sexta-feira, 31 de julho de 2015

3881) "Paris Interzone" (1.8.2015)






A “capital literária do mundo”, Paris, recebeu uma leva de escritores dos EUA no entre-guerras (Hemingway, Miller, Gertrude Stein, etc.) e outra após a II Guerra Mundial. Esta última é o foco do livro Paris Interzone – Richard Wright, Lolita, Boris Vian and others on the Left Bank 1946-1960 (1994) de James Campbell, jornalista escocês autor de uma biografia de James Baldwin, um dos personagens do livro. Campbell acompanha os escritores negros expatriados em Paris, onde encontravam ambiente para a discussão política e literária, além de serem tratados com um respeito que não tinham nos EUA. Richard Wright (Native Son), Chester Himes (Cast the First Stone), William Gardner Smith (South Street), o cartunista Ollie Harrington e James Baldwin, que na época trabalhava em seu primeiro romance Go Tell It on the Mountain.

Vários eram investigados pelo FBI por atividades políticas (Wright tinha sido membro do Partido Comunista dos EUA), mas Campbell se detém nas discussões literárias e raciais. Esses autores brigavam entre si por divergências literárias, paranóia de estarem sendo espionados ou inveja do sucesso ou das amizades uns dos outros. E todos tentando publicar em inglês na França.

Surge aí o outro eixo do livro: as revistas vanguardistas da época, em língua inglesa. Periódicos como Merlin, que entre 1952-54 publicou Beckett, Sartre, Miller e outros, Zero, Points e a Paris Review, que se tornou a mais famosa. No meio delas surge Maurice Girodias, divertida mistura de espertalhão e bon-vivant, dono da Olympia Press, que publicou inúmeras obras pornográficas e livros “malditos” como Os 120 Dias de Sodoma (Sade), além de lançar as edições originais de clássicos como Lolita (Nabokov), Naked Lunch (William Burroughs), A História de O (Pauline Rèage), Plexus (Henry Miller) e outros.

Em torno disto tudo, Campbell evoca as presenças de franceses como Boris Vian (entusiasta do jazz, da FC e do romance policial dos EUA), Sartre (que Vian chamava “Jean-Sol Partre, autor de La Lettre et le Néon") e Albert Camus, além do eterno expatriado Nabokov. Um momento crucial da literatura francesa, como sempre questionada, estimulada, sacudida e enriquecida pela literatura dos estrangeiros que vão para Paris em busca dos cafés, da bibliotecas, do liberalismo nas idéias. Alguém já disse que Paris é o melhor lugar do mundo para ser um escritor pobre, porque os prazeres mais refinados e mais exclusivos que ela oferece são gratuitos. Paris Interzone, no recorte que faz do tempo e do espaço, mostra a importância dessa segunda explosão norte-americana na literatura parisiense.



quinta-feira, 30 de julho de 2015

3880) O ator que ninguém vê (31.7.2015)



Não é que a gente não o veja, se bem que em algum caso muito específico possa chegar a isso. É que a gente não o enxerga a ponto de poder reconhecê-lo de cara limpa. Os atores que interpretam papéis como o de Freddy Kruger em A Hora do Pesadelo ou o de Jason em Sexta Feira 13 têm as caras dos seus personagens. Sempre que vi a foto desses atores, seus rostos se diluíram em redundância e anonimato. Nem sei como se chamam; para mim são vidas humanas destinadas a animar arquétipos malignos.

Lembrei agora de Darth Vader, um daqueles vilões cujos rosto nunca vimos, a não ser em alguns segundos de um terrível clímax. Pouca gente sabe que o ator que emprestou voz e movimentos a Lord Vader é aquele mesmo coadjuvante marombado que, em Laranja Mecânica de Kubrick, empurra a cadeira de rodas do escritor inválido, Patrick McGee, depois deste ser espancado pela gang de Alex. O nome dele está perto e longe, a dois cliques de distância. Trabalhou em dois grandes sucessos do século, e a maioria das pessoas não sabe que o viu duas vezes.

Jason e Vader não se revelam porque usam máscaras, mas alguns efeitos são ainda mais radicais. Quem é aquele ator que faz o Gollum de O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson? Não faço idéia, embora tenha lido extensas matérias descrevendo as trucagens utilizadas para dar movimento ao personagem. O ator ganha ingressos para a première do filme, e tudo o mais, mas não sei se os moleques dele são capazes de apontar: “Lá está papai!”.

Quando vi pela primeira vez O Homem Elefante de David Lynch eu já tinha visto alguns filmes com John Hurt, ator de quem sempre gostei. Ninguém faz melhor do que ele o papel de um underdog, um escorraçado, um cagado-da-coruja, um cara cuja razão de vir ao mundo é passar por algo terrível: ele é o Winston do 1984 de Michael Radford, é o cientista em cujo peito explode o Alien em O 8o. Passageiro. Não o reconheci como o homem elefante do título por causa do bolo-de-noiva de maquilagem que foi obrigado a receber. Por mim, qualquer outro ator teria produzido o mesmo resultado. (Sim sei que não; mas sentimos a ausência de um rosto.)

Em casos assim o ator serve ao personagem desaparecendo dentro dele, deixando que somente o personagem seja visto e aplaudido, como um Homem da Meia Noite que percorre as ladeiras de Olinda sem que a multidão se pergunte quem carrega aos ombros aquela marmota. O ator tem às vezes a humildade de sumir nos corredores e nos sótãos do personagem, perder-se ali, mas encontrar o lugar secreto onde é possível, esquecido de todos, percebido por ninguém, tocar as emoções do personagem como quem toca um piano num terraço escuro.


quarta-feira, 29 de julho de 2015

3879) Gótico Sulista (30.7.2015)




(foto de William Faulkner)

Lendo artigos sobre a primeira temporada da série True Detective, ambientada na Louisiana, cheguei ao chamado “Southern Gothic”. 

O “Gótico Sulista” é o nome dado a um certo viés literário de autores do Sul dos EUA como William Faulkner, Flannery O’Connor, Harper Lee, Barry Hannah, Zora Neale Hurston, etc. 

Um artigo do escritor MO Walsh (aqui: http://tinyurl.com/otpjtx3) faz um balanço do que seria esse subgênero, que aqui e acolá, à mercê dos inesperados de cada autor, roça pela literatura fantástica. É gótico pelo fatalismo, pela visão quaderniana do mundo como uma caatinga áspera e pedregosa sob um sol assassino. (Há um gótico noturno e um gótico ensolarado – como o gótico-mangue de Anne Rice, que pode ser tropical sem deixar de ser tenebroso.)

Walsh diz que os autores do gótico sulista sabem do que estão falando: conhecem a terra, sua cultura, seu modo de ser. Não são alguém que escolheu aquela região pelo exotismo; eles nasceram e viveram ali. Seus personagens são considerados grotescos pela crítica, mas, segundo Walsh, 

“... embora sejam personagens deformados ou intolerantes ou violentos, nas mãos de um escritor sulista são descritos com empatia e verdade. (...) Isto não é ser grotesco. É uma vida dura e um trabalho duro, e esses personagens apenas mostram cicatrizes visíveis daquilo que muitos de nós carregamos em nosso íntimo.”

A relação com a literatura oral é forte no Sul; esses autores “estão ligados pela tradição oral de contar histórias na varanda, e se deleitam com a construção de frases fora do comum.”  O mesmo quanto à presença da violência nas obras: “Todos os romances [desse grupo] envolvem situações-limite. (...) As vidas das pessoas estão em jogo, tanto quanto a vida dos leitores desde o momento em que acordam até o momento de fechar os olhos.”

