sexta-feira, 1 de agosto de 2014

3566) O agente duplo (1.8.2014)



(túmulo de Kim Philby na Rússia)

Espiões duplos são um tema fascinante. Imagine só: o cara é um espião inglês, e mora em Moscou, disfarçado de adido de embaixada ou outra coisa assim. Um dia, sigilosamente, ele se oferece à URSS para entregar segredos britânicos, e é aceito. Ele começa a fazer esse jogo.  Mas a certa altura ele vai ao governo inglês e conta o que aconteceu: está trabalhando para os russos, que têm toda confiança nele... porque não se aproveitar disso? Ele ganha um aumento e, orientado pelo Serviço Srecreto britânico, passa a transmitir aos russos segredos falsos. Mais adiante, ele é descoberto pelos russos e forçado a confessar essa jogada. E têm uma idéia: por que não aproveitar a situação, dar mais uma reviravolta, e recomeçar tudo?  Os russos lhe dão um novo aumento, e ele passa a transmitir segredos verdadeiros da Inglaterra... O agente duplo ideal trabalha para os dois lados e não trabalha para nenhum. Só ele sabe a qual dos dois está de fato ajudando, e às vezes nem mesmo ele.

Um livro policial de Kyle Hunt, que li séculos atrás, tinha este ótimo título: “Quem mata torna a matar”. Eu diria que na espionagem, e na vida em geral, num sentido mais metafísico, quem mente torna a mentir. No momento em que o sujeito conta sua primeira mentira, e um raio não cai do céu reduzindo-o a pó de traque, ele percebe que é indestrutível, e aí mente de novo, e de novo, e de novo. Não me refiro a mentirinhas bobas, tipo ir beber com os amigos e dizer à esposa que jantou com o patrão. Falo de mentir para o Serviço Secreto da própria pátria. Quando nada acontece, o cara percebe que pode fazer aquilo impunemente, mesmo que suas chances de ser apanhado sejam sempre imprevisíveis.

Duas outras coisas sobre espiões. Já li um ensaio sobre espiões britânicos apontando o alto índice de homossexualidade entre eles. Segundo o autor do ensaio, ser gay no tempo da Guerra Fria não era brincadeira (vejam o que a Inglaterra fez com Alan Turing, pra dar só um exemplo). O jogo de máscaras, de duplicidades, de fingimento 24 horas por dia era algo a que um gay já estava acostumado, e para ser espião não requeria nenhum upgrade. Segunda coisa: um espião duplo, geralmente, tem um certo desprezo pela noção de pátria. Ele se liga em pessoas; é para com elas a pouca lealdade que tem. Frio, distanciado, brechtiano, embora afável e receptivo por fora, ele não tem o idealismo romântico do soldado de trincheiras, que julga defender uma bandeira, um hino, um ideal político. Mercenário mas humano, ele pode virar a casaca ao vento de um novo contexto pessoal; são assim alguns personagens de John Le Carré, Graham Greene e outros.