavra e descreveria seu próprio tempo, talvez, em termos muito diversos.”

“Nós somos no fundo uns neo-vitorianos,” disse Doc Sportello, enquanto estendia na mesinha a seda, deslindava berlotas, enfileirava o matagal picadinho, dava a enrolada final na múmia e acendia o prepúcio de papel. “A Califórnia é uma Londres, só que ensolarada pelo lado de fora.”  Marlowe puxou um charuto cubano do bolso interno do paletó, mordeu-lhe a ponta, cuspiu-a pela janela que dava para o Tâmisa e disse: “Todo romance na verdade conta duas histórias, a história do que aconteceu, e as falas que os personagens pronunciaram. Quem sabe um dia invadirão o descanso eterno das nossas sepulturas para cortar nosso texto. No futuro, censores condenarão esta pequena antologia. No futuro ninguém saberá que fumávamos”. “Fumarei a isto”, disse alguma voz.



segunda-feira, 19 de outubro de 2015

3949) Poeminha curto (20.10.2015)




(Leminski, por Marcos Guilherme)


Já vi esse tipo de poema descrito como “poeminha leminskiano”. O curitibano Paulo Leminski não o inventou, mas é um dos seus melhores executantes.  

Ninguém inventa essas coisas, essas formas simples. Esse formato difuso brotou junto com os poetas da minha geração, os que começaram a divulgar seus poemas nos anos 1970 e nos 80 já estavam em livro. 

Eu fiz um monte deles, todo mundo fez um monte, e com frequência vemos belas coisas sendo ditas.

Leminski é candidato à faixa de melhor fazedor, com preciosidades como: 

pariso 
novayorquizo 
moscoviteio 
sem sair do bar 

só não levanto e vou embora 
porque tem países 
que eu nem chego a madagascar.

Ou essa fotografia zen: 

o barro 
toma a forma 
que você quiser 

você nem sabe 
estar fazendo apenas 
o que o barro quer.  


Esses movimentos de ida e volta do poema se mantêm mesmo quando cada bloco fica menor em tamanho: 

um pouco de mao 
em cada poema que ensina 

quanto menor 
mais do tamanho da china.


Isto é o poema curto em dois blocos.  Tem um desenlace rítmico diferente da sextilha, diferente do haicai. Estruturalmente, corresponde mais ou menos a duas quadrinhas (ou tercetos, ou dísticos, misturadamente) superpostas, resultando num poema de 6 a 8 linhas no total, com uma cesura ao meio. 

O verso do meio e o último (o 4o. e o 8., digamos) rimam entre si. Este efeito é mais importante do que o numero total de versos, e se eles rimam internamente entre si ou não. É como se o poema mostrasse a cara, depois a coroa, e tudo rimasse. Um vapt e um vupt. Um zás e um trás.

O primeiro bloco pode ter de uma a quatro linhas, raramente mais, linhas que exibem rimas ou não, e ele se conclui com uma linha onde é proposta a rima que deve se repetir no final. 

A leitura desse primeiro bloco deixa uma expectativa rítmica e sonora a ser preenchida pelo segundo. Quando ele o faz, fecha o poema com um senso de resolução melódica e simetria estrutural. 

O perigo de tal verso é apenas, como o de toda forma simples, o de ser muito acessível ao versejador preguiçoso ou sem muito o que dizer.


Ainda Leminski, este com um alô de chapéu a Yeats: 

eu tão isósceles 
você ângulo 
hipóteses 
sobre o meu tesão 

teses sínteses 
antíteses 
vê bem onde pises 
pode ser meu coração.  

Este, sobre a bolandeira do fazer versos: 

moinho de versos 
movido a vento 
em noites de boemia 

vai vir o dia 
quando tudo que eu diga 
seja poesia. 