Walsh finaliza dizendo que a história cruel, violenta e socialmente injusta do Sul produziu personagens como o pobre diabo (“underdog”), personagem sulista por excelência, que sempre acha que está fazendo a coisa certa mas vê o mundo voltar-se contra ele. 

E cita a frase do advogado Atticus Finch em O Sol é Para Todos: “O fato de que já fomos derrotados cem anos antes do nosso nascimento não é motivo para achar que não podemos vencer.”

O Sul dos EUA é muito comparado ao Nordeste brasileiro: uma região agrária, com grandes proprietários de terra, com escravos, que aos poucos ficou para trás de outra região, mais industrializada, mais moderna, mais urbana. O grande escritor é o que capta a vibração dos dramas específicos de cada uma e as utiliza para contar histórias que assinalam como uma marca dágua a psicologia de uma cultura.







terça-feira, 28 de julho de 2015

3878) O cordel da Inglaterra (29.7.2015)



O cordel não é nordestino nem brasileiro. A produção de livrinhos minúsculos, contando histórias curtas e vendidos por quase nada, existiu na Europa muito antes de Leandro Gomes de Barros, na década de 1890, começar a imprimir e vender folhetos-de-feira no Recife. Na Inglaterra, os livrinhos eram chamados “chapbooks”, e eram muito parecidos com nossos folhetos. Duas diferenças principais: 1) o folheto nordestino é quase sempre em verso, e no chapbook inglês predominava a prosa; 2) no Nordeste usa-se uma ilustração (xilo, foto, etc.) apenas na capa, enquanto os chapbooks ingleses têm gravuras ilustrando o corpo do texto.

Os chapbooks eram vendidos também nas ruas e nas feiras. A imagem tradicional do vendedor europeu o mostra trazendo ao pescoço, presa por uma tira, uma daquelas “bandejas” de madeira cheia de livrinhos, apoiada à barriga. É um utensílio que no Brasil se usa para vender balas e chicletes no cinema. Cordelistas europeus dos anos 1700 ou 1800 andavam na rua como os nossos “baleiros”, apregoando seus folhetos.  Daí vem o nome francês, “littérature de colportage”, “literatura carregada ao pescoço”.

Já falei aqui sobre a coleção de cordéis de Samuel Pepys (ver: http://tinyurl.com/qxuvle7). Uma das minhas fontes de consulta preferidas é Chapbooks of the Eighteenth Century de John Ashton (Skoob Books; a edição original é de 1882). É uma antologia por amostragem, onde o autor coloca pequenos trechos de cada folheto para dar uma idéia do texto e das ilustrações. O livro tem 486 páginas e material de 103 folhetos, com centenas de ilustrações (foi daqui que tirei quase todas as ilustrações do meu livro Os Martelos de Trupizupe, 2004).

O material inglês tem muitos temas em comum com o nosso cordel: histórias maliciosas, aventuras de valentões, celebração de guerreiros famosos, aventuras picarescas, histórias moralizantes, relatos de crimes de grande repercussão, etc. Todo esse varejo de notícias reais, semi-reais e inventadas que os franceses chamam de “fait divers” encontrou lugar nos folhetinhos populares antes de vir a ocupar um espaço mais nobre em revistas e jornais dos 1800.  Nos folhetos, conviveu com os poemas populares, as baladas celebrando crimes e eventos extraordinários, a versificação de contos tradicionais, etc., matéria poética que no Brasil veio a constituir o corpo principal dessa gigantesca indústria de livros baratos e perecíveis.

O cordel é o livro dos que não podem imprimir nem comprar livros. Não é uma invenção nossa: a nossa invenção é o Romanceiro Popular Nordestino, conjunto de poemas que encontrou seu veículo ideal nos folhetos de cordel durante o século 20.



segunda-feira, 27 de julho de 2015

3877) Começos perfeitos (28.7.2015)



Um websaite (aqui: http://tinyurl.com/ousgv8o) escolheu os seus cinco melhores começos de romances FC e fantasia. E lembrava aos leitores que talvez cada um de nós não possa escrever um romance de fantasia perfeito, mas uma frase inicial perfeita é algo ao alcance de muitos. Soman Chainani cita boas aberturas de livros dos quais não tenho referência, como The Magicians de Lev Grossman (“Quentin fez uma mágica. Ninguém percebeu.”), The Voyage of the Dawn Treader de C. S. Lewis (“Havia um rapaz que se chamava Eustace Clarence Scrubb, e ele era quase merecedor disso.”), Feed de M. T. Anderson (“Fomos à Lua para nos divertir, mas acabou que a Lua era um saco.”) 

Por que são bons? (Para esse tipo de análise, não precisam ser “Os Melhores”, conceito desnecessário.)  No de Grossman temos dois fatos enunciados em duas frases diretas como duas machadadas vindo de direções opostas. No de Lewis, muito da espirituosidade da frase deve residir nas ressonâncias desse nome tão pomposamente britânico, que poderia talvez aparecer nos livros de Rowling ou de Dickens. O de Anderson, falando da Lua, lembra os contos de Berilo Neves e seus passeios interplanetários (“—Onde estás? – Em Saturno. Traze-me uma cesta de framboesas de Teresópolis. Em Saturno, não há framboesas.”), mas tem também uma tintura cínica, blasê, e lembra os “spacers” saltando de cidade em cidade, planeta afora, em Samuel Delany (“Aye, and Gomorrah”).

Um comentarista do saite lembra o início de um livro de Peter S. Beagle: “The unicorn lived in a lilac wood, and she lived all alone.”  Há um curioso problema de tradução nessa linha. Poderia ser “O unicórnio vivia num bosque de lilases, e ela vivia ali sozinha”.  O inglês precisa definir o gênero feminino da palavra usando “she”, mas nós podemos esquecer o “ela” e dizer: “O unicórnio vivia num bosque de lilases, e vivia ali sozinha”. A revelação-surpresa do gênero é diferente em português. Existirá a forma “a unicórnia”?  Isto é matéria para os gramáticos. No caso, a opção seria “A unicórnia vivia num bosque de lilases, e vivia ali sozinha.” O “sozinha” já não estaria dando a informação de gênero, mas serve como uma confirmação, dissipa a dúvida dos leitores mais incrédulos.

E o começo de um livro de Pamela Dean: “Edward Fairchild, Príncipe da Floresta Encantada, Comandante da Borda do Deserto, Amigo dos Unicórnios e Monarca do País Secreto desejou estar bem longe dali.”  Um pouco da mesma ironia usada por C. S. Lewis no começo citado aí no alto.  O mesmo contraste, nos dois exemplos, entre as maiúsculas pomposas das primeiras partes e as enunciações puramente mentais das segundas.


sábado, 25 de julho de 2015

3876) A chacina aleatória (26.7.2015)



(Jean-Luc Godard e câmera)

Na semana passada, houve mais uma chacina aleatória nos EUA, desta vez em ambiente militar em vez de estudantil. Ainda não sei se houve motivação religiosa ou política, ou se foi um mero surto. Surto é hoje uma dessas palavras-ônibus que podem ser atribuídas a mil coisas. Podemos considerar que o resultado da doutrinação religiosa ou política também é uma espécie de surto psicótico, planejado e desencadeado por alguém.

