segunda-feira, 30 de março de 2015

3775) A lista da Cinemateca (31.3.2015)



A Cinemateca Francesa programou para o período entre 18 de março e 18 de maio deste ano uma mostra com um panorama do cinema brasileiro, desde as origens até hoje (aqui: http://tinyurl.com/pepqo5v). São 72 títulos, e uma mostra tão ampla dificilmente deixaria de mostrar alguns dos chamados filmes inevitáveis, desde pioneiros como Mário Peixoto e Humberto Mauro, passando pela chanchada carioca, a Vera Cruz paulista, o Cinema Novo, o cinema marginal, o documentário, a “Retomada”, etc.  Deixo aos diretores o chororô de “deixaram Fulano de fora”. Alguém sempre vai ficar de fora. 

Em matéria de cinema nordestino (o que inclui conteúdo, não só origem de produção) temos além dos ciclos de cangaço, etc., filmes como Cinema, aspirina e urubus de Marcelo Gomes, Cabra marcado para morrer de Eduardo Coutinho e O Som ao Redor de Kleber Mendonça Filho.  Devo lembrar também A hora da estrela de Suzana Amaral, que revelou a paraibana Marcélia Cartaxo.  O que me surpreendeu foi o grande número de filmes marginais do tempo do chamado “cinema udigrudi”, inclusive títulos obscuros como Hitler 3o. Mundo de José Agrippino de Paula e Os Monstros de Babalu de Elizeu Visconti, ao lado de outros mais estudados pela crítica, como os de Julio Bressane (Matou a família e foi ao cinema, etc.), Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha, etc.) e outros.

Me surpreendeu também a inclusão de filmes de Zé do Caixão.  Enquanto o cinema udigrudi, com sua sujeira narrativa, seu niilismo político e seu deboche cruel me parecem até corresponder a um certo gosto da crítica francesa, sempre achei que Zé do Caixão nunca teria por lá a mesma recepção que tem nos EUA, onde há um certo culto em torno de “Coffin Joe” e sua filmografia. A mostra parece ter sido organizada pelos pesquisadores ligados à Cinémathèque. É sempre útil estudar o modo como os outros nos estudam. O “recorte”, como se diz, já é uma forma de crítica, uma tentativa de organizar diferentes tipos de prioridade.

A crítica francesa já foi acusada como responsável por muitos cacoetes do Cinema Novo; aquilo que os franceses elogiavam num ano era repetido por muita gente nos filmes do ano seguinte. O que tanto pode ser uma coisa ruim como uma coisa boa, porque o que vale, sempre, é o resultado na tela. Acontece também com os EUA: muitas coisas boas produzidas lá eram esnobadas na terra natal e foram os franceses que souberam lhes dar valor. De Edgar Allan Poe ao jazz, muita coisa norte-americana só ganhou a estatura que tem hoje depois que os franceses assinaram embaixo. O olho francês sobre o nosso cinema pode continuar a ser uma influência positiva.


domingo, 29 de março de 2015

3774) Contos curtíssimos (29.3.2015)



(Hemingway bebê)

Sempre que falo aqui em contos curtíssimos, contos-relâmpago num mínimo de texto, cito o exemplo de Hemingway.  Numa mesa do famoso restaurante Algonquin, em Nova York, escritores debatiam para ver quem escrevia o conto mais curto, e Hemingway rabiscou num guardanapo de papel as famosas seis palavras: “For sale. Baby shoes. Never worn” (“Vende-se. Sapatos de bebê. Sem uso.”)

Textos tão compactos criam uma rede interna de relações, como um ideograma. Por que alguém venderia um par de sapatos de bebê?  E por que nunca foram usados? A explicação mais imediata é de que alguém começou a preparar um enxoval de bebê e depois desistiu, porque o bebê foi perdido. Há um pequeno drama humano nessas palavras.  E mais ainda quando, para além do realismo da situação, atentamos para a sutileza de que o “autor” do texto, certamente, são os pais da criança, e que o último detalhe (“sem uso”) é o mais doloroso, mas valoriza o produto à venda. 

A emoção está presente através da secura da linguagem. Basta sugeri-la, sem exprimi-la diretamente.

O saite Open Culture (aqui: http://tinyurl.com/kkoa6kz) afirma que o texto não é de Hemingway. Já existia em 1906, numa coluna de jornal chamada “Terse Tales of the Town”, um texto dizendo: “For sale, baby carriage, never been used. Apply at this office”.  Depois dessa data há várias versões, algumas se referindo a sapatos de bebê, outras a um carrinho. Há inclusive uma tirinha de quadrinhos de 1927 indicando-a como “o maior conto curto do mundo”.  (Não transcrevo todos os exemplos aqui, por falta de espaço.)  Tudo indica que Hemingway, se é que a aposta no Algonquin é verdadeira, se baseou mais na memória do que na imaginação, e de alguma forma conhecia esses exemplos mais antigos.
Isso mostra o quanto, na cultura digital, é fácil pegar um mentiroso. Já escrevi em algum lugar que não há originalidade que resista a um bom levantamento bibliográfico. A busca eletrônica pode descobrir em horas algo que levaria anos para fazer em bibliotecas, compulsando coleções encadernadas de jornais empoeirados e obscuros. 

O miniconto de Hemingway não perde com isso sua força literária. Ela fica até maior se considerarmos agora, podendo fazer a comparação entre as sucessivas versões, que o texto foi sendo limado, reduzido, aperfeiçoado até chegar à sua irretocável versão atual de seis palavras. O que perde é a “lenda urbana” criada em função do autor famoso. 

E por vias transversas acabamos batendo noutra característica da cultura digital: a mania de atribuir uma boa frase a uma pessoa famosa, na crença de que isso ajudará a propagá-la. Crença perfeitamente justificada, aliás.




sexta-feira, 27 de março de 2015

3773) "O Anjo Exterminador" (28.3.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão deste sábado, haverá debate comigo e o prof. Sérgio Almeida.)

Para hoje está programado O Anjo Exterminador (“El Ángel Exterminador”, 1963) de Luis Buñuel, realizado no México logo depois que Buñuel, tendo passado um período de relativa obscuridade, ganhou prêmios internacionais, provocou escândalo com Viridiana (1961) e voltou a chamar a atenção da crítica. Em O Anjo..., o milionário Nobile traz para sua mansão um grupo de amigos para um jantar, após a apresentação de uma ópera. Acabado o jantar, eles descobrem que não conseguem sair do salão principal da casa, embora as portas estejam abertas. Uma espécie de bloqueio mental os impede de cruzá-las, e do mesmo modo as pessoas de fora não conseguem entrar na casa. Há uma barreira invisível, mas não é física, e sim mental.

Buñuel mostra a lenta bestialização daquelas pessoas ricas e sofisticadas (seriam chamadas hoje de “coxinhas”) quando começam a sentir falta de comida, água, sanitários. Choram, desesperam-se, trocam socos e acusações, vão aos poucos regredindo a um estágio animalesco. Trancafiados num salão aberto, em breve não se distinguem mais de um grupo de moradores de rua, sujos e famintos. Alguns começam a morrer, e os cadáveres são escondidos em armários.

