quarta-feira, 1 de outubro de 2014

3619) O sucesso irritante (2.10.2014)



(Edição de "Lolita" na Turquia)


Vladimir Nabokov disse uma vez: “Conan Doyle  preferia ser conhecido como o autor de uma história de África, que achava bem melhor que o seu Sherlock Holmes”.  Deve estar se referindo ao romance A Tragédia do Korosko, um navio de europeus tomado como reféns por tuaregues revoltosos. Num programa de entrevistas na TV francesa (aqui: http://tinyurl.com/ozxtunu) ele diz isso respondendo a uma pergunta sobre o sucesso do romance Lolita (1965), se isso o deixava incomodado.  Disse que se incomodava mais com o fato de Lolita, que ele vê como uma pirralha muito desinteressada em sexo, ter sido transformada, pela ilustração e pela publicidade, numa modelo de pernas longas. 



Ele diz que a fenda da porta é a “brânquia mais importante da literatura”, já que é por ali que verdades são conhecidas, segredos são vazados, mistérios são desvendados. Diz que muitas das aparentes complicações de seus romances podem se tornar mais simples se encaradas como problemas de xadrez.  Mais do que enfrentar adversários, emboraele se diga capaz, de vez em quando, num torneio de clube, de fazer com que um campeão caia em sua armadilha, mas o que gosta mesmo é de criar aqueles problemas de revista: “As brancas dão mate em três lances.”  Segundo ele, especializou-se em problemas suicidas, aqueles em que as brancas obrigam as pretas a derrotá-las.



O terno, os óculos e o rosto grande o deixam às vezes parecido com Guimarães Rosa, enquanto disserta sobre espelhos, diz que gostaria de ser “um obscuro entomologista”, explica um xibolete de dicção para reconhecer um moscovita. “O castelo foi queimado por camponeses demasiado zelosos”, diz ele, lembrando como a fortuna do pai desmoronou. 



Perguntado sobre sua língua preferida, diz: “A língua dos meus antepassados ainda é a que me sinto mais à vontade. Mas nunca me arrependerei da minha metamorfose americana.”  A certa altura ele parece recitar uma frase, o entrevistador pergunta se ele está citando, ele diz que sim, e que é uma tradução “muito, muito boa”. (É, ninguém decora o nome de todos os seus tradutores.)


Cita suas leituras infanto-juvenis em inglês: Wells, Kipling, Shakespeare, a revista “The Boys on Paper”.  Nabokov, Jorge Luís Borges, Luís Buñuel, todos têm a mesma idade, talvez tenham lido certos autores ou certo tipo de livro na mesma época.  Nabokov era um fidalgo no exílio, o inglês que tinha foi afiado ao longo de uma fila de professoras e governantas.  Ele e Isaac Asimov (nascido em 1920) são dois russos de nascimento que tornaram-se autores de sucesso nos EUA escrevendo na língua dos anfitriões, e representando polos opostos da arte de escrever.



3618) Rubens F. Lucchetti (1.10.2014)



A pulp fiction tem autores invisíveis, que se multiplicam por toda parte. “Já cheguei a encontrar 15 títulos meus em uma banca, assinados por diversos autores,” diz Rubens Francisco Lucchetti, tão conhecido entre os fãs do Horror quanto Zé do Caixão. 



No Brasil não era comum, quando ele começou a carreira há 60 ou 70 anos, o escritor pulp que hoje está roteirizando quadrinhos, amanhã escrevendo uma novela de rádio, publicando um romance, reeditando contos antigos, metendo-se com cinema.  Nosso primeiro escritor de FC-de-gênero foi Jeronymo Monteiro.  “De gênero” por ser uma tentativa clara de reproduzir aqui as premissas da FC norte-americana, tentativa anunciada com entusiasmo de fã.  Com seu próprio nome e seus recursos, além do seu pseudônimo Ronnie Wells, ele foi um multimídia, na linguagem de hoje: radialista, editor, antologista, ficcionista, crítico... 



O ubíquo R. F. Lucchetti é um nome que eu cresci vendo por toda parte e lendo de vez em quando.  Não conheci sua obra tão bem quanto a de Jeronymo.  (Deste, eu tinha aos doze anos uma coleção das aventuras de Dick Peter com 9 volumes, achava que era completíssima.) Lucchetti atuava mais na literatura de horror, que sempre li menos que FC.  Na página de uma matéria recente sobre ele no Uol (aqui: http://bit.ly/1rx25m4) aparecem as capas de alguns livrinhos de bolso de terror, apenas alguns entre centenas e centenas de títulos. “Noite Diabólica – contos macabros” era um deles, cuja capa lembrei de cara.  Não lembro se foi ali que vi minha primeira referência sobre Ray Bradbury, um resumo comentado de sua carreira, ilustrado por desenhos.



Não li os romances mais famosos de Lucchetti, que me parecem ser “O Crime da Gaiola Dourada” e “O Fantasma do Tio William”, mas devo ter lido dezenas dos seus terrores góticos, seus calabouços, seus zumbis, seus sacerdotes de cultos indizíveis, em livrinhos vendidos nas bancas há 50 anos, feitos em papel jornal, do tamanho de um folheto de cordel. Lucchetti, que tem 84 anos, pertence a um mercado editorial muito diferente do de hoje.


Ele diz que já publicou muita coisa com pseudônimo inglesado, para vender. (Achei “Brian Stockler” uma ótima idéia.)  Na Paraíba estivemos lembrando e homenageando o nosso Deodato Borges velho-de-guerra, o criador do “Flama”, que faleceu há pouco tempo.  Deodato enveredou pelo radialismo em Campina Grande como poderia ter enveredado pela “pulp fiction” se morasse em São Paulo.  Como enveredou, por esses e outros caminhos, o paraibano Péricles Leal, que foi do “Falcão Negro” às telenovelas.  Todos com a inquietude, a imaginação e as contas-a-pagar de todo autor de literatura popular.