E esta declaração de guerra em forma de cambalhota: 

o pauloleminski 
é um cachorro louco 
que deve ser morto 
a pau a pedra 
a fogo a pique 

senão é bem capaz 
o filhodaputa 
de fazer chover 
em nosso piquenique.












sábado, 17 de outubro de 2015

3948) "A rotina e a quimera" (18.10.2015)




(Carlos Drummond)


Sob este melancólico título Carlos Drummond publicou uma crônica no Correio da Manhã, recolhida depois no livro Passeios na Ilha (1952), e nela meditava sobre o destino do escritor brasileiro que tem um emprego público. 

Como se sabe, dois terços do nosso cânone na poesia, no romance e no conto foram produzidos por indivíduos que ganhavam a vida como: 

1) funcionários públicos; 
2) professores; 
3) jornalistas. 

Em tempos mais recentes, 

4) publicitários; 
5) advogados. 

A fatia mais estreita corresponde a todas as outras profissões, inclusive a fugidia espécie do “escritor em tempo integral”.

Há medidas modernizadoras (diz o poeta) para evitar que funcionários desviem seu tempo de expediente para atividades menos confessáveis (ele lembra que Lima Barreto “escrevia romances nas costas do papel almaço, usado, da repartição”). O escritor-funcionário, porém, não deixará de escrever por isto: “escreverá na hora do sono ou da comida, escreverá debaixo do chuveiro, na fila, ao sol, escreverá até sem papel”.

Drummond falava de cátedra, e para ele o escritor-funcionário tem que estar equidistante do miserê e do pleiboísmo: 

“O emprego do Estado concede com que viver, de ordinário sem folga, e essa é condição ideal para bom número de espíritos: certa mediania que elimina os cuidados imediatos, porém não abre perspectiva de ócio absoluto. O indivíduo tem apenas a calma necessária para refletir na mediocridade de uma vida que não conhece a fome nem o fausto.”

O poeta reconhece a floração do talento em outros temperamentos, como o boêmio ou o escritor faminto de mansarda, mas adverte: 

“aqui se trata de certo tipo de criador literário, aquele que não ama velejar pelos mares lendários nem ancorar à sombra do botequim: o escritor-homem comum, despido de qualquer romantismo, sujeito a distúrbios abdominais, no geral preso à vida civil pelos laços do matrimônio, cauteloso, tímido, delicado. A organização burocrática situa-o, protege-o, melancoliza-o e inspira-o”.

O poeta parece estar opondo o andarilho Rimbaud ao sedentário Drummond, mas logo abaixo ele se dá o trabalho de nomear (contei agora mesmo) trinta e três colegas do nosso Olimpo literário, e seus respectivos cargos. O poeta ainda adverte: 

“Mas seriam páginas e páginas de nomes, atestando o que as letras devem à burocracia, e como esta se engrandece com as letras.”  

A primeira grande decisão na carreira de um escritor não é estética nem ideológica, é a sua resposta à pergunta: “Como vou ganhar a vida enquanto escrevo? Um emprego confortável e seguro, que dure a vida toda, ou viver de aventuras? Qual das duas vidas me transformará num escritor melhor?”.






sexta-feira, 16 de outubro de 2015

3947) Coisas que aconteceram (16.10.2015)



Eu estava no Rio de Janeiro a passeio, hospedado no apartamento de amigos em Ipanema. Cheguei um dia sozinho, de madrugada, rua deserta. Havia um cara querendo entrar no prédio; não tinha a chave, nem havia porteiro. Abri a porta para ele, que sorriu, me agradeceu, entramos, eu ia para o térreo, ele subiu no elevador. Era Glauber Rocha.

Eu vi em Salvador, no Corredor da Vitória (uma rua com intenso tráfego em mão dupla), dois motoristas diminuírem a marcha ao virem na direção um do outro, e depois pararem os carros lado a lado, trocarem sorriso, aperto de mão, algumas frases, enquanto as duas filas de carros esperavam, por trás de cada um, e depois eles deram tchau, todo mundo seguiu em frente e o mundo até hoje não se acabou.

