sábado, 31 de maio de 2014

3513) Shakespeare (31.5.2014)



Dizem que o maior tributo intelectual já prestado a Shakespeare foram os numerosos ensaios e livros do crítico Harold Bloom.  O Bardo completa 450 anos este ano, e uma boa homenagem a ele talvez fosse ler os livros de Bloom. O “pobrema” é que eu me veria afligido por um surto de escrúpulos ao quadrado, e me diria: “Nesse caso, que tal ler as dezenas de peças que você ainda não leu?”.  Porque eu conheço mais ou menos duas peças do bardo (Hamlet, Macbeth), li algumas outras e desconheço a enorme maioria.  Que direito tenho de dizer que conheço o autor? Pelo menos a ponto de distingui-lo de outros?

(Esta – incidentalmente – seria uma experiência limite, um teste: quem de nós identificaria qualquer parágrafo, colhido aleatoriamente, de um dos seus autores favoritos? Ninguém!  Ou melhor: diferente de zero, mas estatisticamente pouquíssimos.)

A pouca biografia que há de Shakespeare parece até uma coisa boa, porque quando penso nele não penso numa pessoa, penso num estilo. Nada sei sobre ele a não ser os poucos fatos que a imprensa compartilha.  A pessoa dele é para mim tão desfocada e transparente quanto a de Chaucer, Francis Bacon, Marlowe, meros nomes e (no caso dele) um estilo.  Diferente de outros que, por proximidade cultural talvez, sempre senti como pessoas e livro juntos, nenhum primeiro, nenhum depois: Cervantes e Camões.

Shakespeare é transparente, holográfico, uma mente que parece não ter deixado corpo atrás de si, ter trabalhado apenas a beleza e a clareza da linguagem. Ele pegava seus enredos de qualquer lugar: crônicas históricas, sagas, relatos de família, poemas orais guardados na memória. Em cima disso, o cidadão projetava um Raios-Gama verbal de extrema amplitude e implacável nitidez, algo que mesmo meio milênio depois raramente se consegue de vez em quando, quanto mais como ele, a cada folha.

Sua magia é a mesma de Camões: como se concebe que quinhentos anos depois ainda escrevam quase como ele?  A resposta é que ele procurou em si mesmo a linguagem mais maleável, mais flexível, mais carregada de variantes, com uma riqueza retórica capaz de produzir, quase que fala-a-fala (do ponto de vista dos atores) frases de belo teor e que desafiam o ator (e a direção) a escolher entre uma no meio de mil possibilidades de interpretação.

Dá a impressão de que poetas como Camões, Dante e Shakespeare, mesmo tendo um conhecimento respeitável das línguas do passado, estavam, de algum modo e não se sabe por que motivos, tentando escrever na língua do futuro, na língua que conseguia se enriquecer e se simplificar sem contradição interna.  E ajudaram a criá-la. Que escritor, publicado hoje, será lido e (pretensamente) compreendido em 2600?


sexta-feira, 30 de maio de 2014

3512) De Bandeira para Rosa (30.5.2014)



O primeiro grande spoiler da minha vida literária foi num texto que hoje reencontrei meio por acaso. Para quem não sabe, spoiler é aquela revelação indesejada que estraga o prazer de uma narrativa: “O assassino é o Doutor Fulano.” Na arte da narrativa, contudo, existem surpresas, segredos e mistérios de toda natureza.  Eu via desde menino na estante da minha casa o Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, que já tinha folheado por curiosidade, mas considerei impenetrável. Sagarana eu consegui ler alguma coisa antes dos doze anos; mas aquele ali era proibitivo. Eu tinha apenas uma vaga noção da história e dos personagens.

Anos depois, li num jornal ou revista esta resenha/carta de Manuel Bandeira, de março de 1957, endereçada a Guimarães Rosa, e exprimindo as primeiras emoções de Bandeira diante da leitura do livro.  Como é inevitável, Bandeira se dirige ao autor meio que adotando a voz narrativa de Riobaldo, uma contaminação inevitável a qualquer leitor bom de verbo que tenha acabado de receber aquele choque monumental de palavreado de alta voltagem. (Aqui, a carta inteira: http://tinyurl.com/otpawfr).

E a certa altura Bandeira dizia: “E o caso de Diadorim, seria mesmo possível? Você é dos gerais, você é que sabe. Mas eu tive a minha decepção quando se descobriu que Diadorim era mulher. ‘Honni soit qui mal y pense’, eu preferia Diadorim homem até o fim. Como você disfarçou bem! nunca que maldei nada.” 

Eu li isso, ergui os olhos da página para a parede em branco.  Então o tal do jagunço Diadorim, brabo e feroz, que eu já vira aparecer no texto, era uma Joana d’Arc!  Uma donzela guerreira!  Como na época eu não tinha a menor intenção de ler o livro, dei de ombros e fui em frente.