Imaginei um conto a respeito de uma dessas matanças, do sujeito calmo que um dia pira e sai abatendo todo mundo, aquilo que chamam de “going postal”. Quando a matança se dá no lugar onde o criminoso trabalha, ou onde estudou quando jovem, está clara a motivação pessoal, envolvendo rancor, frustrações, mau ambiente com as demais pessoas, uma combinação de coisas. Outra possibilidade é a matança ocorrer num local simbólico (igreja, tribunal, etc.) ou que atrai muita gente (eventos esportivos, shopping centers, clubes, praças, etc.), nesse caso tem-se como quase certo que o assassino não sabe precisamente que pessoas está matando.

No meu conto, depois da chacina descobre-se numa rede social qualquer a última postagem do criminoso antes da hecatombe (onde ele se matou no final): “Peço perdão a todos e às suas famílias, não é nada pessoal.”  Claro, não é nada pessoal. É a respeito de um Deus falso e um Deus verdadeiro, ou de um partido do Bem e um partido do Mal.  Quando estão envolvidos conceitos dessas proporções, uma vida humana parece valer bem pouquinho.

Um cara mata 15 pessoas por causa da fé ou por causa da ordem do partido. Talvez ele sinta que essa missão superior avaliza ou neutraliza tudo quanto ele faça. O fato de ser missão já basta para lavar as mãos de quem a executa, “estava obedecendo ordens”, “je ne suis pas responsable”, “estava escrito”, “apenas cumpri a lei”. Talvez o que sinta seja apenas o prazer da missão bem cumprida. É diferente do matador ressentido que quer sair em todos os noticiários, ou o que sente de fato um tipo de epifania, de iluminação maligna.

Mais temível do que o matador ideológico é esse matador absurdo, que executa o ato gratuito tão louvado pelos surrealistas. André Breton disse que o ato surrealista por excelência seria sair à rua empunhando uma arma e atirar em quem achasse pela frente.  Luís Buñuel explorou variantes dessa idéia, uma espécie de terrorismo absurdista, mistura de Ionesco com Billy the Kid.  A Nouvelle Vague herdou o ato surrealista e o misturou com o romance policial “noir” norte-americano, onde vida e morte são gratuitas, e onde vigora um certo tipo de existencialismo, mesmo sem usar esse nome.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

3875) O Sertão grande (25.7.2015)




Tem uma cena de Deus e o Diabo na Terra do Sol em que Antonio das Mortes e o cego Júlio, o cantador, estão sentados num batente tendo diante de si, escancarada, a planura em chamas do sertão ao meio-dia.  O cego pergunta o que ele está vendo, e Antonio diz: “É o sertão grande de Canudos”. O cego não vê o que Antonio está vendo; talvez nunca o tenha visto, se for cego de nascença. Mas ele sabe onde está sentado, e deve ter sentado centenas de vezes ali, ao longo da vida, ouvindo as pessoas comentarem o sertão grande à sua frente. Cuja existência material ele atesta, por fé em todas as constatações-às-apalpadelas que a vida lhe proporcionou (praticamente tudo que as pessoas dizem estar ali está, de fato: porta, sofá, cadeira, mesa...).

Igualmente cego é o personagem de Amarcord de Fellini, o ceguinho sanfoneiro também de óculos escuros, que vai na romaria de barcaças que saem à noite para ver um transatlântico passar numa Babilônia de luzes. O ceguinho não viu esse outro prodígio, mas teve a mesma certeza dos demais. (Resta a discussão filosófica para saber se uma certeza pode ser maior que outra só por ter passado por mais crivos, mais testes.) O cego Júlio não via o sertão grande, mas mostrava. Talvez Antonio das Mortes tenha precisado do cego para ver o sertão melhor.

O vazio opressivo dos imensos espaços do sertão é tão poderoso quando a opressão maciça de uma metrópole, mesmo sendo de outra natureza. Depende não só da visão, mas de outros mecanismos inconscientes de sentir pressão, vento, concentração de ar, nuances atmosféricas para as quais basta estar ligado. O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão: os dois grandes opostos convergem um sobre o outro, rodopiando como num símbolo do Yin-Yang. São formas extremas, sua tendência é ir na direção do seu oposto simétrico.

Um olho olhando para fora, o outro para dentro. Sérgio de Castro Pinto explorou na poesia a dualidade caolha de Camões e Lampião. Mas o herói caolho também pode ser como o Snake Plissken de Fuga em Nova York, ou como o arquétipo do pirata de olho de vidro, mão de gancho e perna de pau: mais do que um remendado, um obstinado sobrevivente. Alguém que a morte só está conseguindo derrubar aos poucos.

Antonio das Mortes talvez fosse cego do entendimento, daí sua reviravolta política em O Dragão da Maldade. Que mostrou um fazendeiro cego (Jofre Soares), cheio de susto diante da invasão dos flagelados: “Batista! Farinha e carne seca pra todos!”. Mas seu gestual não me parecia na época ser de quem está na escuridão, mas de quem está ofuscado por um sol mil vezes mais forte do que esse daqui, por isso que não enxerga.




3874) "Mad Max Fury Road" (24.7.2015)



Este quarto filme da série “Mad Max”, dirigido por George Miller (2015), é o que antes se chamava, em outros contextos, de um “tour-de-force”, uma coisa que impressiona não apenas pela qualidade do resultado mas também pela destreza que exigiu do praticante. É um filme de ação contínua, perseguição de carros e de gente o tempo todo, tiroteios e bombardeios e abordagens a toda velocidade, sem descanso, sem longas cenas voltadas para outra coisa que não seja a perseguição. Tem poucas transições de tempo. Uma delas, p. ex., é o tempo necessário para os caras que sequestraram Mad Max tatuarem nas costas dele as informações médicas necessárias a uma “bolsa de sangue” – ele é doador universal e por essa utilidade deve ser mantido vivo. De vez em quando há uma pausa na perseguição para 4 ou 5 minutos de diálogo, mas logo os motores inimigos trovejam no horizonte e a caçada recomeça. 

Gasolina e água são (previsivelmente) as duas mercadorias mais raras nesse mundo pós-holocausto, regido com mão-de-ferro tribal, e é admirável a prodigalidade com que são jogadas fora. A água é derramada em torrentes para impressionar a população, mais andrajosa do que a de Canudos. A gasolina é queimada nessas perseguições deserto afora. Mesmo depois da civilização ser destruída a petroleodependência da humanidade continuará firme. Vai gostar de carro assim na Austrália.

Quando terminei de ver, pensei: “Isso é filme pra quem adora carros, caminhões, velocidade”. Mas depois pensei, acho que melhor: “Isso é filme pra quem trabalha em equipe de filmagem”. Duvido que um câmera-man, um técnico de som, um dublê não se deslumbrem com esse filme. Diz-se que 80% das cenas perigosas foram feitas de verdade, sem computação gráfica. Dublês de carne e osso pulando de um carro para o outro, dando tiros, a 200 por hora. Quem já trabalhou com filmagem entende a dificuldade de filmar planos assim, com tudo acontecendo de fato, e sabendo que um desses atores ou figurantes pode ser atropelado ou quebrar o pescoço no take seguinte. Talvez na Austrália as proteções sindicais e trabalhistas não sejam tão rigorosas quanto nos EUA, onde cada cenazinha de briga-de-socos é cercada por contratos específicos prevendo indenização por dente quebrado. Será? Me desculpem os australianos, mas a gente imagina às vezes que a Austrália de hoje é igual a essa Austrália futurista de Mad Max.