Eu vi no Circo Voador da Lapa, após o Rock in Rio de 1985, numa noite em que muita gente subiu ao palco, a hora em que a platéia pediu James Taylor, que tinha botado o “RiR” todo pra cantar “You’ve Got a Friend” poucos dias antes. Ele sentou ao microfone e pegou o violão, e aí um engraçadinho da platéia jogou uma lata de cerveja que pegou na cabeça dele. Ele cantou mesmo assim.

Eu estava na multidão hirsuta que de violão em punho foi para a frente da cadeia de Ouro Preto pedir ao megafone a libertação dos atores do Living Theatre de Julian Beck e Judith Malina, ali encarcerados, e como não se libertou ninguém a gente cantou de novo “This is the dawning of the Age of Aquarius”, e voltou para a praça.

Eu vi da platéia algo que talvez já tenha acontecido a muita gente pelo mundo afora, mas eu tive uma sensação de estranheza e de novidade alguns anos atrás, quando vi ao vivo Chuck Berry cantando “Yesterday” num palco carioca.

Eu estava ali bem pertinho da grade do Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, quando o corpo do presidente-eleito-e-não-empossado Tancredo Neves foi posto à visitação pública, e a multidão forçou os cordões, e foi preciso a viúva vir à sacada e ao microfone, para pedir que se afastassem, porque podia acabar acontecendo uma tragédia.

Eu estava na platéia do Teatro Santa Roza, na Paraíba, durante um espetáculo de Brecht montado por Renato Borghi e Ester Góes, quando no meio da peça um fotógrafo da imprensa subiu no palco e tirou mais de uma dúzia de fotos, como se fosse invisível, até que os atores se interromperam e pediram a ele para descer, porque estavam se desconcentrando.

Eu vi pela TV o gol de Basílio que interrompeu o famoso jejum de títulos paulistas pelo Corinthians; eu estava em Cachoeira da Bahia, o bar com a TV estava cheio de baianos, além de alguns alemães que estavam de passagem, e todo mundo naquela noite foi Corinthians desde criancinha.


quinta-feira, 15 de outubro de 2015

3946) "O Desatino da Rapaziada" (16.10.2015)



Terminei a leitura, que passou voando, de O Desatino da Rapaziada – Jornalistas e Escritores em Minas Gerais 1920-1970” de Humberto Werneck (Companhia das Letras, 1992). Digo que passou voando porque é assim que parece passar esse período nas letras e na imprensa de Minas Gerais, com uma sucessão de jornais, revistas e suplementos ou tablóides literários que sobem aos céus de Minas em girândolas de boas intenções e versos febris, brilham durante alguns anos ou alguns números e depois se desfazem em fumaça e cinza enquanto um novo tablóide alça sua própria explosão.

Sempre pensamos no escritor brasileiro como um funcionário público com histórias para contar, papel em abundância e tempo de sobra. O livro de Humberto Werneck nos lembra que não só as repartições: as redações de jornais também foram um valhacouto onde se homiziaram muitos beletristas acusados de poetas. E lembra que a reportagem diária, com seus percalços, revelou muitos dos nossos talentos na ficção.

HW examina em seu livro gerações sucessivas de jornalistas-literatos, começando pela época do Modernismo, com Carlos Drummond de Andrade sendo a figura que mais se destaca, e depois vem abordando a geração “encontro marcado” em alusão ao romance homônimo de Fernando Sabino (cujo grupo se complementa com Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino), até a explosão dos “contistas mineiros” dos anos 1960 em diante, de Murilo Rubião a Luiz Vilela.