Assim como o personagem de Feitiço do Tempo de Harold Ramis fica preso no trecho de tempo, os personagens de Buñuel ficam presos num espaço, sem nenhuma explicação. O interesse do diretor é mostrar o processo de deterioração física e moral de todos. Buñuel (tratei disto em meu livro O Anjo Exterminador, Ed. Rocco, 2002) traz para seu cinema influências do movimento surrealista francês dos anos 1920, do qual fez parte; da literatura de folhetim européia; do romance gótico de terror dos séculos 18 e 19.  Seu individualismo feroz o fez investir contra a Igreja, o Estado, a Burguesia, contra tudo que, a seu ver, limitava as liberdades do indivíduo.

É um filme fantástico que não sugere nenhuma explicação racional, embora os personagens comentem sem parar o que aconteceu, proponham hipóteses, tentem descobrir uma maneira de sair dali. Buñuel desdenhava explicações: com o Surrealismo ele aprendeu a importância do impacto direto das imagens absurdas e das situações insólitas, como elemento capaz de desestruturar nosso raciocínio, descarrilar o trajeto seguro das explicações preconcebidas, da lógica, do racionalismo.



quinta-feira, 26 de março de 2015

3772) A perna artificial (27.3.2015)



Era uma vez um cara que morava perto da linha do trem, e costumava ficar às vezes sentado no chão, perto dos trilhos, pensando na vida. Um dia ele estava distraído, com a perna esquerda em cima dos trilhos, e o trem passou e arrancou a perna dele.  Grande comoção na família, que se mobilizou, fez lista de doações, livro-de-ouro, o escambau, e levantou um milhão de cruzeiros (a história é antiga) para poder dar a ele uma caríssima perna artificial. Foi feito, e a vida voltou à normalidade. Uma tarde, ele estava mais uma vez sentado junto da linha do trem, desta vez com as duas pernas em cima dos trilhos. À distância, o trem apitou para avisar que se aproximava. Ouvindo o apito, ele deixou a perna de carne e osso em cima do trilho e afastou a outra, comentando: “Esta aqui me custou um milhão de cruzeiros!”.

Esta é uma das piadas mais antigas que me lembro de ter escutado. Marcou minha infância, e me fazia rir muito. Quando comecei, já por volta dos vinte-e-tantos anos, a refletir sobre o humor e os processos que ele utiliza, percebi que cada vez que pensava nela surgiram novas associações de idéias. A mais importante, acho, é que ela é uma metáfora terrível da nossa época. A gente tende a valorizar o que conquistou com esforço próprio, não o que trouxe de nascença. A gente valoriza mais a tecnologia do que a biologia, mais a civilização do que a natureza. (Um amigo já me disse: “eu cuido melhor do meu computador do que de mim”.) E com isso corre o risco de ficar sem as duas. É uma boa fábula moral para este Brasil que, segundo Glauber Rocha, “pode beber água de coco de graça, mas prefere pagar por uma Coca-Cola”.

Hoje, o que mais me chama a atenção é o mecanismo tragédia-grega de uma historieta assim. Tudo é fado, tudo é destino, e não se vê um dedo sequer de livre arbítrio nesse personagem aparentemente tão bem posto em si mesmo. Sentar com as pernas em cima de uma linha do trem é meio caminho andado para perdê-las. E quando isto acontece, pensam que o cara ficou com um trauma, uma repulsa pelas coisas ferroviárias? Não, ele continua a sentar no mesmo lugar, com as duas pernas ali, fazendo por conta própria uma reconstituição ritual do trauma, quase que implorando aos Deuses do Plot para que aquele fato espantoso se repita. Anedota não é realismo, é fabulação. Tentar interpretá-la através de motivações emocionais realistas é perdido. Há uma certa literatura (não toda, é claro) que também funciona assim. Críticos desperdiçam hectares de papel cobrando verossimilhança de personagens que são meras funções de uma história que precisa acontecer de uma maneira tão implacável quanto a aproximação de um trem.




quarta-feira, 25 de março de 2015

3771) "O Terceiro Policial" (26.3.2015)




Flann O’Brien (não era este seu verdadeiro nome) é um desses escritores fora-de-esquadro cujas obras se recusam tanto ao sucesso popular quanto ao desaparecimento. Ficam gravadas na memória de quem as leu no momento certo, e a cada geração ressurgem diante de um novo público leitor.  


The Third Policeman foi escrito nos anos 1940, recusado pelos editores, e publicado apenas em 1967, logo após a morte do autor.  É uma espécie de romance policial absurdista, numa Irlanda rural onde todo mundo se locomove de bicicleta, inclusive os policiais.

Há um crime cometido logo no início que lança o narrador numa fuga, ao longo da qual ele vai dar numa delegacia de polícia que parece pertencer a um mundo de dimensões diferentes. 

“Ela dava a impressão de ter sido pintada em cima de um outdoor, e muito mal pintada aliás. Parecia totalmente falsa e inconvincente. (...) Eu estava vendo a frente e a traseira do prédio ao mesmo tempo, quando me aproximava dele pela lateral.”  

O narrador, que não tem nome, passa então por aventuras notáveis. 

Desce a um subterrâneo cyberpunk cheio de encanamentos, tubulações de aço, medidores, mecanismos gigantescos. 

Ouve falar de uma teoria atômica segundo a qual um homem e sua bicicleta são seres híbridos, pois cada um está impregnado de átomos do outro, devido ao longo uso, tanto que em alguns crimes de morte é mais sensato prender e executar a bicicleta. 

Toma conhecimento de cores que não podem ser percebidas pelos olhos, e de um lugar onde o tempo não corre e a barba não cresce. 

Ouve a história do balão que subiu à estratosfera com um homem, e desceu vazio. 

Discute as teorias do filósofo De Selby, como a de que a noite não passa de um acúmulo de pó preto largado pelos vulcões ao longo do dia, e que escurece o mundo quando passa de um certo limite.

O absurdismo cara-de-pau de O’Brien pode ser encontrado em muitos dos estilistas excêntricos da FC, como R. A. Lafferty, Avram Davidson, Damon Knight (Humpty Dumpty, de 1996, lembra muito este livro), além de autores que não são da FC mas tiraram um fino nela, como Alfred Jarry, Georges Perec, Raymond Queneau, além de dramaturgos do absurdo como Ionesco e Samuel Beckett. 

É um livro incrustado de teorias científicas mirabolantes, num clima de filme de animação, com pequenos detalhes realistas de total verossimilhança. 

Entre nós, O’Brien poderia ser apreciado pelos leitores de Campos de Carvalho ou Victor Giudice, dois praticantes dessa literatura que caminha sobre uma linha de fronteira, um pé no realismo da vida material, um pé no absurdo das teorias cósmicas.










3770) "Gimme Shelter" (25.3.2015)



O ano era 1969, e Merry Clayton era uma cantora profissional de Los Angeles que fazia vocais em estúdio e na banda de Ray Charles. Estava grávida, era cerca de meia-noite e ela já estava deitada com o marido quando o telefone tocou. 