Bandidos que se comportam como piratas de navio, jagunços kamikaze vestidos como nosferatus, coronéis garanhões com harém de jovenzinhas parideiras, lanças explosivas, um enclave do inferno cercado por desertos de sal. O futuro não será para os fracos.




quarta-feira, 22 de julho de 2015

3873) A fala do vilão (23.7.2015)



Por que o vilão, tendo o mocinho amarrado à sua mercê, passa horas conversando e contando vantagem e recapitulando como praticou os crimes, em vez de matar logo o mocinho? Resposta: porque ele é um “gourmet”, e matar sem saborear não tem graça. A dilatação do tempo é para potencialização do prazer.  

Para esse tipo de vilão o Mal não é um fim em si, é apenas um objetivo intermediário para chegar ao Prazer. Ele despreza as pessoas que matam apenas para livrar-se de um problema. O crime, para ele, é como um salto ornamental ou um solo de cavaquinho, precisa ser executado com a perfeição da longa prática e precisa ser sentido como uma obra de arte. 

Morte sem texto, por mais heróica ou importante que seja, é sempre um anticlímax. E o clímax é esse discurso final diante do mocinho manietado, mas raramente amordaçado, para que possa terçar argumentos com o criminoso. Virou um tropo, uma figura de linguagem do gênero.

Esse recurso dramatúrgico vem certamente do teatro, a cujo espírito pertence. No teatro tradicional, mais até do que no cinema, é pecado mortal matar um vilão ou tentar matar um herói em poucos segundos. Nas cenas finais das tragédias de Shakespeare há muitas lutas de espadas (cuja duração, ao longo da história, diretores e atores elasteceram até os limites da credibilidade), entremeadas de copiosas falas que são, na verdade, a razão de ser daquilo tudo.

O melodrama popular, ademais, precisava nesses minutos decisivos deixar o espectador com uma idéia aproximada do que tinha acontecido no espetáculo, quem matou quem e por que motivo, qual a razão do ódio da família X pelo clã Y, e assim por diante. 

Quando o melodrama teatral de 1850 foi substituído pela literatura policial de 1900, esse papel passou a caber ao detetive: era ele que encurralava o vilão (geralmente numa sala cheia de autoridades e testemunhas) e impiedosamente descascava camada por camada dos fatos que cercaram o crime. 

O melodrama, porém, não tinha essa sofisticação de enredo, e precisava de uma confissão em voz alta do próprio vilão, que o herói confrontava movido por energia e boas intenções, mais do que pelos talentos dedutivos que só viriam na fase pós-Sherlock Holmes. 

Esses monólogos, nos melodramas, são consanguíneos daquela velha técnica do “à parte”, quando o ator diz algo para a platéia e os personagens em volta fingem que não escutaram.

No folhetim e no melodrama, o vilão se denunciava, num acesso de jactância. Quando o vilão acorrenta o herói e diz: “Sim, pobre ingênuo, fui eu quem afundou o navio, incendiou a estação de trem, envenenou a água do castelo...”, o pobre ingênuo a quem ele se dirige é o espectador.










terça-feira, 21 de julho de 2015

3872) Como ler os outros (22.7.2015)



(foto: W. T. Benda)


Eu me identifico muito quando vejo as entrevistas de modelos e atrizes que viram escritoras ou filósofas e explicam para os microfones: “Eu queria mostrar que não sou apenas um rostinho bonito.”  

Não é porque eu corra o risco de que isso me aconteça, mas porque sei que essa maldição aflige por igual a raça humana inteira.  Nunca somos os que as pessoas veem de nós.

Dona Marjóri, por exemplo. Morei na pensão dela logo que vim pro Rio, ela era oito anos mais velha do que eu, despachada. Era aquela coroa que só usa roupa justa, mas impõe moral. Sabia que eu era paraibano, e dizia: “Esse eu vou tratar bem, porque é cangaceiro.” Não houve quem a convencesse do contrário. 

Hoje, trinta anos depois, é dona de um box no Mercado das Flores, perto da Uruguaiana. De vez em quando, passando lá, paro para dar um alô. E ela gargalha: “Olha o pistoleiro, gente! Matou quantos esse mês?”. É burra, é preconceituosa, é nordestinofóbica? Não, quando eu apareço ela abre o arquivo mental “Paraíba.doc”.  Tudo que tem lá é uma figura de um cangaceiro desenhada, e essa figura é tudo que ela enxerga quando pensa nesse assunto, coitada.

Já para o Dr. Firmo, que foi meu advogado durante dois anos numa pendenga de royalties, fiquei sendo para sempre “o Poeta”. Houve uma ação envolvendo músicas onde eu era parceiro, e ele compulsava as tabelas de pagamento, murmurando: “Que coisa linda, um indivíduo escreve dez ou quinze versos e ganha isso tudo.”  O escritório dele era na Graça Aranha e quando nos víamos na livraria Berinjela ele me saudava como “o discípulo de Virgílio”.

Todo mundo já fez suas bobagens, concordam? Mas tem amigos que deixam para fazê-las justamente na noite da festa em que são apresentados aos futuros sogros. O cara é arrebatado por uma paixão, mais repentina do que morte súbita, pela filha única de um casal classe-médica. Amor correspondido, espaçonave decola cheia de latas amarradas, mas o Olimpo fica com inveja. 

Surge a festa, a bebedeira, o mico, o barraco que envolveu metade da família, os sopapos com um tio reacionaríssimo da dita cuja, que sepultou paixão e o escambau. Quem é ele agora, pro resto da vida?  O “comunista bêbado”.

Se fizessem um rashomon ou um citizen-kane convocando as pessoas que nos conhecem, acabariam concluindo que há pessoas diferentes assumindo nossa identidade. 

Para diferentes grupos eu sou o trocadilhista de botequim, ou o maridão modelo, ou o escriba confiável, ou o trapalhão descoordenado, ou o maledicente venenoso, ou o guru-zen inofensivo.  

Ninguém detém a chave, a senha; ninguém sequenciou o DNA; ninguém sabe o Mal que se esconde nos corações humanos. O Sombra sabe.




3871) Cidadão Kane (21.7.2015)



Revendo Cidadão Kane, revi também o documentário The battle over Citizen Kane (de Michael Epstein e Thomas Lennon, 1996), que acompanha o DVD. O documentário mostra a vida e a carreira de William Hearst, o magnata que Welles alvejou com seu filme, e que lutou, com relativo sucesso, para transformar o filme num fracasso e a vida de Welles num inferno.  Dá ao espectador algo que um livro-biografia de Hearst talvez não desse: uma informação visual sobre o mundo do milionário, seus castelos, suas indústrias, suas campanhas políticas, e a história de sua paixão por Marion Davies (ridicularizada por Welles no filme, com certa injustiça).

Uma das teses principais do documentário é que Kane, como personagem, deve tanto a Welles quanto a Hearst. Por exemplo: Kane é separado à força de sua mãe na infância, o que pode explicar sua necessidade de ser amado por milhões de pessoas, por um país inteiro. Isso não aconteceu com Hearst, mas aconteceu com Welles. E ao longo do documentário de Epstein/Lennon vemos Welles aos 25 anos se maquiando para interpretar Kane com 60, e vemos logo em seguida Welles aos 60 refletindo sobre si mesmo e sobre seus filmes.