Aliás, é bom qualificar minha afirmação mais acima, porque ser jornalista era, também, uma forma de ser funcionário público. Os jornais geralmente faziam parte de projetos pessoais de governadores, prefeitos, políticos necessitados de um altofalante para seus interesses.  O jornalista geralmente não tinha estabilidade, nem salários polpudos nem proteção trabalhista, mas era possível aproveitar os entusiasmos eleitoreiros deste ou daquele partido para encher as ruas de papel impresso. Surgiam daí os jornaizinhos combativos que na metade da frente defendiam os interesses do patrão e na metade de trás traficavam as subversões estéticas do seu tempo.

São dezenas de episódios pitorescos de rivalidades poéticas, despeitos pessoais, travessuras, pequenos delitos, maledicência terapêutica. E de louvação bem humorada aos azares da profissão, que, segundo o poeta Carlos Drummond, “proporciona o treino diário, a aprendizagem continuamente verificada”, e ajuda a prevenir a chegada da “preguiça, que é o mal do literato entregue a si mesmo”. Nada como uma boa redação dos velhos tempos para curar o “writer’s block” dos existencialistas de hoje.



quarta-feira, 14 de outubro de 2015

3945) Eu me lembro - 6 (15.10.2015)



Eu me lembro do cheiro do ambiente do caldo de cana Macaíba, e das páginas de revistas com curiosidades, mistérios e bizarrices, emolduradas, na parede da sinuca O Gato Preto. 

Eu me lembro que em Campina Grande já se fabricou a cachaça “Galo da Borborema”; eu tinha uma garrafa em casa, da qual derramei o primeiro conteúdo e substituí por Rainha. 

Eu me lembro de uma foto (na Manchete ou no Cruzeiro) mostrando que o número 1961 continuava o mesmo se fosse virado de cabeça pra baixo.

Eu me lembro que o primeiro lugar em que se venderam livros de bolso em Campina foi no Abrigo Maringá. 

Eu me lembro quando a comitiva presidencial com Juscelino em carro aberto passou pela nossa casa subindo a rua Miguel Couto, rumo ao centro. 

Eu me lembro de uma mendiga de chapéu que pedia esmolas de pé na Rua Maciel Pinheiro; ela tinha o rosto deformado e eu, que teria uns dez anos, morria de medo de avistá-la.

Eu me lembro de quadrinhos de Gabby Hayes, C.B., Morcego Negro, Flecha Ligeira, Flecha Certeira, Rocky Lane e Falcão Negro, o qual depois eu soube ser criação do paraibano Péricles Leal. 

Eu me lembro de um cachorro doido nos poços das lavadeiras no Alto Branco, e quem o matou de espingarda foi nosso vizinho Zezinho Buraco, ex-zagueiro do Treze. 

Eu me lembro dos animais empalhados na vitrine da loja Palacinho da Criança. 

Eu me lembro da caixa de sapatos cheia de diferentes tabelas da Copa de 1966 que eu guardava embaixo da cama.

Eu me lembro de Mário Rogério e seus amigos cantando e tocando violão à noite, no alto do edifício Abdallah, a alguns metros do portão da nossa casa na rua Padre Ibiapina. 

Eu me lembro da cartola do Preguéto, do cachorro quente do Cisne Lanches, do sorvete da Capri e da cabeça-de-galo de Zuzu. 

Eu me lembro do fim das terças-feiras de Carnaval no Gresse, quando, ao amanhecer da 4a.feira de Cinzas, a orquestra descia a ladeira tocando rumo à Praça da Bandeira, onde Ivan Gomes atirava os bêbos dentro da fonte.

Eu me lembro do cheiro de compensado dos palcos e dos bastidores da TV no Recife, e de como o palco parecia pequeno quando a gente entrava nele. 

Eu me lembro do baterista que tinha sido mordido de cachorro doido e agora tinha que tomar injeções na barriga. 

Eu me lembro dos certificados de censura dentro de envelopes pregados à face interna da tampa das latas de filme em 35mm, e que o gerente deixava a gente ler e anotar. 