Era um produtor pedindo para ela dar um pulo num estúdio e fazer um vocal, coisa rápida. Ela reclamou: “Cara, já estou deitada pra dormir, não vou mais sair pra trabalhar uma hora dessas.”  O produtor insistiu, disse que seria bom pra carreira dela, e pagava bem. 

O marido pegou o telefone para discutir com ele, falou, ouviu, ouviu, aí desligou e disse: “Merry, é melhor você ir. Vai ser bom pra sua carreira”.

Ela vestiu uma capa e, de bobs no cabelo, foi direto para o estúdio, onde foi recebida pelos Rolling Stones, que estavam gravando “Gimme Shelter”. 

Quem conhece bem a música deve lembrar aquela voz feminina rasgada, lancinante, no refrão: 

"War, children, it’s just a shot away, it’s just a shot away... 
Rape, murder, it’s just a shot away, it’s just a shot away...”  

É uma canção dark, falando da guerra, da brutalidade da época, da violência onipresente.  Sentada num banquinho (“minha barriga estava muito pesada”), ela gravou três takes do vocal, onde sua voz dobra com a de Mick Jagger, e foi pra casa.

Acho difícil traduzir esse refrão. “It’s just a shot away” significa mais ou menos “está a apenas um tiro de distância”. Seria algo como: “Pra guerra, rapaziada, só falta um tiro”. Para o estupro, para o assassinato, só falta um tiro. Só falta “um tantinho assim”. 

Os Stones amenizam a mensagem no final, dizendo: “Love, sister, it’s just a kiss away”: “para o amor, minha irmã, só falta um beijo”. Concessão aos tempos do “Paz & Amor”? Pode ser, mas “Gimme Shelter”, uma das canções mais fortes da banda, não ficou marcada como uma canção de alto astral, e sim como uma canção de “os tempos estão sombrios”.  Como o “Cálice” de Chico & Milton, e tantas outras dos nossos tempos de ditadura.

Aqui neste link (http://tinyurl.com/ldz24jj) é possível ouvir a música, a faixa somente com a voz de Merry, e uma entrevista de Jagger onde ele lembra o episódio. 

Foi bom pra carreira de Merry? Difícil dizer, mas tornou-se a performance mais famosa dela. A história, contudo, não teve propriamente um final feliz. A hora tardia e o esforço desgastaram Merry Clayton, e pouco depois da gravação ela perdeu o bebê. 

“Foi um período muito sombrio para mim,” disse ela, “mas Deus me deu forças para superar. Dei a volta por cima. Encarei isso como parte da vida, do amor, da energia, e desviei noutra direção, de modo que hoje não me incomoda cantar ‘Gimme Shelter’. A vida já é muito curta e eu não posso viver no passado.”







segunda-feira, 23 de março de 2015

3769) "Maldito Sertão" (24.3.2015)



Tem crescido o número de livros de contos baseados nas lendas populares, no folclore, nas histórias de assombrações e de monstros das diversas regiões do Brasil. Quando publiquei no ano passado meu livro de contos Sete Monstros Brasileiros (Casa da Palavra, 2014) , citei alguns amigos que estão trabalhando esse tipo de literatura, como Simone Saueressig, Christopher Kastensmidt e Felipe Castilho. Mitos e lendas populares têm sido sempre adaptados para livros infantis, tomando inclusive uma feição paradidática, mas o fenômeno mais recente é a produção de textos nessa linha para leitores adultos, fazendo uma interface com a literatura de terror tradicional.

Outro lançamento recente é Maldito Sertão (Natal, Editora Jovens Escribas, 2012, 2ª. Edição) de Márcio Benjamin. É uma coletânea de doze contos curtos onde surgem os “habituais suspeitos” das nossas lendas de terror e assombração: o lobisomem, o papa-figo, a porca dos sete leitões, a Comadre Fulozinha, a mula sem cabeça, etc.  As histórias de Márcio Benjamin têm narrativa ágil, com parágrafos curtos. Em sua maioria descrevem uma situação humana (uma casa, uma família, um grupo de pessoas) onde a invasão do sobrenatural se dá tanto por acaso quanto por uma espécie de maldição tipo “estava escrito”, algo que provavelmente aquelas pessoas nunca poderiam evitar.  Os desfechos são misteriosos e geralmente violentos.

Um aspecto que me agradou foi a linguagem nordestina coloquial empregada pelo autor, que reforça a textura oral desses contos. “Saiu desembestada”, “arrudiando a casa”, “velho como a fome”, “aperreados com a violência”, “buchos cheios de arribaçãs fritas”, “uma zuada seca”, “o primeiro bufete que levei, de uma ruma de outros”, “eu moro aqui faz é tempo”, “arrumadinhas como bonecas de feira” são algumas expressões que dão ao livro essa oralidade sertaneja, esse resíduo de um modo de falar e de pensar que serve de caldo fermentador dessas histórias. Sem forçar a barra da oralidade (o português é simples mas correto, sem transcrições fonéticas), essa maneira de escrever dá credibilidade literária a essas pequenas fábulas de crueldade, pecado, mistério, medo, ambição.

São histórias que não vêm dos livros, embora Câmara Cascudo e outros as tenham registrado.  Vêm da memória de infância, das reuniões na mesa da cozinha, no alpendre da casa da fazenda, em volta de uma fogueira ou de um candeeiro que recorta de luzes e sombras a imaginação de um grupo de crianças de olhos grudados na pessoa que conta os malassombros, com largos gestos de ênfase multiplicados e ampliados pela chama.




sábado, 21 de março de 2015

3768) Minha outra vida (22.3.2015)



Às vezes eu sonho acordado que sou um cara bem diferente de mim mesmo, vivendo uma vida que não parece nem um pouco com a minha. 

É uma das minhas formas de terapia inexplicável. Inexplicável porque se fosse uma fantasia de riqueza, orgias, farras, viagens pelo mundo, boemia, glória literária, tudo isso seria muito óbvio: estou sonhando com o que gosto e não tenho, ou tenho e queria ter em dobro. Mas não é o caso. Sonho com coisas sem graça e que não têm nada a ver comigo.

Às vezes sou um cara de 30 e poucos anos que vive sozinho numa casa minúscula. Cozinho, esquento ou peço por telefone minha comida, lavo minha roupa, faço a limpeza da casa. Minha casa tem mobília simples e pouca: poltronas, mesas, geladeira, um som na sala. Não tem uma TV, um livro, um disco sequer. Nada nas paredes além de um relógio redondo na sala e um calendário quadrado na cozinha. 

Eu acordo, tomo banho, faço a barba, visto calça, camisa, calço tênis. Desço uma escadinha interna que conduz à garagem. Entro no carro, sento, ligo a ignição e sinto com prazer aquele ronco profundo, possante, prometendo motor em ordem e tanque cheio. Saio dirigindo devagar pelas ruazinhas tranquilas.

Aonde vou? Não sei. Não é para o trabalho. Meu trabalho é alguma coisa que me faz passar semanas a fio longe dali; mas quando volto, volto para aquela casinha silenciosa, as ruas, os gramados. Parece uma cidade americana ou européia, mas pode ser uma daquelas cidades históricas mineiras, ou da serra gaúcha. 

