sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

3387) A caverna de Herzog (4.1.2014)



Werner Herzog levou uma miniequipe de filmagem às cavernas de Chauvet, descobertas em 1994 na França, com um dos maiores tesouros de pinturas rupestres do mundo. Bisões volumosos, ameaçadores. Rinocerontes com chifres longos e agudos. Cavalos superpostos em fila, com crinas, olhos, boca, tudo individualizado. Impressões da mão inteira de um indivíduo com um dedo torto. O desenho perturbador da genitália de uma mulher de pernas abertas, que se funde à imagem de um bisão, tudo isto gravado numa saliência fálica da pedra. Cavalos picasseanos pintados há milhares de anos e cobertos de riscos de unhas feitos por ursos, milhares de anos depois. Os “graffiti” mais antigos de Chauvet são de 32 mil anos atrás, e os cientistas veem hoje, lado a lado, imagens feitas por homens com milhares de anos de intervalo entre um e outro, numa parceria de obras de arte superpostas por cima do “abismo do tempo”, como comenta o diretor com sua voz rouca.

Em Chauvet, a equipe de Herzog fez uma visita inicial de uma hora, e depois de uma semana com quatro horas diárias. A caverna, que tem 400m de extensão, é fechada ao público; somente os cientistas têm acesso.  A equipe de filmagem anda pelo mesmo caminho percorrido pelos arqueólogos: uma passarela de metal alguns centímetros acima do chão, que avança caverna adentro, e foi construída nos primeiros anos de exploração para reduzir ao mínimo o contato físico dos raros visitantes com o chão e as paredes. É proibido tocar em qualquer coisa. A situação lembra o conto de Ray Bradbury, “Um som de trovão”, em que os viajantes-no-Tempo que voltam ao passado percorrem uma passarela idêntica, sem tocar em nada para não correr o risco de, com a morte de um simples inseto, desencadear o chamado “Efeito Borboleta” e influir no futuro.

A caverna dos sonhos esquecidos (2010) passou nos cinemas numa versão 3D que lamento não ter visto; dá para ver agora no YouTube (http://bit.ly/1eqXYi7), pelo menos para aguçar a vontade de ver o filme de verdade. Herzog, quando vira documentarista, mantém a alma e os recursos de um autor de ficção. As situações que escolhe em seus filmes são sempre inusitadas; ele as filma com simplicidade e riqueza de nuances, e os comentários verbais que superpõe às imagens são comentários de um escritor e pensador. A caverna dos sonhos esquecidos termina, bem ao seu estilo, com uma meditação sobre o futuro dos jacarés albinos criados nas águas quentes de uma usina nuclear, a poucos quilômetros da caverna. Os surrealistas de Breton não poderiam imaginar uma imagem mais poderosa sobre a sucessão dos reinos animais sobre a Natureza.

3386) "Dicionário do Nordeste" (3.1.2014)




Tenho aqui do lado um tijolaço com mais de 700 páginas, o Dicionário do Nordeste de Fred Navarro, autor do famoso Assim falava Lampião, um dicionário de termos nordestinos que é de certa forma o embrião deste.  O livro é editado pela CEPE (Companhia Editora de Pernambuco), e faz uma coleta impressionante de termos ligados ao Nordeste: geografia, culinária, cultura em geral, e, claro, a linguagem nordestinense. É um livro utilíssimo para presentear os amigos não-nordestinos que vivem nos perguntando o significado de palavras óbvias como guenzo, sulanca, quebra-queixo, bacafuzada, corrimboque, lamborada, xeleléu, califom, aboticar, berimbela...

Sou suspeito ou insuspeito para falar, porque escrevi a “Apresentação” do livro, onde desenvolvo outros raciocínios; mas queria me deter em alguns detalhes. O primeiro é o fato de que todo mundo tem o impulso de registrar aquela linguagem que sabemos pertencer apenas de maneira indireta ao português-brasileiro. Tenho dicionários de baianês, de cearense, da ilha (=Florianópolis)... Em toda região existe um glossário interno que funciona para os habitantes do lugar e que muitas vezes não é captado por um Aurélio ou um Houaiss. Daí a vontade de cada um fazer o seu dicionário. (Eu próprio venho montando um há décadas, mas agora só publico quando estiver maior do que o de Fred Navarro.)

Quanto à abrangência basta dizer que o livro registra, corretamente definidos, termos como “trezeano” e “raposeiro”. Ele se expande na direção da culinária anotando termos como molho baiano, laranjinha, mariola, mingau de cachorro... Em brincadeiras infantis há palavras como durim-pampam, peido de velha, bacondê, escorrega-bunda, barra-bandeira... Na flora, vejo ao acaso galinha-choca, caroá, fumo-bravo-do-ceará, mucuri, língua-de-vaca, dona-joana... Na fauna, há termos como percevejo-de-comércio, pitangá, lagarta-de-fogo, mutum-de-alagoas...

Um detalhe curioso é a grafia das palavras. A grande maioria pertence à cultura oral, não foi ainda crismada pelos gramáticos. As referências escritas são em geral de obras literárias, mas isto não adianta muito, porque como são palavras bravias cada autor escreve como lhe dá na telha. Isso nos desnorteia às vezes para achar um termo, que está redigido de uma maneira que não esperamos. Um aspecto positivo é a disposição do autor em registrar não apenas palavras, mas expressões idiomáticas, pequenos provérbios, modos de dizer. Duvido que num Caldas Aulete a gente encontre comer no centro, quem não pode com o pote não pega na rodilha, meter-se a cavalo do cão, fazer cerca-lourenço, mais vale estrada velha que vereda nova...