Eu me lembro das pessoas que trabalharam com meu pai: Edson da Federação, Seu Sebastião contínuo, depois Seu Lisboa motorista, Albanisa a eterna secretária. 

Eu me lembro do garçom Espanha, do taxista Luizinho e de Henrique da banca de revistas do Calçadão.




terça-feira, 13 de outubro de 2015

3944) Inventando palavras (14.10.2015)



Como se criam as palavras novas? Muita gente tem o que eu chamo a visão Stalinista de como a língua evolui. Para eles, a evolução da língua é uma atividade coordenada pelo Estado, através de gramáticos e dicionaristas. Os gramáticos criam as leis de trânsito do idioma, decretando o que é permitido e o que é proibido fazer. E os dicionaristas fazem uma espécie de recenseamento das palavras do idioma, carimbando as que têm existência oficialmente reconhecida (e significado explicado no verbete) e têm autorização de uso.

Só que não. Os gramáticos administram uma pressão enorme que a língua sofre por parte de usuários que precisam desobedecer as regras em benefício da expressividade, ou da rapidez, ou da clareza. Ou mesmo devido a defeitos deles mesmos, que às vezes a entendem mal e usam seus recursos meio às cegas, sem perceber como poderiam aproveitá-los melhor. O povo é o criador da língua, mas o povo é um polvo de mil tentáculos, cada qual atarefado em resolver seu problema imediato e sem ligar para o conjunto da obra. O povo tanto produz obras-primas de inventividade quanto catástrofes verbais de pensamento confuso.

O dr. Castro Lopes (1827-1901) foi um desses idealistas eruditos que queria corrigir sozinho os erros do povo brasileiro, e um dos maiores erros, no julgamento dele, era a aceitação de palavras francesas (isto foi há cem anos, quando a França era quem mandava em nossa cultura dominante), palavras como chofer, abajur, menu, garagem, ou palavras inglesas como futebol etc.  Recorrendo às fontes mais profundas do idioma (o latim e o grego), o doutor propunha uma série de palavras novas. Para abajur, ele propunha “lucivelo”, que traz a mesma idéia de uma luz sendo parcialmente vedada. Para futebol, sugeriu “ludopédio”, que significa “brincadeira com os pés”.  Além de outras palavras que Guimarães Rosa, num dos prefácios de Tutaméia (1967), enumera, divertindo-se: protofonia, ancenúbio, nasóculos, preconício...

Não devemos mangar muito do doutor, porque algumas das suas propostas têm hoje uso corrente, como cardápio, estréia, necrópole e o verbo “postar”. Ou seja: a criação verbal também se dá de cima para baixo, do gabinete para as ruas, do erudito para o popular. As idéias dos doutores são muitas vezes incorporadas pela plebe. O problema é que a pressão no sentido oposto é incalculavelmente maior. Atualmente, por causa das discussões políticas sobre impeachment, o verbo “impichar”, em todas as suas formações, está sendo usado pela imprensa sem pedir licença. O dr. Castro Lopes provavelmente não concordaria com o verbo.



segunda-feira, 12 de outubro de 2015

3943) Vila Nova (13.10.2015)



O ano era 1976, e o Treze tinha um ataque que incluía João Paulo, Soares e Gil Baiano. Que outra coisa importante aconteceu no Brasil ou no mundo nesse ano? Eu, por mim, respirava futebol, cinema e cantoria de viola, em doses equivalentes e maciças. Ano de Congresso dos Violeiros, de muitas cantorias em bairros remotos de Campina, de muita conversa em torno de verso e em torno de livro. 