Vou ao supermercado, ao boliche, ao cinema. Às vezes vou à noite para uma boate, bebo cerveja com alguma garota, dançamos, vamos para um quarto dos fundos.

Tenho dinheiro no Banco que daria para me manter por dois ou três anos, se parasse de trabalhar. Não tenho família nem amigos. Meus vizinhos me acenam e sorriem de longe, nunca entraram na minha casa nem eu na deles. 

À noite rego as plantas, faço pequenos consertos. Ou levo uma espreguiçadeira para o gramado do quintal, abro uma cerveja, fico sentindo a brisa, olhando as estrelas, bebendo devagar, sem pensar, sem lembrar, sem imaginar coisa alguma.

É uma vida vazia, uma vida sem alegria, sem prazer? Talvez seja, mas é uma vida que nunca tive nem terei, uma vida parecida com uma foto de revista, algo com cores mas sem som nem movimento. Uma vida que só o pensar nela me repousa, me descansa de mim mesmo. Como aquelas pessoas que para adormecer imaginam o fundo de um lago escuro, eu me imagino nessa vida sem gente, sem afetos, sem emoções, sem perigos, sem vitórias, sem projetos e sem medos, e o fato de ter esse lugar para onde ir de vez em quando chega a me repousar desta carga pesada de ser quem sou.





sexta-feira, 20 de março de 2015

3767) "Feitiço do Tempo" (21.3.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua da Alfândega com Rua 1º. de Março, pertinho do CCBB. (Após a sessão, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida, e estarei presente sempre que possível, o que não é o caso de hoje.) Comentarei aqui os filmes escolhidos, e o leitor fora do Rio pode encontrar os filmes nas locadoras e na Internet, caso se interesse.

Hoje será exibido Feitiço do Tempo (“Groundhog Day”) de Harold Ramis (1993). A premissa fantástica (há uma só) do filme é que o personagem de Bill Murray fica preso num único dia, o Dia da Marmota (“groundhog”), quando nos EUA se costuma deduzir a duração do inverno em função do comportamento de uma marmota em sua toca. Murray é Phil, um repórter de TV meio cafajeste que vai cobrir essa data folclórica numa cidadezinha, acompanhado da produtora Rita (Andie MacDowell) e sua equipe. Phil quer comer Rita, e ela não o suporta. Uma nevasca os deixa presos na cidade, sem poder sair. E quando Phil acorda no hotel, na manhã seguinte, descobre que o Dia da Marmota está se repetindo, tintim por tintim: mesmos diálogos, mesmos gestos, mesmos pequenos acidentes.

O choque inicial o desorienta, mas quando dorme de novo tudo se repete.  Phil leva algum tempo para perceber que está preso num “loop” temporal, como um disco enganchado. A premissa do roteiro de Danny Rubin não é explicada, mas, como fica clara desde logo, o espectador se concentra em ver de que maneira Phil irá reagir diante das dezenas de pequenos episódios daquele dia eternamente reprisado, que aos poucos ele começa a saber de cor.


Groundhog Day se baseia numa única premissa fantástica para desenvolver complexos padrões de repetições e variantes; uma técnica de seriados como Twilight Zone e outros. O filme tem um elenco simpático e uma narrativa bem editada (quanto mais o espectador vai se familiarizando com os fatos mais rápida ela se torna). Talvez sua virtude principal seja algo que filmes fantásticos deste tipo nem sempre fazem: ele examina todas (em termos, claro) as consequências possíveis da premissa principal, todas as possibilidades do que poderia acontecer a um personagem numa situação como aquela. Como acontece com tantos bons romances de ficção científica, os roteiristas (Ramis e Rubin) se divertem em imaginar e em sugerir ao espectador uma infinita ramificação de vidas possíveis para aquele personagem, naquele mundo em que ele é o único que já sabe o que vai acontecer mas está mais prisioneiro do que todos os outros.




3766) Coco cheio de sangue (20.3.2015)



Uma história irreal com uma base realista parece ser uma espécie de “default” do fantástico contemporâneo, de Julio Cortázar a Stephen King, e de Italo Calvino a Ray Bradbury. O chamado realismo mágico latino-americano tinha essa base realista muito forte. O problema é que para os leitores norte-americanos ou europeus a própria base realista soava exótica, era surreal, era surpreendente – o que dava ao gênero uma aura difusa e onipresente de fantasia. Mas não era essa a intenção de autores como Garcia Márquez ou Juan Rulfo, para quem era tão importante mostrar a panela de sopa fumegando no fogão quanto o fantasma do antigo dono da casa.

Inventar avalistas para autenticar a procedência de fatos fantásticos é uma tática antiga.  É como se dá com as lendas urbanas.  Ninguém diz: “Um papa-figo está sendo visto na cidade”. Diz: “Uma amiga de minha irmã viu um papa-figo na rua dela”. É preciso, num esforço de verossimilhança, atribuir a visão do fato fantástico a uma pessoa real, de existência inquestionável.

Mia Couto começa seu conto “Pranto de coqueiro” (1994) assim: “Foi evento que saiu no jornal da Nação, oficial e autenticado. O alvoroço dos coqueirais de Inhambane mereceu título e honrosas colunas. Tudo começou quando, sentado na marginal de Inhambane, meu amigo Suleimane Ibraímo partiu a casca de um coco. Pois de dentro do fruto não jorrou a habitual água-doce mas sangue. Exatamesmo: sangue, certificado e indiscutível sangue. Mas não foi o único pasmo do assunto. Do fruto brotou ainda humana voz em choros e lamentos.”

Logo nas primeiras linhas nos deparamos com um fato fantástico (o coco cheio de sangue, e de vozes), mas para preparar essa intromissão do fantástico temos uma narração informativa, citando pessoas e lugares, além de referências insistentes à imprensa, ao fato de que tudo aquilo é “oficial e autenticado”, de que o fato é “certificado e indiscutível”.  Mesmo exibindo as costumeiras invenções verbais de Mia Couto (“exatamesmo”), é um texto propositalmente convencional, que narra a ação por via indireta.

Esta é uma pequena variante de um dos artifícios mais antigos do gênero, a “história contada”, tão querida dos narradores de Henry James, Machado, Conan Doyle. Na história-moldura, um grupo de homens está reunido e um deles conta uma história inacreditável. O narrador da história-moldura, dentro da qual a história inverossímil é contada, se exime de qualquer responsabilidade, pois está apenas reproduzindo o que ouviu. Hoje, usa-se citar jornais, TV, websaites, tudo o que, sob a aparência de confiabilidade, pode servir de aval a qualquer história impossível.


quinta-feira, 19 de março de 2015

3765) Bob Dylan para um só (19.3.2015)



Imagine um superstar do rock como Bob Dylan, subindo com sua banda num palco e fazendo um show para uma platéia de – dez mil, vinte mil, cinquenta mil pessoas?  Não: de uma pessoa só. Não é delírio: estou assistindo um clip do show agora (aqui: http://en.experimentensam.com/bob-dylan) e matutando sobre o lado pitoresco do capitalismo. (Digam o que quiserem do capitalismo, mas ele é tão divertido, pelo menos pra quem tem capital, quanto um baile de carnaval no Clube Monte Líbano nos anos 1950.)