Epstein e Lennon mostram como Welles contou seu próprio futuro ao desvendar o passado de Kane; ele acabou sendo um Kane sem Xanadu. Certas obras, produzidas numa fase de euforia criativa e energia vital, parecem levar um autor a um teto que ele nunca voltará a alcançar. Kane é tão profético sobre Welles quanto “O Barco Ébrio” é profético sobre Rimbaud, mesmo tendo sido escrito aos dezesseis anos. Como se depois de publicado o poema e exibido o filme aquilo virasse um mantra inconsciente no autor.

Kane caberia em muitas retrospectivas temáticas: filmes sobre jornalismo, sobre magnatas, filme de mistério investigativo, filmes sobre política dos EUA, filmes neo-expressionistas, etc.  A famosa profundidade de campo na fotografia de Gregg Toland continua notável hoje, com pessoas minúsculas no centro da imagem conversando com alguém de perfil juntinho à câmera. Kane é cheio de personagens vistos de corpo inteiro a dez ou vinte metros, e o enquadramento parece os dos filmes de truques de Ray Harryhausen.  Diz-se que os atores suavam, porque para a imagem ser nítida era preciso inundar a cena de luz, e os refletores eram muito quentes. Orson participou de um programa de rádio com H. G. Wells, em 1940 (aqui: http://tinyurl.com/pn8nuvl). O inglês perguntou-lhe como era o filme que estava fazendo, e ele disse: “É um novo tipo de filme, como um novo método de apresentação, e alguns novos tipos de experiências técnicas e novas maneiras de narrar um filme”.


sábado, 18 de julho de 2015

3870) O Gótico Moderno (19.7.2015)



(A Noiva de Frankenstein, 1935)


As receitas de cada um de nós se compõem em função do repertório do que lemos, do que ouvimos, do que assistimos, e cada combinação pessoal é única. 

Na minha lista, uma narrativa Gótica moderna (romance, conto, cinema, HQ, etc.) tem que ter sempre uma presença muito forte do espaço, porque o próprio nome nos traz à mente a arquitetura. O espaço do romance ou do conto gótico, portanto, sente-se à vontade em paisagens com vastos espaços vazios no meio dos quais se ergue uma construção colossal (“A Casa de Usher”). Uma topografia medieval, que encontra seu contraponto na cidade: um vasto espaço fervilhante de seres e recortado em espaços que parecem poder se subdividir e se multiplicar indefinidamente (Metrópolis).

Também das catedrais vem o lado sobrenaturalista tão essencial do gótico: fantasmas, rituais, maldições. A existência de um mundo superior ao nosso, do qual somos sombra e reflexo, “as above, so below” está presente na narrativa gótica, mesmo a de cunho mais sadista e blasfemo. O gótico pode não acreditar em Deus, mas isso não o impede de negociar a alma com o Diabo. 

João Cabral de Melo Neto revelou a medula gótica da nossa civilização dos engenhos quando disse, mais ou menos: “Meu problema com religião é que não acredito em Deus mas morro de medo do inferno.” 

O gótico envolve paixões extremadas e violência física. Etimologicamente, invoca os Godos do original, bárbaros, cruéis, cujos genes talvez estejam espalhados pelo Brasil. Os visigodos viveram na Península Ibérica e foram parte essencial do levante que expulsou de volta os Mouros. 

O romance gótico só termina deixando pelo caminho algumas tragédias.  E, retomando o viés sobrenatural citado acima, pode-se dizer que a visão-do-mundo gótica implica na revelação da existência do Mal no mundo.

Já usei o termo “Ciência Gótica” para descrever ambientes como o “laboratório de Frankenstein” ou o “sótão do alquimista” ou os “centros secretos de pesquisa da Nasa / CIA / FBI / KGB / etc”. É um arremedo de cenário científico, mas as mentes que o manipulam são insanas, ou malévolas, ou simplesmente bizarras. A Ciência Gótica é uma ciência sequestrada por objetivos e métodos com os quais o espírito científico não tem muita afinidade.

O Gótico narrativo envolve a noção de um Universo parcialmente oculto e indevassável, de onde brotam comandos absurdos, inexplicáveis, determinando nossa fortuna ou desgraça; e a tentativa de criação de processos artificiais para controlar esses poderes ou negociar com eles, em situações sempre de vida ou morte. Situações-limite onde o triunfo, a felicidade e o conhecimento jamais ocorrem juntos.






sexta-feira, 17 de julho de 2015

3869) Viagens espaciais (18.7.2015)




Jorge Luís Borges ironizava a expressão “viagens espaciais”, dizendo que toda viagem, mesmo para o subúrbio, é uma viagem espacial, pois acontece no espaço. Era o mesmo (dizia ele) que dizer “substâncias químicas”. Nossas viagens espaciais dependem, em grandíssima parte, não apenas dos veículos e dos combustíveis de que dispomos, como também do modo como entendemos o espaço, como avaliamos o espaço que se estende à nossa volta.



Em Orlando, na Flórida, foi divulgada a foto aérea de duas residências que estão em espaços contíguos e ao mesmo tempo estão a cerca de dez quilômetros de distância. As casas estão fundo-a-fundo, viradas para ruas diferentes. Uma pessoa de uma delas pode ir para seu quintal ou pátio traseiro e passar para o quintal da outra casa. Mas se ela quiser ir visitar esses vizinhos de carro vai ter que sair pela rua da frente, e, seguindo a mão e obedecendo aos cruzamentos, terá que dar uma volta de dez quilômetros, a menor distância possível a ser percorrida de carro.



O espaço é um só, do ponto de vista físico, mas os nossos deslocamentos não estão sujeitos apenas ao lado físico, eles têm que passar pelo filtro de como organizamos nossas maneiras de percorrer esse espaço. Razões de urbanismo, engenharia de trânsito, etc., fazem com que os carros precisem se deslocar em canais de espaço muito específicos. Além dos obstáculos físicos, como os prédios, ele encontra obstáculos conceituais, como uma rua em contra-mão ou um gramado.



O exemplo dessas casas em Orlando é uma possível metáfora do que a ciência e a FC chamam de “buracos de minhoca” ou “wormholes”.  São atalhos no espaço onde é possível passar através de pontos específicos, evitando a volta de dez quilômetros e chegando direto à casa vizinha. Podemos também pegar uma folha de papel, fazemos duas marcas, distantes uma da outra, e depois dobramos o papel, colocando as duas marcas em contato. Com isso, encurtamos a distância ao amassar o papel, mas para isso precisamos de uma dimensão extra. (Supõe-se que a folha é uma superfície sem espessura, apenas bidimensional).


Para efeito de criação de histórias, pode-se lançar a hipótese de que um “wormhole” só pode ser acessado por “pedestres”, não por “carros”. Ou seja, fazer passar por ele a massa de uma espaçonave exigiria uma quantidade inconcebível de energia, mas uma pessoa vestida de traje espacial ou num “esquife espacial” exigiria uma minúscula fração disso. Bastaria ter uma estação espacial construída nas vizinhanças e ficar mandando os viajantes quando necessário.  Os deslocamentos de espaçonaves pela galáxia são comparáveis à volta de 10 km de quem viaja de carro.



quinta-feira, 16 de julho de 2015

3868) O crime de Kalimero (17.7.2015)



(ilustração: Giambattista della Porta)

“Pode procurar aí os registros da morte de Jorge Kalimero. Foi galã de sucesso da Vera Cruz nos anos 1950, mudou-se pro Rio e viveu do Cinema Novo até os 80, voltou para São Paulo e ziguezagueou por toda a escala de personagens da Boca do Lixo até o controvertido final. O filme em que morreu era para ter sido seu triunfal retorno aos 70 anos, longe das telas há uma década.