Foi por volta dessa época que Ivanildo Vila Nova me visitou no apartamento onde eu morava, perto da Rodoviária velha. Ele estava chegando de uma viagem à Bahia, e perguntou se eu conhecia um cantor chamado Elomar Figueira de Melo. Falei que não, e ele cantarolou trechos de “lá na casa do Carneiros / onde os violeiros / vão cantar louvando você...” e do “já que tu vai lá pra feira / traga de lá para mim...”  Foi a primeira vez que escutei os versos do Bardo de Conquista. E Ivanildo completou: “Não tem palavras que descreva esse homem, o jeito verdadeiro dele. E quando pega o violão e canta as coisas dele, então... É um apocalíptico”. Isso colou e virou um parâmetro. Tempos depois, quando mostrei a Ivanildo a versão acústica, original, de Bob Dylan cantando “It’s alright, Ma”, ele apontou na mesma hora e disse: “Apocalíptico também.”

Como se diria numa saudação oriental: “O poeta remoto e antediluviano que escuta em mim reconhece, saúda e homenageia o poeta antediluviano e remoto que fala através de ti.”  A poesia, cantada ou escrita, tem a sorte de parecer com a música. Pra quem quiser buscar a complexidade o céu é o limite, mas ao mesmo tempo tem uma área acessível à simples aplicação da técnica. É relativamente fácil fazer um bom verso. O que não é fácil é produzir versos de qualidade consistente, não importam as fases da inspiração e as marés da profissão, ao longo de muito tempo.

Ivanildo Vila Nova está fazendo 70 anos. Tem mais que o dobro do que tinha quando o conheci. Tem havido homenagens não somente ao grande repentista que é, mas também ao líder combativo, sem papas na língua, reivindicador, que trabalhou muito para que tanto a sociedade quanto o cantador vissem com olhos melhores o próprio cantador. Amigo exigente com todos e consigo mesmo. E o verso, como se sabe, uma navalha.

Naquele dia em que cantarolou Elomar, Ivanildo disse: “Esse livro é pra você. Me deram na viagem, eu achei muito maluco e concluí que o destinatário ideal era você.”  E pôs na minha mão a primeira edição do “Catatau” de Paulo Leminski, a mesma que conservo ainda hoje, quase aos pedaços mas completa. Portanto, se tantas outras coisas eu não devesse ao meu mestre Ivanildo eu já deveria Leminski e Elomar, pra começo de conversa.



sábado, 10 de outubro de 2015

3942) Frankenstein pirateado (11.10.2015)




(ilustração: Bleu Turrell)


Um dos pontos de discórdia irremediável entre a Religião e a Ciência é a questão da criação. A religião afirma que Deus é o responsável por tudo que se cria no mundo, e a ciência afirma que o homem não somente pode, como também deve criar coisas novas. 

A religião quer manter sua jurisdição sobre tudo que acontece, inclusive sobre as escrituras sagradas. Para os cristãos, a Bíblia não foi escrita pelos escribas, profetas e evangelistas, e sim pelo Espírito Santo. Para os muçulmanos, o Corão não é um objeto, é um dos atributos de Deus, assim como a sua onisciência e sua misericórdia.

Quando no romance de Mary Shelley o doutor Frankenstein criou a vida em laboratório, estava incorrendo no maior dos sacrilégios, o de assumir para si um direito que era apenas de Deus. 

Somente Deus podia criar a vida; ao criá-la, Frankenstein estava pirateando a criação “na garagem de casa”, gerando um produto para o qual a Divindade tinha monopólio de fabricação.

Há um texto de Martinès de Pasqually (1727-1774) que toca nessa questão, em seu Tratado da Reintegração. Diz ele: 

“Para procriar a sua semelhança corporal, tu não tens recurso a outros princípios senão aqueles das essências espirituosas que te são inerentes; e se quiseres, por iniciativa tua, empregar princípios opostos a tua substância de ação e de operação espiritual divina e temporal, disto não resultará a reprodução, ou, se isto acontecer, ela terá ocorrido sem participação divina, e será colocada entre as fileiras dos brutos; será mesmo considerada como um ser sobrenatural, e causará repugnância a todos os habitantes da natureza temporal.”