 

O show faz parte do projeto Experiment Ensam (“Experimente Só”), financiado por um grupo sueco de apostas (que deve ter dinheiro sobrando, dá pra perceber). A filosofia por trás do projeto (está tudo lá no saite) é que muitas das nossas experiências são comunais, só podem ser fruídas plenamente quando estamos acompanhados, ou quando pelo menos olhamos em redor e sabemos que outras pessoas estão sentindo aquilo que a gente sente. Então, o projeto produz situações coletivas e escolhe ou sorteia alguém para ser o único usuário durante uma noite.

 

Fredrik (um sueco fã de Dylan) diz que uma das coisas mais divertidas nos shows dele é tentar identificar as canções, e tem razão. Dylan é famoso por modificar o tom, o andamento, o ritmo, os arranjos. Já vi 4 shows dele, todos no Rio, e muitas vezes a gente só identifica a música quando ele chega ao primeiro refrão. (Tentar reconhecer pelos versos é igualmente difícil: a dicção dele é pior do que letra de médico.) “O que é isso? Será ‘Changing of the Guards’ em ritmo de reggae?”.  E esse prazer (diz Fredrik) só é possível quando se está com amigos, inclusive após o show: “Você viu o solo de gaita na música tal?...”

 

Num teatro com uma única poltrona ocupada, Dylan cantou músicas de Buddy Holly, Fats Domino, etc. – uma escolha correta. Se eu fosse fazer um show assim, ao invés de cantar os “grandes sucessos obrigatórios” ficaria mais à vontade cantando as músicas que mais gosto, e que ninguém nunca me pede. Fredrik aplaude no silêncio após a música, e a certa altura grita uma frase de incentivo que arranca risadas de Dylan e dos músicos. Diz ele, depois: “Na hora, foi uma das experiências mais intensas da minha vida; depois, no entanto, eu fico meio triste por não ter podido compartilhar com ninguém”.

 
Outros experimentos levam uma pessoa sozinha para um restaurante e depois uma boate, para um parque de diversões, para um show de comédia stand-up. É uma dessas sacadas publicitárias baseadas em idéias curiosas e muito dinheiro. (Aliás, não consegui saber quanto pagaram a Dylan pelo show, nem se ele teve a hora-e-meia de duração habitual.)


quarta-feira, 18 de março de 2015

3764) "Jimi Hendrix por ele mesmo" (18.3.2015)



Ele chegou a ser considerado, pela hiperbólica imprensa roqueira, como o maior guitarrista vivo do rock, o maior guitarrista de todos os tempos e “o homem que nunca tocou uma nota errada”.  Exagero, é claro, fórmulas sem sentido. Toda avaliação estética é qualitativa, subjetiva, impossível de quantificar, medir e organizar num ranking de pontuação.  O próprio Jimi, quando ouvia essas coisas, dava uma risada meio rouca.

O livro Jimi Hendrix por ele mesmo (Ed. Zahar, 2014, tradução de Ivan Weisz Kuck) é uma compilação de declarações de Hendrix em primeira pessoa: entrevistas (jornal, revista, TV, rádio), textos manuscritos, diários, cadernos de anotações. Os organizadores intervêm de vez em quando, com notas de poucas linhas para situar certos depoimentos no contexto de algo que estava acontecendo.

Hendrix serviu de exemplo para muita gente de como alguém podia ser um garoto-problema (fugiu de casa, foi expulso da escola) e ao mesmo tempo não ser um criminoso, não ser “do Mal”, como se diz. Pelo que ele fala, não era nada do Mal, apenas queria trabalhar com o que gostava (e só gostava de uma coisa: guitarra), usar cabelo extravagante, roupa extravagante. Quando voltou famoso a Seattle e recebeu as chaves da cidade, disse: “As únicas chaves que eu esperava ver nessa cidade eram as da cadeia”.

Talentoso e intuitivo, Hendrix não é um pensador articulado, não tem a lógica brechtiana e meio absurdista de Bob Dylan, nem o espírito grouchomarxista de John Lennon. É um rapaz que vive para a música; grande parte dos seus depoimentos é tentando explicar as dificuldades de gravação ou masterização de um disco, porque buscavam efeitos que os técnicos desconheciam. Ele, que despontou para o sucesso no Reino Unido, detestava os técnicos de estúdio dos EUA, preferia os ingleses: “Os engenheiros lá são mais criativos. Fazem coisas fantásticas, que lembram até a forma como lutaram na Segunda Guerra Mundial. É tudo muito positivo, o clima, a engenharia, a coisa toda. Lá, estar com um engenheiro é estar diante de um ser humano. É estar com alguém que está fazendo seu trabalho. Aqui na América, os engenheiros não estão nem aí para você. São tão máquinas quanto os gravadores com que trabalham. Dá pra sentir que falta o ser humano, que o estúdio só está interessado na conta, nos 123 dólares por hora”.

São comentários sobre as canções, queixas do cansaço das turnês, reclamações ou elogios quanto ao som fornecido num show. Protestos hippies de paz e amor um tanto pró-forma, de alguém que tinha uma única idéia fixa: música. Os quatro últimos anos dos 27 que viveu foram uma montanha russa que está bem captada nestes fragmentos.




segunda-feira, 16 de março de 2015

3763) "O Trovador" (17.3.2015)



Uma das histórias mais mal contadas do século 20 é a renúncia do Rei Edward VIII da Grã-Bretanha porque queria casar com Wallis Simpson, uma norte-americana divorciada e (diziam os lordes ingleses) promíscua demais para ser rainha da Inglaterra. O Rei abdicou do trono, foi viver com ela e (diz a galera que não perdoa) foram infelizes para sempre.

Uma das palavras mais misteriosas da literatura é “noigandres”, que aparece num poema do século 12 escrito pelo trovador provençal Arnaut Daniel, e cujo significado ninguém sabia. Depois de intermináveis discussões, há hoje um certo consenso de que a palavra na verdade são duas, “enoi gandres”, significando “antídoto contra o tédio” (já escrevi a respeito, aqui: http://tinyurl.com/kqqlzy6).

Pegando estas duas pontas tão distantes (e mais algumas), Rodrigo Garcia Lopes escreveu um romance policial ambientado em Londrina nos anos 1930, quando a cidade do norte do Paraná estava vivendo um “boom” econômico, produzindo café, atraindo migrantes, devastando florestas de madeira de lei, fazendo fortunas. Lord Lovat, um dos sócios ingleses da operação, vem da Inglaterra para investigar acontecimentos estranhos na sua Companhia, e traz consigo Adam Blake, poliglota e tradutor, para ajudá-lo a lidar com japoneses, judeus, alemães, russos, etc.  Começa então uma intriga que envolve mortes misteriosas cometidas por um assassino que se intitula O Trovador, numa trama com ramificações que vão até a Inglaterra do Rei Edward e a Alemanha nazista.

