sábado, 4 de outubro de 2014

3621) Salvar o mundo (4.10.2014)




(ilustração: Klaus Pichler)


Faz uns 25 anos que não escuto a frase “Deixa de ser besta, rapaz, você tá querendo salvar o mundo sozinho?”  Já ouvi muito e me ajudou a ponderar.  Não foi menino quem não sonhou em salvar o mundo, sozinho, saindo do banco aos 44 do segundo tempo, entrando, se atirando na primeira bola que vem e empurrando pra dentro o gol do título.  

Se eventos futuros o exigissem, eu aceitaria exércitos para cumprirem minhas ordens e multidões para me carregarem num andor. Já que a vida real se esforça para imitar os filmes de Cecil B. De Mille.

Um garoto de nove anos está lendo uma revista de FC em quadrinhos e descobre que um garoto de dez anos conseguiu meio casualmente detectar com seu aparelhinho de rádio montado em casa a frequência de onda que controla por sinais instantâneos a nave da frota que invadiu a Terra, o que permitiu ao exército construir em tempo recorde um potente transmissor e fazer tombar todas as espaçonaves bem longe, no Oceano Pacífico. 

Ao terminar de ler a palavra FIM, o garoto ergue os olhos para a parede e pensa: “Se ele pode, por que não eu?”  E assim começam, com uma fantasiazinha inofensiva, os grandes saltos da humanidade, as grandes quedas da humanidade.

Freud dizia que essa ficção popular sobre heróis e super-heróis era a ficção do Ego, projeção do que o leitor queria ser, do que queria que lhe acontecesse. Salvar o mundo é a fantasia recorrente nos pulp magazines, nos livrinhos de bolso, nas trilogias de fantasia e de space opera, nas novelas gráficas que fizeram upgrade em todo o panteão de heróis ingênuos dos “comics”.  

A ficção do Ego vai se ampliando com a idade, mas é uma mitologia, um espelho deformador, registrando algumas obsessões coletivas nossas.

O Fantástico parece se sentir mais em casa na ficção popular, que costuma ser essa “ficção do Ego”, do que na ficção “mainstream” praticada pelas cabeças pensantes de cada época (porque cada época tem um grupo que assim se intitula). 

A ficção popular é melodramática, exagerada, fala em salvar o mundo. A ficção pensante é cética, verossímil, fala em dar sentido à existência de um só indivíduo. São dois impulsos distantes, mas não contraditórios. 

Qualquer recurso de caráter realista pode ser absorvido pelas narrativas fantásticas, que não abrem mão da realidade; mas o realismo proíbe a si mesmo pegar material emprestado em troca.  Ele se torna um realismo pobre, criado pela exclusão de muita coisa, ao invés de um realismo abrangente de tudo, com um conceito de realidade que não tivesse problema em dialogar com o fantástico, que fosse capaz de conviver com o aleatório e de aceitar o aparentemente impossível.