“Kalimero, depois de velho, virou um pequeno caudilho. Viajava levando uma caravana com esposa, filhos, criados, secretárias que mal sabiam anotar um telefone, protegidos que cochichavam ao seu ouvido e ele metia a mão no bolso, entregava bolos de notas amassadas. Grande ator, mas sem noção da vida real.

“A cena do dia fatal era a morte do seu personagem. General aposentado, depois de ganhar a guerra, está em casa numa manhã de inverno, ouvindo música. Um ladrão entra, há luta, o ladrão o mata com um tiro no peito. O assassino? Um pobre diabo que não sabia quem ele era.

“Aquela era a primeira cena do dia. Kalimero saiu do seu trailer às oito, figurino do personagem, entrou no cenário, foi preparado. Rodaram numerosos planos. Quando rodaram a cena do tiro, o projétil disparado pela arma do coadjuvante varou o coração do veterano astro.

“O processo foi coberto pela imprensa, está tudo bem à vista. Veredito: acidente. Havia duas opções na cena: um tiro de festim, para o qual bastaria uma veste reforçada por baixo da roupa; ou um projétil de verdade, que produziria um choque mais realista no peito do ator, mas precisaria haver por baixo um colete antibala comum, daquele da polícia.

“O juiz disse que o tiro foi acidental, mas Kalimero tinha dinheiro e propriedades, a decadência dele era somente artística. Muita gente querendo sua morte, ainda mais agora, trabalhando, seguro assinado. E eu trabalhava nesse filme. Foi um dos meus primeiros trabalhos, eu servia de menino de recados para os assistentes de direção.

“O crime consistiu em alguém garantir à equipe que tudo bem com projéteis de verdade, porque o astro exigiu o colete à prova de bala. E em alguém garantir do outro lado que o tiro seria festim, e bastaria um pulôver reforçado com pelica.

“Ninguém comentou isso, enquanto as cenas eram rodadas. Ninguém checou um detalhe tão importante. Difícil saber. Mas eu, eu ouvi o assistente novo, primeiro filme com aquela equipe, dando esses dois recados, e eu ouvindo e ninguém me vendo. Depois do tiro e da confusão, foi interrogado e liberado. Depois, ninguém mais o viu.  Quando a polícia foi ao endereço que fornecera encontrou um casal de tios idosos que mal lembravam o nome completo dele, e não o viam há vinte anos. E nunca mais foi visto. “






quarta-feira, 15 de julho de 2015

3867) Escritor = traidor (16.7.2015)



Antigamente era normal um romancista passar três páginas seguidas descrevendo o quarto de uma marquesa ou o estúdio de um artista. No século 19 a pintura, o teatro e a ópera compensavam o lado não-visual da literatura, e um leitor era capaz de visualizar colagens de objetos e paisagens que afinal não estavam muito distante de sua experiência diária, mesmo vendo a vida dos nobres à distância. O cinema, quando surgiu, demonstrou ser uma espécie de teatro com o tempo narrativo e o tempo real tão manipuláveis quanto os da literatura.

Um dos primeiros choques tradutórios que senti foi quando comecei a ler S. S. Van Dine em inglês, depois de ter lido em tradução uma meia dúzia de seus romances de crimes enigmáticos (The Benson Murder Case, etc.). Tive um susto. Philo Vance, seu detetive, é um esnobe que gosta de discorrer páginas inteiras sobre egiptologia ou história natural para avaliar a importância de uma pista. Esses longos “infodumps”, ou entulhos de informação, estavam conspicuamente ausentes das traduções de Monteiro Lobato, da Companhia Editora Nacional. Lobato devia achar aquilo um saco e metia a tesoura, cortava tudo. Os leitores que não gostam do dandismo de Van Dine, sua pose de J.-K. Huysmans novaiorquino na década de 1930, podem muito bem ler as versões lobatianas, mais enxutas, mais leves.

Como aliás dizem ser a tradução que Borges fez de “The Purloined Letter” de Edgar Poe para uma das suas antologias. Em termos de estilo Borges era o anti-Poe. Essa sua tradução pode ser um bom exemplo de crítica praticada via tradução, não via ensaio. Traduzir, às vezes, é a nossa chance de reescrever uma história que estilisticamente não nos agrada, e aí cedemos à tentação de melhorar o original.

Lobato e Borges tomava essas liberdades porque eram escritores traduzindo, e não tradutores de ofício. O tradutor de ofício e o escritor sofrem as mesmas tentações, como a de melhorar o original; mas talvez o escritor ceda com mais facilidade. Ressalvando sempre o bom senso das partes envolvidas, o tradutor vê no autor do livro alguém ligeiramente superior a ele, quando mais não seja pelo fato de que é o dono do texto original. Já um escritor pensa: “Ora que diabo, estou traduzindo mas sou escritor também, vou dar uma ajeitada nos parágrafos desse nobre colega.”  O que é o mesmo que ir no museu e dizer: “Vou dar uma ajeitada no nariz desta estátua, na perspectiva desse quadro.”  Onde um tradutor sério passa uma noite inteira pesquisando e sofrendo, um escritor às vezes não hesita em passar o rodo na estilosidade do colega e seguir adiante, esfregando as mãos e assobiando. Ele diz que prefere saber como salsicha é feita.



terça-feira, 14 de julho de 2015

3866) A Floresta lá fora (15.7.2015)



(ilustração: "Biodome", by Shadow-Trance, em www.deviantart.com)

O objetivo da civilização é expandir-se fisicamente até ocupar o mundo inteiro, quando então o mundo entrará em colapso, visto que seu metabolismo não pode sustentar uma malignidade desse porte. Millôr Fernandes dizia que o homem era um câncer da Natureza, e mesmo que não seja algo tão grave pode ser algo tão incômodo como uma “impinge”. O que é bom para a Humanidade? Me lembra aquela piada onde um compadre pergunta o que é bom para úlcera e o compadre responde: “Cigarro, bebida, carne assada, pimenta...” O outro diz: “Danou-se, e isso é bom?”  “É bom pra ela,” disse o outro, “ela cresce, fica mais forte, sai tomando conta de tudo”.

Daí que um dos traumas fundamentais da espécie humana seja essa tentativa psicótica de negar o universo, seja considerando-o território seu e preparando-se para colonizá-lo, seja criando toda uma cultura do homem como espécie necessariamente superior, e disso decorrem uma ética, uma moral, uma estética condizentes. Talvez a imagem equivalente disso na FC seja Trantor, a cidade-planeta de Asimov, cobrindo a superfície inteira do planeta homônimo.

Um artigo de Alexandre Nodari (citado no blog A Bacia das Almas de Paulo Brabo, aqui: http://tinyurl.com/nuvn6wg) fala na semelhança de origem entre a palavra floresta e o conceito de “fora” (forest, forêt). A floresta é tudo que está lá fora, o covil dos ainda-não-civilizados, os morlocks e os ghouls e todos os monstros do lado externo da cúpula transparente e pressurizada que nos protege, e é mais fácil a gente morrer do que dela abrir mão.

Mas toda mão se abre com a morte, como se vê no cinema americano. Se a humanidade se extinguir por completo será por uma Big Crise seguida de fome e epidemias. Não será do dia para a noite. Levará séculos de encolhimento e regressão tecnológica, o que ironicamente retardará a contaminação de alguns grupos significativos, cujo ocaso pode vir a ser rodeado de portentos.