Rodrigo Garcia Lopes é tradutor (Rimbaud, Whitman, Apollinaire), compositor, co-editor da revista literária “Coyote”, poeta com um trabalho de vívida imaginação verbal e controle linguístico, que tem interfaces com a poesia “beat” de Wiliam Burroughs e Allen Ginsberg. O Trovador (Ed. Record, 2014) é um romance policial de narrativa clássica, retrato de época da colonização do Paraná, cheio de referências literárias que fazem parte essencial da história (em vez de serem apenas piscadelas para os eruditos). A chegada do detetive Blake a Londrina me lembrou, por mais de um motivo, a chegada do Blake interpretado por Johnny Depp àquela cidadezinha de faroeste no início de Dead Man de Jim Jarmusch.

A reconstituição de época é verossímil, sem sobrecarregar a narrativa com longos nacos de pesquisa. Personagens fictícios e reais (Lord Lovat, Churchill, Elias Levy) se misturam numa narrativa com mistério detetivesco, ação e retrato histórico na medida certa. Não são frequentes os casos de autor igualmente seguro na poesia e no romance. R. G. Lopes, mais ousado no verso, demonstra na prosa segurança narrativa e domínio da estrutura do gênero.




sábado, 14 de março de 2015

3762) Fora da foto (15.3.2015)



Uma vez eu estava acompanhando uma filmagem feita por uma daquelas equipes de profissionais Série B, calejados e tarimbados. Foram entrevistar um fazendeiro. No fim da entrevista, o diretor de fotografia pediu a ele que posasse, diante da casa da fazenda.  O sujeito postou-se onde lhe pediram, aí o fotógrafo disse: “Doutor, erga o braço e aponte pro horizonte.”  O cara obedeceu, e foi fotografado. Depois, de volta na kombi, perguntei por quê. E o fotógrafo disse: “É pra dar a sensação de que fora da foto também tem coisa.”

Construir cenografias para o cinema é caro que é danado, de modo que qualquer estúdio aprendeu desde cedo (desde o cinema mudo) a construir apenas a parte que vai ser mostrada pela câmera.  Ruas inteiras de casas que só têm a fachada, de madeira, escorada por trás. Pra que construir casas completas, se a câmera só vai mostrar o lado de fora?  Diretores de cinema desde cedo se acostumaram a minimizar custos com o expediente simples de desenhar um “storyboard”, escolher o ângulo da câmera, e construir um cenário contendo exclusivamente o que a câmera vai mostrar daquela posição. (O problema é que depois não pode ter uma idéia melhor e mudar a posição da câmera – vai ter que ficar sendo aquela mesmo.)

A literatura e o cinema vivem disso: de nos sugerir o tempo todo que fora da foto “também tem coisa”.  Induzir o espectador/leitor a acreditar que o que não está sendo mostrado pelo autor também existe. Às vezes basta um ruído. Uma coisa é mostrar a sala de um apartamento silencioso e um casal conversando. Outra coisa é a mesma sala, o mesmo casal, a mesma conversa, e os sons da rua entrando pela janela aberta: buzinas, vozes, latido de cachorro, briga de vizinhos, música, o caminhão do gás com sua musiquinha, o vassoureiro com seu pregão...

Em seu ensaio clássico “A Simples Arte do Crime”, Raymond Chandler diz que considera o romance policial inglês mais sólido, mais bem escrito, do que o norte-americano, e explica: “Há uma sensação mais forte de ambiente, como se a mansão de Cheesecake Manor existisse de fato, e não apenas a parte mostrada pela câmara.”  A metáfora cenográfica de Chandler explica bem a sensação de incompletude que temos com tantos romances, tantos filmes. Na verdade não sentimos falta da paisagem de fora da foto, mas de uma realidade própria.  Muitas histórias dão a impressão de que não existiam antes do livro começar a ser narrado. Existe só a foto, só o que está sendo dito. Naquele mundo nada mais aconteceu senão o que está sendo contado.  Isto pode até ser empregado de propósito, para efeito literário, mas não se pode negar o vigor de uma literatura que nos dá a sensação de que enquanto estamos lendo o que acontece no lugar A, tem outras coisas igualmente importantes acontecendo em B e C.




sexta-feira, 13 de março de 2015

3761) "Os Inocentes" (14.3.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua da Alfândega com Rua 1º. de Março, pertinho do CCBB. (Após a sessão, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida, e estarei presente sempre que possível, o que não é o caso desta estréia.) Pretendo comentar aqui os filmes escolhidos, e o leitor fora do Rio pode encontrar os filmes nas locadoras e na Internet, caso se interesse.

O filme de abertura, hoje, será Os Inocentes (“The Innocents”, 1961) de Jack Clayton, provavelmente o melhor filme do diretor. É um daqueles clássicos filmes de terror em preto e branco, explorando uma fotografia cheia de claro-escuro e os cenários cheios de mistério de uma enorme mansão. São filmes mais elaborados e mais sutis do que a produção normal de terror da época, de produtoras como a Hammer Films (inglesa) e AIP (norte-americana), de orçamento mediano, feitos meio às pressas. O filme de Clayton é uma produção caprichada dirigida por um perfeccionista.

O filme é adaptado do romance Outra Volta do Parafuso (1898) de Henry James, história de uma governanta que vai morar numa mansão no campo para cuidar de um casal de crianças. A mansão é assombrada pelas aparições de um casal de ex-criados, que quando trabalharam ali viviam muito próximos às crianças e agora parecem voltar do túmulo para se apossar delas. A governanta tenta salvar as crianças desse perigo – e algumas teorias dizem que tudo aquilo é um delírio dela própria.

O livro de James é uma das melhores ilustrações da teoria do Fantástico proposta por Tzvetan Todorov em sua Introdução à Literatura Fantástica (1970). Diz Todorov que o Fantástico é uma zona indefinida entre o Estranho (histórias de fatos aparentemente sobrenaturais, mas que no fim recebem explicações realistas) e o Maravilhoso (histórias em que tudo está claramente situado num mundo sobrenatural qualquer). Histórias fantásticas (diz ele) são aquela que se concluem sem que o autor “bata o martelo” com uma explicação clara, deixando no ar a dúvida: aquilo que aconteceu foi sobrenatural ou não?

Os Inocentes é um dos grandes filmes de terror atmosférico, onde existe pouca ou nenhuma violência física, mas tudo é impregnado de uma aura de ameaça, de maldade, de corrupção.  Disse James de sua história: “Em última análise, qual a sensação que eu tinha de transmitir? A sensação de que esse casal fantasma seria capaz, como se diz, de tudo – ou seja, de exercer, com respeito às crianças, a pior ação a que as pequenas vítimas, tão sugestionáveis, pudessem estar sujeitas.”




quinta-feira, 12 de março de 2015

3760) Falar certo errado (13.3.2015)



Fui ao salão onde corto o cabelo e perguntei se tinha sido feriado na véspera, pois o salão não abriu. O barbeiro respondeu: “Uma das meninas que trabalha aqui o pai dela morreu.”  