E chego ao ponto. É aconselhável ficar discutindo esses segredos em público?  Todo dia nascem pessoas, Brasil afora, que ainda não sabem o segredo de Diadorim. Alguns milhares lerão o livro de Rosa daqui a 20 ou 30 anos. Até então, o segredo será mantido?  Para uma geração mais jovem do que a minha, Diadorim é Bruna Lombardi, ou seja, tchau segredo.  Quando li aquelas terríveis sessenta páginas derradeiras do romance, ao longo daquelas fugas, dos cercos, dos confrontos, da batalha apocalíptica, a coisa que menos importava ali era o sexo dos anjos.  Rosa deve ter pressentido que o segredo da sua Donzela Guerreira iria se esvaindo à medida que o livro se tornasse famoso, como ele devia ter certeza que iria ocorrer.  Mas o segredo, que numa literatura menor seria A Grande Revelação, acaba se minimizando, porque num grande livro há grandes revelações em cada parágrafo, em cada linha.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

3511) Meu Godzilla (29.5.2014)



A primeira imagem da minha adaptação cinematográfica do mito de Godzilla já mostra as profundezas do plâncton no fundo do oceano, no fundo daquele canyon submarino, aquela camada pastosa com centenas de metros de espessura, que há muitos milênios se deposita e sedimenta no fundo do Atlântico, encorpando ali uma sopa-primordial pastosa e fecunda, de onde certamente não foi nenhuma improbabilidade biológica que brotasse um dinossauro gigante, espécie possibilíssima de emergir nessas condições, visto que durante eras geológicas inteiras eles tiveram seus restos mortais e seu DNA varridos para baixo da superfície do mar, que é o tapete embaixo do qual a natureza esconde os seus próprios malfeitos.

Os primeiros cinquenta minutos do filme acompanham sem texto, só com imagens e ruídos, os milhões de anos de lento processamento eletroquímico, combinações genéticas sempre instáveis mas que um belo dia se estabilizaram em forma de um embrião enrodilhado, no interior de um ovo transparente, aquecido pelas correntezas vulcânicas que se infiltram por entre as placas tectônicas do continente. Durante os próximos 43 minutos de filme o ovo incha e a criatura se encorpa, protegida pelo casulo de água aquecida que também mantém à distância os predadores das profundezas, não acostumados àquele jorro escaldante. E a criatura cresce.

É por volta de uma hora e meia de projeção que o ovo, já do tamanho de uma montanha, se rompe, e dali de dentro emerge o corpo pesadão, cascudo, coberto de uma camada rugosa que protege a criatura do calor, do frio, da enorme pressão. E ela sente instintivamente que precisa emergir. E começa sua lenta ascensão para aquele ponto, nas trevas abissais, em que a pressão sobre seus órgãos é menor, é mais aliviante.  Como uma tartaruga de alguma espécie semi-extinta, ela agita os membros, devagar, e devagar sobe.  Do seu primeiro impulso para cima até o momento em que sua cabeça pela primeira vez emerge e vê somente o oceano em volta e o céu noturno estrelado, serão mais vinte, vinte e cinco minutos.

Entre meios-dias e meias-noites a criatura, à tona, percebe enormes vultos que passam, maciços e iluminados, sempre longe, sempre muito além. Mas indicam uma direção, e a criatura a segue.  Quinze minutos depois surge um clarão no horizonte (sempre à noite) e a criatura vê escancarar-se à sua frente uma cidade portuária, feérica e fervilhante. A criatura se encaminha para lá, chega à praia, da praia às ruas.  A destruição que produz na cidade (que parece uma colagem de cidades aleatórias) recebe cerca de dois minutos e quarenta segundos de filme, e nesse ponto o filme acaba.


quarta-feira, 28 de maio de 2014

3510) Giger (28.5.2014)



Lamentei a morte recente do artista H. R. Giger, um sujeito de técnica brilhante e imaginação incômoda.  Ele é famoso pela criação do “Alien” da série do cinema, por muitas capas e ilustrações no gênero do horror e da ficção científica, além de uma participação no fracassado projeto de Duna dirigido por Jodorowski, que não deu certo mas ajudou a projetar vários artistas, Giger inclusive.

Giger era chamado às vezes de surrealista, mas não acho que fosse mais do que a maioria dos ilustradores e artistas do fantástico.  As justaposições inesperadas, os seres híbridos, as deformações, são elementos que hoje em dia estão presentes nos mais diferentes estilos.  Salvador Dalí tinha uma obsessão pelo chifre do rinoceronte, que aparece como uma forma recorrente em inúmeros quadros dele; Giger tinha fixação semelhante em crânios alongados, como o do Alien. 

As hibridizações entre o mecânico e o orgânico são lugar comum na ilustração de FC/horror. Giger fazia as dele com uma variação maior de monstruosidades aparentes.  Seu olhar era o olhar de um cientista louco, e ele até parecia bastante com o Rothwang de Metrópolis (1926), com aqueles cabelos brancos e as olheiras de gênio insone. Seu mundo era um mundo assustador onde tudo era monstruoso mas ao mesmo tempo tudo era atraente. Um mundo tecno-pagão, povoado por depravações biológicas e ciência gótica.

Giger pode ser encampado pelo cyberpunk, pelo steampunk, pelo biotech, por qualquer ramificação que possa envolver o mecânico, o monstruoso, o atraente e o carnal.  Não é um artista fácil para os que se incomodam um pouco com a visão de coisas fisicamente monstruosas, mas a cada geração o público se mostra mais receptivo a essas imagens.  Nada sei sobre a pessoa dele, mas sempre me pareceu um atormentado, tal como Lovecraft ou Cronenberg.