Lá fora as florestas, as árvores ainda não aplainadas em livro, e o que está fora dos livros não tem valor, é uma mera floresta de letras e de sons, moeda sem dono que não merece confiança. A floresta (diz Nodari) “tem espaço para a deserção, a fuga, para a desobediência civil de Thoreau”. A sanha hileicida do modelo econômico global adota a pose fotográfica de quem limpa uma sujeira acumulada há milênios embaixo do tapete do mundo, de quem está extinguindo os últimos redutos de selvageria de-fato que instabilizava as existências de-direito. (Pode-se ver também nas periferias, alagados e favelas um contra-ataque da selva-selvagem comendo a cidade pelas beiras. Uma floresta de madeira que passou pela mão humana.)



segunda-feira, 13 de julho de 2015

3865) A virada do soneto (14.7.2015)


O soneto já foi um símbolo da poesia brasileira. Virou sinônimo de parnasianismo, bacharelismo vazio, salões de festa. O ícone da poesia engessada, vestindo sobrecasaca, cartola e pince-nez. No entanto, poetas de temperamento menos pomposo, como Manuel Bandeira, Drummond, Vinicius de Morais, Marcus Accioly, Glauco Mattoso, quebraram qualquer elo que pudesse existir entre a forma “soneto” e a temática ou inflexão parnasiana. Em todo caso, o soneto está muito longe de ser um modelo já esgotado. Brian Staveley (num artigo aqui: http://tinyurl.com/qzfom2m) lembra uma teoria interessante, e que tem certo fundamento.

Ele diz que o que caracteriza formalmente o soneto é ser composto de 14 versos, que podem vir dispostos em blocos de 4-4-3-3 linhas, no modelo italiano, ou 4-4-4-2, no modelo inglês. Mas o soneto tem um componente essencial, que é a virada (“the turn”). É uma mudança perceptível na narração, exposição, reflexão, que vinha sendo feita até então, uma virada que  leva o poema noutra direção. Segundo ele, no soneto italiano essa virada ocorre entre o oitavo e o nono versos; no inglês, entre o décimo-segundo e o décimo terceiro.

O artigo dá exemplos de bonitos sonetos de Edna St. Vincent Millay onde vemos o soneto ter um enunciado contínuo ao longo dos dois quartetos, e, ao passar para o primeiro terceto, mudar de ponto de vista, ou mudar para um segundo termo de comparação, mudar a enunciação vocal... Ocorre nesse ponto uma virada, de variada natureza, no que vinha sendo dito. E de fato no soneto inglês essa relação rítmica entre as estrofes faz com que as três quadras iniciais tenham um enunciado “A” e as duas linhas finais fornecerem o enunciado “B”. Não é uma regra geral: mas não é difícil achar exemplos, pois é um recurso frequente, uma maneira de evitar a monotonia pela repetição de estrutura.

Sem ser obrigatória, a “virada” é característica. Pegando a obra de um sonetista de primeiro time como Augusto dos Anjos, vemos essa dobrada-de-esquina bem clara em sonetos como “O Morcego” (em “Pego de um pau. Esforços faço...”), “Idealismo” (“Pois é mister que para o amor sagrado...”), “Soneto II ao pai” (“E saí para ver a natureza!”), “Versos íntimos” (“Toma um fósforo. Acende teu cigarro!”). São momentos em que o fluxo do poema nitidamente sofre um corte cinematográfico, vira uma esquina noutra direção. A divisão do soneto em quatro estrofes cria essa pausas artificiais (impostas pelo modelo) que podem se tornar pausas naturais, ou “quebras” naturais, que servem ao poeta como sinalizadores do momento melhor para a entrada de um novo elemento, uma nova idéia ou emoção.




sábado, 11 de julho de 2015

3864) A arte do bordado (12.7.2015)



(bordado renascença)


Numa conversa sobre livros, me lembro de alguém falar que o escritor tal, um clássico qualquer, era bom, mas “bordava muito”. Como se tratava de um autor de língua inglesa, pensei qual seria a palavra mais próxima, me veio “embroidery” que me parece cobrir essa área de rendas de agulha. É uma palavra que chama de imediato nossa noção de enfeite demais, adorno pra mais da conta, uma expansão fractal de padrões e loops geométricos.

Vi uma vez num sebo perto da praça Tiradentes um livro gigantesco de tricô, crochê, etc., com uma babilônia de ilustrações detalhadíssimas mostrando aquelas dízimas periódicas em forma de imagem. Uma coisa tão complexa quanto a montagem de um reator nuclear, pelo menos para mim, que olho de longe.

Mas o que é bordar? Acho que por cronologia e por importância é, primeiro que tudo: reforçar as bordas, as beiras, as periferias de um tecido. Têm que ser reforçadas porque são limites, fronteiras. Precisam da famosa linha preta em volta, que os pintores já discutiram tanto. Bordar é reforçar a borda de algo maior para que não se desfie, não se esgarce, não se desmanche, não se desfaça da escritura e trama que é. Para que não se desalinhe em meros fios soltos.

É um reforçar adornando. Quem redobra uma beira de pano tem que se distrair com alguma coisa, então alguém começou a inventar esses pequenos labirintos simétricos. Formas de alta matemática, geradora de muita filosofia: a arte de ficar bordando imagens ou palavras em silêncio.

Bordar pode ser também: prender a bola na borda do campo, longe de área, como tantos jogadores sabem fazer, driblando, girando, indo, mudando de rota, prendendo de novo, recuando para o ponto inicial. Muito útil em certas combinações de placar atual e tempo restante.  Não sendo assim, atacante, quando borda muito, começa a perder a função, como o ponta-direita que depois do sexto drible bem sucedido em série acha que não custa nada tentar o sétimo.

“Bordar / as bordas”. Isto será uma falsa etimologia? Inventar etimologias rebuscadas tem sido um passatempo para muita gente imaginosa. Seria, se eu afirmasse ter descoberto a “única verdadeira” explicação para uma palavra. Isso, se existe, deve ser muito raro. Mas a atribuição de uma etimologia imaginária pode se valer justamente disso, é o choque de algo que na verdade não tem ligação alguma. O choque da justaposição inesperada, bem surrealista, a sacudida que ela dá na imaginação.  É uma ficção verbal, uma biografia imaginária para uma pessoa (uma palavra) que de fato existe. Um processo de justaposição de idéias para gerar alguma coisa, contando sempre com a ajuda do acaso e a ajuda do engenho.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

3863) Dicionário Aldebarã X (11.7.2015)



O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Lialand”: designa trechos de terra à beira-mar alternadamente acima ou abaixo da água, e também variados tipos de armadilhas para peixes. “Renowan”: a mudança de percepção que ocorre quando percebemos num desenho uma imagem que mesmo tendo sido captada pelos olhos não tinha sido “lida”. “Thercum”: parte central das mesas circulares de estudos, automática, que gira de modo contínuo, com textos que as crianças precisam copiar enquanto ele passa diante dos seus olhos. “Vizmoe”: imagens ou palavras aparentemente sem sentido que se fixam na memória de alguém e começam a adquirir um significado cabalístico; diz-se também daqueles que as inventam.