Eu entendi, embora vendo a frase escrita pareça haver algo de errado nela.  A comunicação falada tem uma sintaxe mais frouxa, mais permissiva do que a escrita, porque tem a vantagem de reforços como mudança de tom de voz, pausas, expressões faciais, gestos...  

Ele poderia ter dito: “Morreu o pai de uma das meninas que trabalham aqui.”  Seria mais gramatical. Mas do modo que disse, não tive nenhuma dúvida. “Uma das meninas que trabalha aqui---“ houve então uma pequena pausa, para que eu guardasse esse “sujeito” da frase, e depois o complemento: “O pai dela morreu.”  

Houve algum engano? Alguma dúvida, algum ruído na comunicação?  De jeito nenhum. Por mim, comunicação 100%.

Raymond Queneau já fez algumas tentativas quixotescas de mudança no francês, que é uma das línguas mais artríticas do mundo apesar da beleza.  O francês é cheio de consoantes mudas, vogais mudas, uma porção de cacoetes de sintaxe.  

No seu livro Bâtons, Chiffres et Lettres (1952), ele fala no “chinook”, um idioma de índios americanos. Nele, segundo Queneau, começa-se dizendo as indicações gramaticais (os morfemas) e depois os dados concretos (os semantemas). Uma frase como “Tua prima ainda não viajou para a África”, em francês, sairia em chinook mais ou menos como “Ela ainda não viajou, tua prima, para a África”.

Queneau usou isso de brincadeira na frase inicial de seu romance Le Dimanche de la Vie (1952), que começa assim: “Ele não tinha dúvidas de que quando passava diante da loja dela ela o observava, a balconista, o soldado Brû.”  

A organização dessa frase é chinookiana, e é uma tática de Queneau para dar um pequeno susto no leitor, mantê-lo acordado. Na mesma página um personagem diz: “Le vlá” (=le voilà), porque é assim que se pronuncia, mas nenhum outro francês ousaria escrever assim nos anos 1950.

A língua falada conta com muitos recursos paralelos (faciais, sonoros, etc.), e pode se permitir uma aparente imprecisão que seria intolerável na forma escrita, a qual geralmente depende só das palavras para dizer algo.  

Daí que, quando escrevemos um romance, muitas vezes os diálogos, apesar de inteligentes e expressivos, são escritos em linguagem escrita, nada guardam das lacunas, das repetições, dos aparentes “non sequiturs” da linguagem falada. 

É muito difícil usar a linguagem escrita para dar a impressão de que aquilo foi falado. Não é só uma questão de botar gírias ou termos coloquiais, é a própria estrutura sintática do que está sendo dito.






3759) Onde foi que eu vi (12.3.2015)



(Oscarito)

Para um crítico ou historiador das artes narrativas existe sempre uma pergunta que pode ser aplicada a qualquer tipo de criação: Quem foi o primeiro que fez isto?  O crítico sabe que um filme ou um livro é apenas um fotograma (rico de informações, é claro) de um filme mais longo, onde aquela idéia sofrerá suas próximas e sucessivas mutações. Aquela obra é o instantâneo atual daquela idéia. Mas o espectador (leitor, fã, etc.) tem uma pergunta diferente, quando ele pensa em todas as histórias que já foram contadas.  Ele pensa: Onde foi que eu vi isso pela primeira vez, e minha alma nasceu, ou nasceu de novo?

Leitores muitas vezes têm suas epifanias mal acompanhados. Quando ele lê uma das grandes cenas da literatura, que encanta a humanidade há milênios, vai ler numa versão contemporânea, mal traduzida ainda por cima, mas vai ser uma epifania do mesmo jeito. A primeira vez em que li sobre o jardim das veredas que se bifurcam foi num romance de F. Richard-Bessière aos dez anos. Fiquei pronto para conceber o espaçotempo como os fios de uma tapeçaria que não enxergamos por inteiro. Sabemos apenas que nosso fio vai em tal e tal direção, muda de cor aqui e ali, e que se isso não acontecesse o desenho final ficaria maculado ou incompleto.

Onde foi que eu vi minha primeira máquina do tempo?  Foi no filme de George Pal, e sem ele eu não teria ido atrás de um escritor chamado Wells, que eu na verdade pensava ser um ator de cinema que tinha inventado uma invasão de discos voadores num programa de rádio.  Qual foi a primeira vez em que eu vi uma mulher nua no cinema? Acho que foi uma vez no cine São José de Campina Grande (que está em processo de restauração, salvou-se uma alma!). Eu tinha uns nove ou dez anos.  Tia Adiza me levou, como fazia quando era à noite, para ver uma chanchada qualquer com Oscarito, Zé Trindade, Ankito... aquela turma. Antes do filme, entrou um trailer onde aparecia (em preto e branco, anos 1950) uma dançarina usando o que uma rainha de bateria de Escola de Samba usa em 2015.  Um cronoclasma, na terminologia de John Wyndham.

Na volta, após o filme, vínhamos a pé pelo balde do Açude Novo e alguém comentou: “Que absurdo!”, com minha tia. “Sim, é um absurdo, passar uma coisa daquela num filme que as crianças vêm ver,” disse Tia, com luterana convicção. Eu estava ansioso para botar alguma coisa pra fora e tentei concordar com ela: “Eu, pelo menos, venho sempre que posso”.  A ousadia masculina dessa frase, aliás absurda nas circunstâncias “presentes”, me sobressaltou. Eu pensei baixinho: “Quem vê diz que tu pode vir sozinho.”  E respondi, mais baixo ainda: “Um dia eu venho, e aí vocês vão ver.”




terça-feira, 10 de março de 2015

3758) Caça aos clichês (11.3.2015)



Lendo uma entrevista do jornalista Sérgio Augusto no suplemento Cândido (Curitiba-PR), li um parágrafo que me alegrou e me constrangeu, quando ele fala do uso insuportável de clichês nas matérias de jornal e revista. Diz ele:

“Para ganhar tempo, paro de ler de imediato qualquer texto com clichês e expressões que abomino.  De imediato, mesmo, ainda que o assunto me esteja interessando. É minha forma de protestar em silêncio contra o insulto que a meu ver representam coisas do tipo ‘resgatar a memória’, ‘conquistar corações e mentes’, ‘ícone’ disso e daquilo, ‘emblemático’, e por aí vai, o glossário não para de crescer. Com a internet e seu vale-tudo vernacular, sintático e estilístico, esse descalabro atingiu culminâncias inéditas. Há blogs que, só de olhar, me provocam engulhos, com seus pontos de exclamação torrenciais, suas palavras ‘gritadas’ em caixa alta, seu gosto por hipérboles do tipo ‘o máximo’, ‘genial’, ‘imperdível’.”

Fiquei alegre porque concordo, e constrangido porque uso alguma dessas besteiras. São as filhas da pressa e da palavra impressa. Vemos uma frase repetida dia e noite, noite e dia, em jornal, em livro, em TV, em rádio, em papos ao vivo... Aquilo se instala em nossa memória por mero peso estatístico. Quando tentamos dizer alguma coisa parecida, nossa memória age como um Google e nos traz “a mais frequente, a mais acessada”. Aí a gente escreve coisas do tipo: “O novo livro de Fulano de Tal me deu um prazer inenarrável”.