Aqui (http://tinyurl.com/k8wozj9) há uma pequena amostra da variedade do seu trabalho, que se expandiu até capas de álbuns de rock e bares temáticos. Tem sempre alguma coisa que nos perturba e nos fascina nesse mundo soturno de próteses, tentáculos, dutos metálicos revestidos de mucosas, crânios vivos sem pele, articulações presas a parafusos e rebites, superfícies plásticas revestidas de pelos, “dreadlocks” longos como colunas vertebrais, dedos humanos que lembram o corpo de um anelídeo e a pata de um caranguejo, salões mobiliados dentro de cavidades digestivas, narizes que lembram pênis junto a bocas que lembram vaginas, tubulações flexíveis mas que parecem feitas de osso, tendões servindo de piercing num corpo de inseto, o contubérnio e o conúbio entre palavras monstruosas, substâncias alienígenas e obsessões reprimidas.


terça-feira, 27 de maio de 2014

3509) Prosa simplificada (27.5.2014)



(Ray Bradbury, por Selin Arisoy)

Em 1979, no posfácio de uma reedição de Fahrenheit 451, Ray Bradbury escreveu: “Cinco anos atrás, os editores de uma antologia para estudantes lançaram um volume contendo 400 contos. Isso mesmo, quatrocentos. Como se faz para colocar 400 histórias de Mark Twain, Poe, Irving, Maupassant e Bierce num único volume? É a coisa mais simples do mundo. Esfole. Esquarteje. Extraia a medula. Retalhe, derreta, corte e destrua. Cada adjetivo que conta, cada verbo que comove, cada metáfora que pese mais do que um mosquito – fora!  Cada comparação que possa fazer mover os lábios de um sub-retardado – fora! Cada digressão que possa explicar em duas linhas a visão filosófica de um autor de primeira classe – fora!

“Cada história – adelgaçada, definhada, censurada, sanguessugada até a derradeira palidez – estava igualzinha a qualquer outra. O estilo de Twain estava igual ao de Poe que estava igual ao de Shakespeare que estava igual a Dostoiévski que estava igual – no fim das contas – a Edgar Guest.  Cada palavra com mais de três sílabas tinha sido cortada a navalha. Cada imagem que exigisse mais do que um instante de atenção tinha sido fuzilada a queima-roupa”.

Bradbury era um escritor de estilo exuberante, florido, repleto de imagens, de símiles, com um vocabulário transbordante.  Para ele, tirar essas palavras em benefício da mera compreensão da história era uma deformação imperdoável. Para autores assim, as palavras não são um mero veículo para idéias, elas são criaturas em si mesmas. Afinal, uma palavra também é um ser humano.

Por outro lado, o mercado editorial precisa atrair pessoas de escolaridade sacrificada e difícil. É preciso dispor de uma boa variedade de textos que não afugentem esse leitor limitado logo na página 1.  Numa cultura literária pomposa e hipócrita como a nossa, em que “saber palavras difíceis” é considerado uma prova de inteligência, vocabulário se torna proporcional a status.  Nossos beletristas gostam de se pavonear com penas de vocabulário. Não é o caso, por exemplo, de Bradbury, que mesmo sendo um autor às vezes meio auto-indulgente com os próprios cacoetes, está defendendo uma visão que acho correta.

É útil dispor de adaptações, versões condensadas dos clássicos, mas que sejam oferecidos como tal, senão seu texto expurgado acabará se sobrepondo ao texto original.  Que o caráter de “texto inspirado em” continue a ser, como tem sempre sido, claramente destacado na capa e em todas as formas de publicidade da edição. Se o leitor tem o direito de ter acesso a uma versão reduzida, modificada, facilitada, tem o direito também de não ser levado a confundir aquilo com a obra original.


domingo, 25 de maio de 2014

3508) Os outros Sertões (25.5.2014)



(ilustração: Gabriel Arcanjo)

Se eu fosse dono de uma editora profissional e Euclides da Cunha me trouxesse o manuscrito de Os Sertões para avaliação, eu diria (claro, desde já beneficiado por quilômetros de leituras e séculos de discussão que não posso eliminar da memória estalando o dedo):

“Doutor Euclides, seu livro é um monumento. O que tem de literário é magnífico, e o que tem de científico é rigoroso e ousado.  Mas como todo monumento ele tem as dimensões de uma montanha. É preciso aproximar-se dele aos poucos, conquistá-lo por estágios sucessivos. O senhor sabe disso.  Tanto é assim que escolheu uma gradação do mais amplo para o mais específico: a paisagem, os personagens, e por fim a luta.  Mas pense se essa estrutura fosse invertida. Primeiro, a Luta, a sangrenta batalha de Canudos.  Finda esta, é como se o nosso ponto de observação se distanciasse, e víssemos o Homem, populações inteiras agindo, nascendo, morrendo, lutando. E depois a Terra, a terra que precedeu a nós todos e que nos sucederá, a terra eterna, a terra que resistirá a tudo, até a nós.”

Acho que Euclides exclamaria “Humpf!” e iria em busca de outra editora. Publicaria o livro exatamente como ele está até hoje, que invalida meu universo paralelo acima. Mas há precedentes. Consta que a ordem dos capítulos do Almoço Nu de Burroughs foi determinada pela ordem em que eles chegavam pelo Correio aos responsáveis pela edição, que eram Allen Ginsberg e Jack Kerouac. (Eu dou por vista a aventura que é trabalhar com dois produtores ajuizados como estes.)

