domingo, 16 de fevereiro de 2014

3424) Os começos de Lovecraft (16.2.2014)




(Ilustração: Abigail Larson)


A gente fala de vez em quando sobre “como começar um conto” (ou um romance), sempre de acordo com aquela idéia de que é preciso fisgar o leitor desde o início, impedir que ele pule adiante e vá ler outra coisa.  

É um conselho que se encontra em muitos manuais respeitáveis de escrita, com exemplos ilustres que volta e meia estou citando aqui; mas para mim é um típico recurso da pulp fiction, da ficção popular voltada para fatos insólitos e adrenalina turbinada. 

H. P. Lovecraft, o criador dos Mitos de Cthulhu, tem alguns exemplos bem típicos, recordados neste pequeno apanhado de D. T. Wynne (http://bit.ly/LIH3yY) sobre algumas aberturas famosas dos seus contos.

Lovecraft começa “O Horror de Dunwich” (1929) dizendo: 

“Quando um viajante que cruza a parte central de Massachusetts toma o caminho errado na encruzilhada da estrada de Aylesbury, pouco depois de Dean’s Corners, ele penetra numa região deserta e intrigante.”  

O conceito essencial da história é que o viajante mergulha no desconhecido sem o perceber, meramente por ter escolhido o lado errado numa bifurcação.  A obscuridade do destino é ressaltada pela precisão geográfica das coordenadas. Tudo é conhecido mapeado, tudo está sob controle, mas... se o cara pegar o desvio errado...

O começo de “The Descendant” (1938) é um dos mais impactantes que conheço: 

“Em Londres existe um homem que grita todas as vezes em que tocam os sinos das catedrais”.  

Mais uma vez o horror e o estranho vêm grudados como sanguessugas a um conceito relativo à ordem (os sinos das igrejas funcionam como relógio, como veículo de mensagens, etc.), trazendo ainda por cima a conotação religiosa.

Um dos seus contos mais famosos, “O Chamado de Cthulhu” (1928) começa com uma de suas frases clássicas de desdém pela Razão: 

“A coisa mais misericordiosa do mundo, creio eu, é o fato de a mente humana ser incapaz de correlacionar tudo quanto ela contém.”  

Para Lovecraft, vivemos num mundo absurdo e maligno, mas felizmente não o percebemos – porque só temos olhos para os fatozinhos banais da nossa vida diária.

Um dos meus favoritos é o começo de “O Inominável” (1939), onde o narrador diz: 

“Estávamos sentados sobre um arruinado túmulo do século 17, ao fim da tarde de um dia de outono no velho cemitério da cidade de Arkham, e estávamos especulando sobre o Inominável”.  

Aqui está, mais do que o terror, o espírito antiquado e seiscentista do autor, e a revelação de seu temperamento. Ele era alguém que, num fim de tarde dourado e tranquilo, sentava-se ao lado de um amigo para remexer nas entranhas do Universo, e descobrir a fonte primordial do Estranho, do Bizarro, do Inesperado.