O clichê nunca é uma simplificação, é sempre uma enfeitação de uma idéia.  Como tantas enfeitações, no momento em que aparece produz um susto-de-novidade que pode passar como uma comunicação mais intensa.  O leitor percebe aquela expressão que nunca viu na vida: “Resgatar a memória”. Que coisa profunda: a nossa memória, a nossa História foi sequestrada, e estamos invadindo o território inimigo, pegando-a de volta na marra, como é nosso direito, etc.  Depois da décima vez, no entanto (e pra isso bastam alguns meses depois da primeira vez), quem aguenta mais ouvir o clichê? Deixou de dizer. Virou uma expressão coringa, sem informação própria, e que está ali meio que guardando lugar para a próxima expressão criativa que alguém vier a produzir.

O clichê é como aquele cigarro de mentira dos caras que estão tentando deixar de fumar.  Eles ficam segurando, levando à boca, aspirando sem fumaça, botando no cinzeiro ou na beirada da mesa...  O objeto cumpre todo o ritual de movimentos de um cigarro, mas não tem essência de cigarro.  Não transmite informação nicotínica, assim como o clichê não transmite mais nenhuma informação verbal nova.



segunda-feira, 9 de março de 2015

3757) Racismo e literatura (10.3.2015)




(Nalo Hopkinson e Samuel R. Delany)


Num artigo de 1998 sobre “Racismo e Ficção Científica” (aqui: http://tinyurl.com/corglp), Samuel R. Delany comentou, entre outras coisas, o que ele chama de “racismo de boas intenções”. Ele afirma, muito tranquilo, que o racismo não é necessariamente um impulso de maldade: 

“O racismo é um sistema. Como tal, ele é alimentado tanto pelo acaso quanto por intenções hostis e até mesmo boas intenções.  Ele é tudo que sistematicamente acostuma  as pessoas, de todas as cores, a se sentirem confortáveis com o isolamento e a segregação das raças, num nível visual, social ou econômico – o que por sua vezes tanto apoia quanto é apoiado por uma discriminação sócio-econômica.”

Delany, que é negro, conta o episódio de sua ida a uma convenção de FC onde as sessões de autógrafos eram realizadas com duplas de autores, durante uma hora, para dar chance a todos. A autora indicada para autografar junto com ele nesse dia foi Nalo Hopkinson, uma jovem autora negra, ex-aluna e amiga dele.  

Delany depois observou aos organizadores que era amigo e ex-professor de dezenas de outros autores. Por que escolheram Hopkinson para ficar com ele na mesa?  E o pessoal, com toda simpatia, disse: “Bem, achamos que vocês dois juntos se sentiriam mais à vontade”.

A boa intenção da rapaziada acabou reproduzindo um isolamento do tipo “negro anda com negro, branco anda com branco”.  

Delany diz que várias vezes por ano é chamado para mesas-redondas de FC ao lado de Octavia Butler, outra escritora negra, que ele admira, mas que faz uma literatura completamente diferente da literatura dele.  Por outro lado, ele se considera muito identificado com a literatura dos cyberpunks; Wiliam Gibson fez um prefácio elogioso à reedição de seu romance Dhalgren, declarou ter sido influenciado por ele, etc., mas ele não é chamado para debater com os cyberpunks, que por uma certa coincidência são todos brancos (ou eram, na época do texto).  

Não: só o convidam para, junto a Octavia, ou a Nalo Hopkinson, ou a Tananarive Due, falar sobre “a ficção científica afro-americana”, uma coisa, diz ele, “que, em grande parte, existe apenas porque recebeu um nome”.

“Tudo que essa comparação indica,” diz ele, “é a força pura e não-adulterada do discurso de raça em nosso país, comparado a qualquer outra. Numa sociedade como a nossa, o discurso de raça está tão envolvido e misturado com o discurso do racismo que eu desafio qualquer pessoa a conseguir fazer uma distinção clara e precisa entre os dois. (…) O racismo consiste também em acostumar as pessoas a se familiarizar com certas configurações raciais, de modo a que se sintam desconfortáveis com outras.”




domingo, 8 de março de 2015

3756) Quatro tábuas e uma paixão (8.3.2015)



Uma frase muito citada por aí, e atribuída a Shakespeare, é a que define o teatro como “quatro tábuas e uma paixão”.  Ou seja, para se fazer teatro precisa-se apenas de um espaço mínimo, para encenar em cima dele uma paixão humana representada por atores.  É uma frase que equivale à famosa máxima de Glauber Rocha para fazer cinema, “uma câmara na mão e uma idéia na cabeça”.

Fui rastrear essa frase e, como sempre, descobri que a história é muito diferente. Pra começar, não é de Shakespeare; tudo indica que seja de Alexandre Dumas.  Num artigo publicado em 1883 a respeito de Dumas, William Ernest Henley cita o autor francês:

“’Tudo que eu quero,’ disse Dumas numa comparação memorável entre ele próprio e Victor Hugo, “são quatro cavaletes, quatro tábuas, dois atores e uma paixão’; e as suas peças são uma prova de que não falava mais que a verdade”.

Quatro cavaletes, com quatro tábuas deitadas por cima deles, fornecem um palco mínimo. Já vi alguns atores e músicos (não são todos, claro) dizerem que pra se apresentarem bem precisam estar acima do chão, nem que seja um palmo. Não por se acharem superiores, mas para terem melhor a sensação de um espaço diferenciado, o espaço da criação, que (na cabeça deles) precisa ser distinto do espaço da platéia.  Veja-se que Dumas lembra de incluir os “dois atores”, porque o ator é o núcleo do teatro, sem eles nenhuma “paixão” é possível.

O número de tábuas varia entre duas, três e quatro, nas outras referências que achei no Google.  Acabei achando até referências minhas, no tempo em que eu, indo de maria-vai-com-as-outras, atribuí a frase a Shakespeare.  Pelo que vi agora, acho que foi mesmo Dumas quem disse primeiro.

Quatro tábuas, dois atores, uma paixão.  Esta seria para mim a fórmula mais redonda para essa idéia, inclusive pela simetria geométrica que propõe, numa concentração de importância proporcional à diminuição de quantidade (4, 2, 1).

E a literatura, seria o que?  Eu respondo: um toco de lápis e um pedaço de papel.  Ninguém precisa de mais do que isso (e um cérebro, claro) para fazer boa literatura.  É possível fazer poesia com uma lata de spray e um muro, com uma lasca de carvão e uma parede.  Mas hoje tem romancistas que não conseguem escrever sem ser num notebook Mac, “por causa dos comandos, dos recursos, da interface gráfica”, etc.  É meio constrangedor perceber que, se a humanidade regredir a um estágio pré-computador (o que não é impossível, no caso de uma catástrofe econômico-ecológica em escala mundial) muitos escritores vão deixar de sê-lo, mesmo que estejam cercados por pilhas enormes de cadernos e de canetas esferográficas.