Meu Sertões seria uma versão convincente por si só, sem precisar de comparações com a versão real.  Parece que Euclides quis de propósito tornar o primeiro degrau o mais alto de todos, o primeiro trajeto o mais penoso e comprido.  Fez como Dante, que começou a sua Comédia pelo inferno, como que sugerindo que não há nenhum caminho para o Paraíso que não tenha de atravessar aquilo mais cedo ou mais tarde.  O Purgatório meramente prepara a queda de paraquedas no Paraíso.

No meu, primeiro a batalha!  Não duvido que arrebatasse os leitores.  Mesmo que só lessem isso, teriam tido uma experiência literária inesquecível. Incompleta, claro, mas qual é a experiência literária completa?  Muitos quereriam ler, depois do relato do massacre, a descrição da vida e dos hábitos do vaqueiro.  Seria como ressuscitar os jagunços mortos. A vida continuava.  E na terceira parte, como numa bomba de nêutrons, os humanos desapareceriam e ficaria somente a terra árida, a terra desolada, a terra do sol, a terra perseguida; e a última coisa no mundo seria a descrição científica e impessoal dessa terra sem ninguém.





sábado, 24 de maio de 2014

3507) FC e Surrealismo (24.5.2014)



(Ilustração: Richard Powers)

Em princípio são duas coisas que não têm nada a ver. 

O Surrealismo gerou os estilos (ou propostas de novos estilos) mais excêntricos de sua época e de muitas outras, ao passo que a ficção científica, embora imaginativa em termos de enredos, sempre tendeu a uma narrativa tradicional, mimética, com uma sintaxe estruturalmente conservadora (ou seja, com começo, meio e fim, nesta ordem). 

Difícil conciliá-las: a doutrina da escrita de-pernas-para-o-ar (sem pensar, sem refletir, drenando sua energia do sonho, do delírio, do trauma) e a literatura da imaginação cartesiana, capaz de conceber e ilustrar uma teoria original do universo e ter personagens com que um leitor médio consegue se identificar.

Creio que vale o mesmo que dizemos sobre surrealismo e cinema. Uma coisa é praticar escrita automática; qualquer um pode pegar uma caneta, fechar os olhos, e despejar ali o que lhe passa na cabeça. Outra coisa é tentar fazer isso enquanto tem que dirigir uma equipe de cem pessoas, tomar decisões logísticas, financeiras e estéticas das seis da manhã à meia-noite, berrar em megafones, suportar bombardeios da imprensa.  Será possível um surrealismo aplicado a uma profissão tão administrativa quanto “diretor de cinema”?

Buñuel, Lynch e outros parecem ter um procedimento básico que a FC pode adotar. O Surrealismo, no que tem de liberação inconsciente e não-programada, ocorre em duas instâncias: na concepção original, geralmente o argumento, que pode ser tão surrealista quanto o de Um cão andaluz; e na possibilidade de improvisar, fazer mudanças de surpresa, imprevistas, no momento mesmo da execução. 

Buñuel tinha essas venetas, que produziam algumas de suas imagens mais desconcertantes.

O espírito do surrealismo está presente, por exemplo, em Philip K. Dick, e digo espírito porque não me consta que Dick fosse fã de Breton e companhia. Dentro das suas obsessões recorrentes, a narrativa de Dick era muito movida pelos ventos da veneta, do repente, da cena ou personagem caídos do céu. 

Outros autores ficam mais próximos do surrealismo pela heterogeneidade cultural entre seus ambientes e personagens, como Cordwainer Smith. 

Outros pela imaginação desenfreada e sem precisar dar explicações, como muitos autores de pulp fiction. 

Outros por vasculhar do lado negro da ciência e o lado tenebroso do ser humano, como J. G. Ballard e William Burroughs.  

A imprevisibilidade e o jogo de choque desencadeado pelo acaso ou por processos artificiais (neste ponto a Oulipo herdou algo do surrealismo) é um recurso tecnicamente modernista que a FC pode aplicar com lucro nos seus formatos clássicos e no seu banco-de-dados imaginativo.




sexta-feira, 23 de maio de 2014

3506) "Quarenta Dias" (23.5.2014)




Esse romance de Maria Valéria Rezende, recém-saído pela Alfaguara/Objetiva (Rio) é a história de uma viagem à rua.  Ele produz, em muitos momentos simples e verazes, quase documentais, a vertigem de quem pula numa cidade como quem pula num barreiro, ou, pra ficar mais proporcional, numa piscina de clube cheia de gente desconhecida. A rua, sem ter onde dormir nem o que comer. Os Beatles já retrataram magicamente essa voragem do desconhecido: “Saí da universidade, gastei o dinheiro, não vejo futuro, não pago aluguel, o dinheiro voou, nenhum lugar para onde ir. Oh, aquela sensação mágica: nenhum lugar para onde ir” (“You Never Give Me Your Money”). 

Seria injustiça chamar de existencialista um livro que nada teoriza e parece feito só de existência, mas nesse caso o nome se aplica de qualquer jeito.  É a história de você passar a vida carregando nos ombros e acima da cabeça um homem-da-meia-noite ou mulher-do-dia criado por você mesmo e por todos que o conhecem.  Construir um Eu Visível e usá-lo como um supermamulengo pela vida afora. De repente você percebe que você e seu personagem são duas coisas diferentes. Quem quebra seu Eu consegue ver através do de todo mundo.  Vem a liberdade de poder ver como todo mundo é, como tudo é, por dentro do boneco-gigante-de-si-mesmo.  Existe uma certa crueldade indispensável em toda auto-libertação.