“Collarg”: situações de conflito em que um dos lados submete o outro a uma intensa pressão, quase insuportável, e não consegue produzir nenhum resultado. “Jambal”: pessoa que dividiu sua vida inteira entre duas nações (duas cidades, etc.) e não consegue se definir por nenhuma delas. “Mamatart”: luva de couro especial para o manuseio de ferramentas de metal e de objetos pesados. “Ondombaert”: o impulso de tentar usar no mundo real os comandos artificiais de um jogo ou de um programa.

“Anant-vir”: pequena bomba de sucção como as de encher pneus de bicicleta, feita com um canudo dentro do outro, usada para sugar insetos dentro de casa e soprá-los para longe no jardim. “Loruim”: estilo de pintura por associação de idéias em que a tela vai sendo coberta por formas improvisadas, diante de uma platéia, sendo a tela sorteada no final para um dos presentes. “Coljun”: a sensação de olhar a foto de uma pessoa desconhecida e saber o que ela está pensando.

“Teflo”: ritual festivo em que famílias se inscrevem apresentando a receita de suas comidas prediletas, e depois um sorteio faz com que se presenteiem umas às outras com os pratos sorteados. “Harbastes”: pequenos ramos de folhas, com alusões em forma de trocadilho, que se coloca sobre a porta de entrada para saudar alguém cuja chegada se espera.  “Almotém”: escrivão juramentado nas casas-de-justiça populares, a quem cabe escutar e depois resumir em uma lauda a querela sem fim entre duas partes, para decisão do juiz. “Oikphan”: diz-se de qualquer parte do corpo quando está coberta por roupas, tintas, maquilagem, tatuagens, ou quando foi substituída por um equivalente artificial.


quinta-feira, 9 de julho de 2015

3862) "Numa Terra Estranha" (10.7.2015)










Este romance de James Baldwin (o título original é Another Country) foi lançado em 1962, ano em que Bob Dylan gravou seu primeiro disco na Manhattan que Baldwin recria e recenseia. O livro de Baldwin é o retrato tenso e desgastado, talvez chocante para a época, de relações variadas dentro de um grupo de pessoas que se conhecem. Rapaz negro com moça branca e vice-versa, homem com homem, pessoas casadas com amantes clandestinos. Tudo isto no mesmo Greenwich Village onde a rapaziada da canção de protesto começava a se juntar aos pesquisadores da folk song tradicional e do blues.

Numa Terra Estranha não tem blues, mas o personagem que decola a história é Rufus Scott, um jovem baterista negro de jazz, com problemas de auto-aceitação. Conhecemos todos os outros através da história dele: sua irmã Ida, cantora; o escritor branco Vivaldo; outro escritor branco, Richard, e sua esposa Cass; o casal gay (branco) Eric e Yves (que vivem na França). Quase todos são artistas, mais ou menos liberais, todos são problemáticos. Richard Silenski é um filho de migrantes que depois de muita batalha publica um romance policial com grande expectativa; Vivaldo é mais jovem, meio seu discípulo, e faz o papel do Escritor Liso Fumando na Mansarda.

O Village é o ambiente natural de Rufus, bem como os bares de jazz na Rua 42 e do Harlem. É também onde mora Vivaldo, que a certa altura passa a ser o foco principal da história. Um Village de fins dos anos 1950, quando um casal interracial de mãos dadas andando na rua atraía os olhares e gerava tensão. As pessoas dormem juntas, brigam, voltam, perseguem carreiras, fracassam, fazem um sucesso que preferiam não ter feito, conversam e discutem o tempo todo. Retorcem assuntos como quem seca roupa. Baldwin é um realista da velha escola.  Alguns capítulos são pequenos contos de vida urbana, preciosos, que quase podem ser independentes do arco narrativo maior.

É a Nova York dos bares gays e bares de marinheiros a poucos metros de distância. Os mesmos ambientes descritos por Samuel R. Delany em suas memórias The Motion of Light in Water (1988). Em 1962 Delany era um jovem romancista negro bissexual casado com uma poetisa branca, Marilyn Hacker, estreando na FC com o romance The Jewels of Aptor. As memórias de Delany completam os interstícios das vidas passadas a limpo por Baldwin, e quem sabe não haja algo de Baldwin na Bellona que Delany veio a imaginar em Dhalgren (1974). Baldwin é mais um daqueles escritores negros norte-americanos (como Richard Wright, Frank Yerby, Chester Himes) que tiveram que ir buscar na França alguma coisa que era sua de nascença e lhes foi subtraída.


quarta-feira, 8 de julho de 2015

3861) Vida de artista (9.7.2015)




(Anna Karina em Viver a Vida)

“Vida de garota de programa não é fácil, vai por mim que já estou nessa há mais de dez anos. Minha mãe deixou de me ver, morreu sem falar comigo. Não era culpa dela, coitada, ela se criou num mundo diferente. No mundo dela, cobrar pra fazer sexo era uma coisa vergonhosa, mas um padre podia cobrar pra batizar uma criança, um médico podia cobrar para salvar a vida de uma pessoa. Até hoje não entendi se ela tinha vergonha era da parte do dinheiro, ou se era da promiscuidade. Será que se eu desse a torto e a direito gratuitamente ela ficaria mais consolada? Não sei, era difícil conversar com ela, não tenho paciência de explicar as minhas coisas pra ninguém, ainda mais naquele clima.

“Cada uma se vira como pode. Sou contra é o que fazem por aí, quadrilha, puteiro, pegar as meninas na marra, obrigar, escravizar, aquele mundo-cão de tráfico. Eu não. Tive sorte de entrar nessa vida por mim mesma, por uma porta que só eu tenho a chave. Só saio com quem eu quero e escolho. A palavra é “agenda”, e tenho a minha, cheia, valendo uma nota. Quando não gosto dum cara aquela vez foi a última. Já entrei em algumas roubadas, mas mulher que casa também entra em roubada, ou não? Todas as roubadas que eu entrei eu consegui sair na boa.

“E tem os clientes-premium, como Dr. Osmundo. Me liga uma vez por mês, às vezes duas. Ele tem uns 70 anos, mas faz academia, está bem conservado. É viúvo, não tem filhos, mora sozinho num apartamentão. Vou lá sempre no fim da tarde, ele está me esperando. Troco de roupa num quarto-de-hóspedes onde tem um armário com roupas no meu número: blusas, bermudas, vestidinho caseiro, lingerie, camisola, chinelo. Nunca vi o quarto dele, a suíte principal. Chego, troco a roupa (e ele já me paga, o envelopezinho dobrado), ficamos por ali, eu preparo um jantar e ele fica vendo TV e tomando um drinque. Conversamos sobre o telejornal, os assuntos do dia, o clima, o trânsito na cidade, a campanha do time dele. Jantamos. Ouvimos música. Às vezes rola o sexo nessa hora. Uma coisa rápida, mas carinhosa.

“A certa altura ele ordena: Vamos dormir. E dormimos juntinhos, sempre no quarto de hóspedes, a cama é ótima, lençol cheiroso, casa bem cuidada. Ficamos conversando sobre a vida, falo minhas coisas, falo da criação da minha filhinha, ele comenta, dá conselhos. Dormimos abraçados. Às vezes o sexo acontece de manhã. Tomamos banho, faço um café, troco de roupa e vou embora. E o cachê... meu Deus. Perguntei por que ele paga tão bem, ele disse: Sai mais barato do que casar. E vou falar pra vocês, acho uma coisa tão tranquila, mas se fosse pra fazer aquilo sete vezes por semana eu ia cobrar muito mais.”