domingo, 27 de julho de 2014

3562) O momento poético (27.7.2014)



("A Grande Onda de Kanagawa", de Hokusai)

Em sua biografia do poeta japonês Matsuo Bashô, o mestre do haikai, Paulo Leminski transcreve este curto poeminha do mestre: “dia de finados / do jeito que estão / dedico as flores”. E comenta: 

“Na festa de Ulambamma, os japoneses homenageiam os mortos. Nesse dia, todos colhem flores para levar aos que já se foram. Bashô, também: é um budista, articulado com os ritos da tribo. No haikai, porém, a subversão súbita: as flores que vê, Bashô as oferece aos defuntos, sem tirá-las do pé. Uma afirmação de vida: um sim para a poesia.”

Olha que coisa mais bonita. Ele olha para as flores. Poderia arrancá-las e levá-las até os túmulos. Mas ele prefere deixar as flores vivas, unidas à sua planta de origem; prefere permitir que elas continuem vivendo mas, num gesto simbólico, dedicar a beleza e a vida delas aos mortos humanos, aos que já se foram. E ele deposita as flores, apenas metaforicamente, aos pés dos mortos queridos.

Isso é o gesto poético. E ele se equivale, de maneira antipodamente semelhante, ao gesto modernista e irreverente de Marcel Duchamp quando pegou um mictório de porcelana e o enviou a uma exposição de arte sob o título de “Fonte”. 

O que houve de artístico nesse gesto de Duchamp (que, infelizmente, produziu uma gigantesca bola-de-neve de mal-entendidos, porque cada sujeito preguiçoso julgou-se no direito de pegar qualquer objeto encontrado e chamá-lo de obra de arte)?  

Duchamp percebeu que um ingrediente essencial da arte é essa intenção, esse modo-de-ver, essa decisão íntima do artista projetando significado no gesto de depositar flores invisíveis ou de sagrar como arte um objeto banal.

Note-se que Bashô não se limitou a pensar no gesto de dedicação das flores: ele escreveu um haikai descrevendo esse gesto. O haikai substitui o gesto, de forma artisticamente satisfatória (pelo menos pra mim). Um gesto convencional (levar flores aos finados) tornou-se artístico quando não foi executado e foi substituído por uma obra de arte (o poema). 

No caso de Duchamp, a obra de arte (uma pintura, uma escultura, etc.) que alguém talvez esperasse dele não foi executada: foi substituída por um gesto banal, o de enviar alguma coisa. Dois fatos artísticos, um sendo o contrário do outro, e os dois se equivalendo.

A extrema sutileza de ambos passou despercebida não só pelos críticos que os combateram, como também pelos pseudo-discípulos que tentaram imitá-los. Porque do ponto de vista artístico um gesto assim só pode ser pensado uma vez, um momento poético assim pertence por inteiro a quem o concebeu, e não pode ser imitado ou transformado em gênero, em ideologia, em atitude. É arte porque é único. E morreu aí.