Mulher conversa com diários. Dá-lhes nomes de amigas reais ou de imagens da moda. O diário é sua melhor amiga: “Olha, Barbie, sabe por que eu falei isso pra Mamãe? Porque ela é uma chata!  Isso mesmo, uma grande chata.”  Uma menina se queixando a outra menina da maneira como outra menina criou outra menina. “A idade adulta sumiu, comprimida entre a juventude esticada até o limite do indisfarçável e a tal da melhor idade” (p. 55)

É a história de Alice, uma mulher nessa faixa etária “zona fantasma”, que se muda de João Pessoa para Porto Alegre ao longo de uma desilusão afetiva, e procura numa cidade desconhecida  fazer alguma coisa, mesmo pequena, mas que valha a pena. Quando a bolha explode, ela vira uma espécie da “Velha Dama Indigna” de René Allio ou Dora de Central do BrasilUma Alice que ao invés de variar de tamanho varia de idade, pulando de menina para velhinha fatigada, daí para mulher madura e compreensiva, sempre com passagens pela menininha antes de voltar à jovem cheia de expedientes, capaz de pequenas vitórias. Fica apertando e folgando os próprios conceitos como quem aperta e folga roupas. E descobre a rua, descobre o que é se sentir sem lar, sem uma casa para onde voltar, como uma completa desconhecida, como uma pedra rolando.



quinta-feira, 22 de maio de 2014

3505) Poemas para a defunta (22.5.2014)




(The Tomb of Ligeia, 1964)

Quando sua noiva Alice morreu, depois de meses de luta contra uma doença implacável, Karl pensou que iria enlouquecer. Durante o velório e os preparativos para o sepultamento, parentes se revezaram ao seu lado, atentos a qualquer gesto de desespero. Sabiam o quanto ele era emotivo, melodramático, precisava externalizar tudo que sentia. Viram com alívio, contudo, que ele dedicou aquela última e interminável noite à compilação de todos os poemas que escrevera para Alice, principalmente durante as semanas de sua agonia final. Na manhã seguinte, na hora das últimas despedidas antes de fechar o caixão, ele aproximou-se, ficou alguns minutos murmurando algo em voz baixa, e por fim colocou entre as mãos postas dela o grosso maço de folhas manuscritas, atadas com uma fita de seda: os poemas, sem cópia, que pertenciam a ela e só a ela. E assim foi enterrada.

O tempo passou, e com ele as coisas que o tempo traz. Karl concluiu seu curso, foi morar na capital. Continuou a escrever; a poesia era não somente a cura para o sofrimento mas o registro da descoberta de novos mundos, novos horizontes. Frequentou a corte. Fez amigos. Amadureceu; conquistou cargos e posições, e quando começou a publicar seus primeiros livros, os novos poemas foram acolhidos com entusiasmo e reverência. Ninguém os amava mais do que Dorotéia, a bela filha de um embaixador, em cujos braços ele encontrou por fim a felicidade que lhe fôra negada.

Um ano depois marcaram o casamento, e o editor de Karl sugeriu que publicasse um novo livro para comemorar a data. Foi Dorotéia que, sabendo do noivado tragicamente interrompido, sugeriu-lhe que tentasse recuperar os manuscritos sepultados. Seria uma aventura romântica, que iria projetar ainda mais seu nome. Karl, que secretamente já se arrependia do que fizera, concordou.  Combinaram que só revelariam tudo depois de feito, e embarcaram no trem para a cidade natal do poeta.

A noite estava quente e enluarada. Entraram ele e ela no cemitério, trajando roupas rústicas, armados de pás. Afastaram com dificuldade a lápide, e puseram-se a cavar. Karl estava possuído por uma sensação de eterno retorno, como se não fosse a primeira vez que aquilo lhe acontecia. Quando a pá bateu na tampa do ataúde, os dois desceram, e dentro do buraco acenderam uma lanterna. Desparafusaram a tampa, ergueram-na. Soltaram um arquejo de horror; não diante do esqueleto vestido de branco, ao qual se agarravam ainda pedaços de pele mumificada, mas à vista das páginas espalhadas por todo o ataúde, minuciosamente rasgadas, deliberadamente destruídas, friamente reduzidas a farrapos e vingança.


quarta-feira, 21 de maio de 2014

3504) O Banco de Ferro (21.5.2014)



O Banco de Ferro só é de ferro simbolicamente. Na verdade ele é feito de números, uma linguagem diferente nos nobres ideais dos cavaleiros e fidalgos de casa real. O “real” deles não se refere a reis, mas a mil-réis, à contabilidade dos empréstimos, a dívidas, percentagens, financiamentos a prazo ilimitado e juros compostos, investimentos de olho no comportamento da coluna da direita, independente do que esteja descrito na coluna da esquerda. Os Bancos funcionam assim, desde os Templários e os judeus do Mediterrâneo até Wall Street.

O Banco de Ferro de Braavos começa a surgir na trama do seriado “Game of Thrones” (HBO). Por trás das batalhas, cercos e massacres de terra e mar que têm se sucedido no continente de Westeros, começamos a tomar conhecimento de uma guerra na surdina, uma guerra menos visível do que a dos estandartes e do fogo grego. É a guerra dos números. Quem deve mais do que pode pagar? Quem poderia vencer as batalhas militares, se tivesse mais capital? Quem pode se apresentar como um parceiro econômico mais favorável e lucrativo, independente de quem seja ou do que queira fazer com o que ganhar?