De acordo com esta ótica, a monstruosidade da criação de Frankenstein não reside no corpo bizarro, mas na ausência de alma, pois não foi criado pela Divindade. 

É curioso que esse debate se dê nos mesmos termos com que hoje em dia discutimos propriedade industrial, pirataria, etc.  O monstro de Frankenstein é um produto sem alma, ou seja, sem o código-de-barras ou o ISBN ou o selo-do-IPI ou qualquer outra formalidade atestando que aquele produto foi feito por quem tem a autorização exclusiva de fabricação.

Frankenstein retrata a Revolução Industrial e a ascensão dos estados laicos, onde não cabe mais à igreja determinar o que pode ou não ser feito. Seu clima tenebroso e pessimista tem a ver com os medos de uma época ainda tateando os limites do sacrilégio e da própria liberdade. 

O monstro de Frankenstein é o precursor do uísque fabricado na banheira durante a Lei Seca, do livro impresso e vendido sem autorização da editora, do CD ou DVD da gravadora ripado dentro de casa, da bolsa Vuitton comprada na Rua da Carioca.



sexta-feira, 9 de outubro de 2015

3941) O assalto na van (10.10.2015)



Na barreira policial deu logo problema. Todo mundo estava com a papelada em dia, o carro estava regularizado, mas o equipamento de gravação macro exigia um documento que não tínhamos. Viraram-se todos para mim, mas eu disse: “Vocês me deram a lista do que era para providenciar, e eu providenciei. Ninguém me pediu para trazer isso aí.”  Eu tinha pedido que não me botassem nem como tesoureiro nem como “roadie” do grupo, quanto ao mais toparia até ser o janitor. Me botaram como o burocrata tecno.

Por fim fomos conferenciar, voltamos com os bolsos mais leves e a cancela se abriu. Pegamos o primeiro trecho, a via costeira que ia dar nos primeiros subúrbios de Vequiné. Ciço Fotógrafo disse que tudo que tinha trazido estava no seguro. A parte de iluminação, lâmpadas, rebatedores, e tudo o mais, a gente tinha pegado emprestados. Essa parte não estava.

Adiante, uma policial, num sotaque quase ininteligível, disse com abundância de gestos que parássemos para a revista. Descemos todos, acendemos um aliviante, ela fumou também, mexeram em tudo e não acharam nada. Ela nos preveniu que ali perto da fronteira estava havendo assaltos. Grupos de homens entravam como passageiros nas vans públicas, como se não se conhecessem, e a certa altura do trajeto rendiam todo mundo. Ela falou que às vezes bastava a uma van quase cheia dar carona a um jovem e inofensivo casal para ir parar no meio do mato.

Não foi um casal que pediu carona, foram dois homens, o mais velho e de chapéu mole tratando o outro como se fossem parentes, o outro carrancudo e iracundo, sem dizer uma palavra. Iam pegar um voo, a carona com que contavam tinham falhado, estavam ali há horas. Perguntei pela bagagem, disseram que estavam só com as mochilas, era um passeio.

Sentaram junto de Anselmo do som, que em minutos extraiu a ficha de cada um. Poderiam ser pai e filho, mas na verdade eram irmãos a longa distância, com uma geração inteira a separá-los. Sócios numa pequena firma de engenharia. O velho era rico e sovina, o jovem era indolente e perdulário. Olhamos mas não pareciam estar armados. Não reagiram quando puxamos as nossas armas. Não disseram nada quando os levamos para o mato. Pareciam não estar acreditando, pareciam já ter se resignado a perder o voo mas se desinteressado de todo o resto. O velho trazia metais preciosos e neutros nas vestes, trançados ao algodão. O terno dele devia valer uma fortuna. O outro não sabia de nada, e ao ouvir nosso técnico explicar tudo seus olhos pareceram saltar das órbitas. Fizemos um curta usando os dois, ensacamos os corpos, jogamos no mangue e o terno rendeu duas semanas de férias para a equipe.