 
Corre o risco de o livro sexto ou sétimo das “Crônicas de Gelo e Fogo” vir a se chamar “Inside Job” ou “Margin Call”. Talvez seja uma idéia fixa de minha parte, um pesadelo-da-conspiração em que o mundo inteiro é um teatrinho que justifica e encobre a guerra de cifrões e ouro, a única real, a única que mexe no software das sociedades. Dez mil soldados podem ser degolados sem avanço militar significativo, mas dez mil moedas de ouro depositadas todas num mesmo ponto são peso suficiente para fazer mover alavancas gigantescas.

Os Lannister estão no poder, mas endividados, e por trás dos lambris e das tapeçarias da corte movimentam-se cifrões ágeis como répteis. Um reino sem ouro é algo tão artificial e sem fundamento quanto um cheque sem assinatura. A encenação do poder, mesmo capaz de brutalizar aqui, crucificar ali, massacrar acolá, não é nada sem lastro em padrão ouro. Para o Banco de Ferro, as conquistas militares alheias são verdadeiras festas. Todos recorrem a ele para pagar fantasias, alegorias, músicos, comida, bebida; uma guerra consome mais dinheiro do que um casamento real por dia. Alguém tem que pagar, e para pagar recorre a quem tem. “Quem tem” está muitas vezes financiando com a mão esquerda e vendendo os produtos com a direita. O Banco de Ferro não liga quem governe o continente, contanto que governe sob suas asas financeiras. O Banco de Ferro é uma ameaça tão subestimada e tão invisível quanto os dragões da Khaleesi, mas vai se tornando mais presente a cada temporada que passa.

terça-feira, 20 de maio de 2014

3503) Os slogans da Copa (20.5.2014)



Podem dizer que minha abordagem é preconceituosa.  Entre outras coisas, é a pura verdade.  Não tenho preconceito contra a Copa do Mundo, tenho contra a Fifa que a promove e que se parece com uma Máfia, uma Wall Street, uma limusine de mercenários, um valhacouto de cavalheiros-da-indústria, uma gangue de trambiqueiros de alto coturno. Não tenho preconceitos contra negros, judeus, homossexuais, índios, mulheres, contra quase ninguém. Tenho preconceito contra a Fifa. (Não devo pensar que sou melhor do que pessoa alguma.)

A Fifa promoveu uma votação/enquete para escolher 32 slogans, aqueles que são pintados nos ônibus das 32 seleções que disputarão a Copa no Brasil.  Não consegui descobrir como feita essa eleição, se foi com sugestões do público em geral, ou se se deveu à mesma comissão que criou o Fuleco. 

O slogan da nossa seleção é: “Preparem-se! O hexa está chegando!”. Brasileiríssimo, pois não se trata de “Vamos conquistar o hexa, passando por cima de pau-e-pedra!”. É tipo “estamos aqui, na piscina do hotel, e alguém ligou no celular dizendo que o hexa está chegando daqui a pouco, dependendo do trânsito e das manifestações”.  Corre, Neymar!

Alguns slogans são do tipo tiro-no-pé. Os belgas dizem: “Esperem o impossível!”. (Ao que os franceses, mais profissionais, afirmam: “O impossível não existe em francês”). Os uruguaios (logo eles, contumazes estragadores-de-festa) dizem: “Três milhões de ilusões, vamos lá, Uruguai!”. Tomara que fiquem na ilusão mesmo. Alguns recorrem à mitologia totêmica, como Camarões (“Um leão é sempre um leão”) ou a Costa do Marfim (“Os elefantes à conquista do Brasil”).

Vários países concorrentes revelam uma certa pressa ansiosa em afirmar que já realizou sua individuação do Self junguiano. Argentina (“Não somos um time, somos um país”), Colômbia (“Aqui não viaja um time, viaja um país inteiro!”), Equador (“Um compromisso, uma paixão, um só coração, é para ti, Equador!”), Alemanha (“Uma nação, um time, um sonho!”), Honduras (“Somos um povo, uma nação, cinco estrelas de coração”).

Pra não dizerem que sou só má vontade, gostei dos lemas do México (“Sempre unidos, sempre astecas”), do Japão (“Samurai, chegou a hora da luta”), de Portugal, realista e esperançoso (“O passado é história, o futuro é a vitória”). Acho que estou numa fase meio desencantada, mas me pergunto. Será que num mundo de mídia onde rolam tantos milhões de euros é tão difícil inventar um slogan que preste?  Se Lamartine Babo fosse vivo, ele entregava 32 frases impecáveis, em troca de um salário-mínimo, uma média de café-com-leite e um pão com manteiga. E o mundo onde isso acontecia era melhor do que o nosso.


domingo, 18 de maio de 2014

3502) Os derrotados (18.5.2014)



Somente os vencedores têm a sua história contada. Não existe tempo nem espaço na memória dos homens para a história dos que perderam, dos que ficaram pelo meio do caminho, dos que tentaram e não conseguiram. São a cara da humanidade; mas a própria humanidade os despreza. São a parte submersa do iceberg da história, do qual forçamo-nos a ver somente o que se eleva e se destaca, e fingimos que por baixo nada mais existe. Cadê a biografia dos que nunca subiram ao pódio, dos que perderam todas as eleições, dos que foram passados-no-rodo nas batalhas, dos que ficaram em décimo-primeiro lugar nas listas dos dez melhores, dos que buscados no Google dão zero hits? 

Toda história de sucesso é praticamente a mesma coisa, mas cada derrota e cada tragédia é mais individualizada, mais pessoal e mais de-carne-e-osso do que o mero triunfo.  Perguntem a Dante Alighieri, que já respondeu. É uma verdadeira assimetria filosófica que um escritor que publicou dez livros receba uma biografia e um pretendente a escritor que pensou em escrever dez livros e não o fez não receba sequer dez linhas de wiki.  Sem falar naqueles que escreveram livros trabalhosíssimos e deixaram a única cópia datilografada no banco traseiro de um táxi ou numa maleta esquecida na plataforma de um trem. 

O sucesso tem uma função meramente ampliadora, mas as histórias que conta não têm um grama sequer a mais do que as catástrofes de subúrbio, os naufrágios de piscina de quintal,  os apocalipses em plena adolescência, os hindemburgs que colecionamos na interminável infância.  Mandem parar a van em qualquer estrada lateral de qualquer interiorzão brabo, e detenham o primeiro transeunte que for passando, como faziam aqueles califas e vizires das mil e uma noites.  Ele lhes contará uma história pessoal que bem escrita deixaria um bilhão de mentes estremecendo mundo afora.

A vitória é um cheque pré-datado de imortalidade, mas sem fundos.  A derrota é o destino cósmico do universo: a extinção da humanidade, indivíduo por indivíduo, ou seja, a demissão da espécie por justa causa. O derrotado é aquele a quem coube receber em nome da espécie esse incômodo recado e essa ainda mais desconfortável eliminação.  Toda vitória é um adiamento; uma história só se conclui de fato quando atinge sua derradeira derrota, que para uns é a morte, para outros é a não-existência de alguma coisa depois dela. Humilhados, ofendidos, condenados da terra, desvalidos, quixotes visionários, drogados incorrigíveis, missionários que em oitenta anos deixam um resíduo de estalactite e cedem lugar ao próximo, artistas jamais ouvidos, vidas que encontraram uma linha reta na direção do fim.


sábado, 17 de maio de 2014

3501) Cinemas antigos (17.5.2014)



(ilustração: Paul Sandby)

O cinema foi uma novidade tecnológica que desembarcou no Brasil nos primeiros anos do século 20 e foi se espalhando. Nas cidades maiores, acho, estabeleciam-se perto dos teatros, por precisar de salas semelhantes. Mas, pelo Brasil afora, onde houvesse feira, quermesse, parque de diversões, espetáculos populares, tômbolas, rifas, pavilhões de jogos, iam surgindo as primeiras tendas ou salinhas de projeção, atraídas pela força gravitacional dessas diversões baratas.  Era o mesmo público, o mesmo espírito, o mesmo preço.

O que às vezes não lembramos é que o cinema foi precedido por projeções das Lanternas Mágicas e dos variados “...scópios” da época, que lidavam com imagens fixas, transparentes, coloridas, projetadas em grande tamanho em parede ou tela. 

Em sua saborosa História da Cidade do Natal (1947, pags. 265-266), Câmara Cascudo lembra o fenômeno no Rio Grande do Norte: 

“Havia o Cosmorama, vistas de cidades e costumes através de um vidro de aumento. Divertimento caro. Um tostão. Os melhores, vindos em 1888, exigiam quinhentos réis de entrada na Praça da Alegria. Depois apareceu a Lanterna Mágica, paisagens, figuras, cenas substituídas com relativa rapidez pela máquina. Ia muita gente boa, bem vestida, comentando o ‘espetáculo’”.

E depois: 

“Em 1906 Natal viu e gostou das descobertas sensacionais. Em abril o sr. Arlindo Costa com o Bioscópio, no teatro Carlos Gomes, vistas fixas e outras com movimento. Por exemplo – o Hotel Mal Assombrado. Em novembro veio Moura Quineau com uma máquina moderna. Quase cinema. O ‘Álbum Maravilhoso’ era um assombro. Em 1911 o primeiro cinema na praça Augusto Severo, Politeama, nome escolhido por eleição popular pelas página d’A República”.

No fim deste século, lá por 2090, quando forem escritas as histórias dos videogames, serão lembradas as máquinas de fliperamas, joguinhos de “arcade” e outras que já foram (ainda são um pouco) tão comuns em rodoviárias, aeroportos, galerias, shopping-centers, etc.  Diversões populares ao preço de uma fichinha, que vão aos poucos sendo substituídas por seus primos tecnológicos mais aperfeiçoados.

Ao reconstituir sua história, nem sempre percebemos que as tecnologias vão sendo trocadas como cobra troca a pele, mas os temas eternos retornam. Um tema clássico como o “Hotel Assombrado” mencionado por Cascudo passou do bioscópio para o cinema, deste para os games. Passará dos games para os joguinhos rádio-telepáticos do fim deste século.  Ao longo dessa linhagem, uma corrente incessante de influências, empréstimos, pequenas invenções de linguagem e de expressão, onde uma forma de arte, ao morrer, serve de alimento àquela que a substitui.  



sexta-feira, 16 de maio de 2014

3500) A Bíblia e o cordel (16.5.2014)




Nos meus tempos de menino, devo ter lido a Bíblia quase inteira, em parte por vontade de ir pro Céu, e em parte pela curiosidade (que sempre tive, ouvindo histórias antes mesmo de aprender a ler) de saber o que aconteceu no meio daquelas guerras entre reis, aquelas peregrinações, aquelas sagas de famílias a quem só aconteciam prodígios, aqueles milagres espantosos acontecendo com pessoas que não eram muito diferentes das pessoas da fazenda da Broca, do meu avô, ou do sítio Tatu.

Já comparei a Paraíba (por extensão, o Nordeste) à Grécia Antiga.  

Dois mundos retalhados entre faixas áridas e faixas férteis, cheios de montanhas misteriosas; povos de pastores e agricultores, envolvidos com seres sobrenaturais, com milagres e catástrofes inexplicáveis, com tragédias e epifanias que eles tentavam compreender e justificar através de longos poemas compostos e guardados de cor.  

O mesmo se dá com o mundo da Bíblia.  Andando pelos nossos sertões, nossas serras, nossos vales, nos deparamos a todo instante com um daqueles patriarcas do Velho Testamento, cuja única diferença para com os verdadeiros patriarcas hebreus é que ele leu o Velho Testamento e os hebreus provavelmente não, foram meros personagens.

Bob Dylan não foi o único poeta pop a recorrer à Bíblia em busca de temas entre o terrível e o sublime. Fez isso, também, em busca de uma dicção clássica, concentrada, que no idioma inglês se localiza na famosa Bíblia do rei James VI, do começo dos anos 1600.  

Outros poetas pop norte-americanos que volta e meia “chamam” o vocabulário, os temas e as imagens bíblicas são Leonard Cohen, Allen Ginsberg. Mais do que um fenômeno de crença religiosa, é uma questão de fé literária. Todos sabem que aquilo é uma essência concentrada de verdade literária.

A Bíblia é um melelê de gêneros. Crônicas históricas, lendas heróicas, poemas, provérbios, profecias, epistolário (conjuntos de cartas), livros de preces... 

O nível poético de livros como os Salmos de Davi, o Livro dos Provérbios, o Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos, é impressionante – uma poesia que salta com facilidade do concreto para o abstrato, da fotografia de uma planta ou um animal correndo sobre as pedras para, na linha seguinte, uma reflexão sobre Deus e o mundo.  

E chego agora ao meu tema: seria interessante uma análise estritamente poética da influência da linguagem bíblica sobre a poética dos cantadores e cordelistas. Vocabulário, figuras de linguagem, estrutura de versos, repetição interna de estruturas sintáticas para efeito poético... 

Que os poetas liam muito a Bíblia é fato corriqueiro. Que traços estilísticos a Bíblia deixou em sua poética?







quinta-feira, 15 de maio de 2014

3499) O filme de Clodoaldo (15.5.2014)



Clodoaldo era dono de um bar pros lados de Bodocongó, rodeado pelo campus da UFCG. Era amigo dos estudantes. Aprendeu na carne e no sangue o que é permitir um caba liso assinar um vale. Mas era uma alma boa, inteligente, lia muito, gostava de papo, e era tão maluco quanto qualquer universitário. 

(Quem segurava as pontas financeiras do bar era a mulher dele, que ele chamava de Receita Federal: “Vocês podem beber em paz aí, que a Receita Federal tá contabilizando tudo.”)

Clodoaldo ganhou uma quadra da Mega-Sena e resolveu dirigir um curta. Chamou o pessoal do curso de Arte & Mídia para trabalhar na equipe, prometendo pagar “tabela do sindicato”. 

O pessoal foi, mais pela curiosidade e pela farra, mas os problemas começaram no roteiro. Cadê o roteiro, Clodoaldo? “Tá todo aqui,” dizia ele subitamente sério, com o indicador apontando a têmpora, firme como um revólver. Qual era a história? Um dia ele dizia: “É uma interpretação urbana do cangaço e da cultura da mandioca.”  Tempos depois, dizia: “É uma guerra entre uma família pobre e uma família rica.”  Noutro dia era: “É a história de um cara que tudo que faz dá errado.”

Na primeira semana de filmagem, ele disse a Duda, o fotógrafo: “Essa cena eu quero com a câmara em cima de um ônibus”. 

Duda: “Mas não são duas pessoas conversando? Melhor a câmara parada.” 

Ele: “A gente combina com o motorista pra passar bem devagarinho.” 

Duda: “Mas por que tem que ser o ônibus?” 

Ele: “Eu acho tão bonito, uma câmara em cima de um ônibus!”

Ele inventou de filmar uma briga de faca em que cada vez que uma faca batia na outra se ouvia um tiro de revólver, mas recusou edição no estúdio, a sincronização tinha que ser feita na hora, com um cara mais atrás disparando cartuchos na hora certa. “Dá muito trabalho, Clodoaldo”. E ele: “Tudo que é bem feito dá trabalho. Vocês pensam que isso aqui é Hollywood, onde tudo é facilitado?!”.  

Clodoaldo sujou o prontuário policial de toda a equipe ao invadir a Prefeitura com um grupo de cangaceiros (“tem que ser sem pedir licença, quero espontaneidade”). Discussões acaloradas em cada dia de filmagem. Câmara de cabeça pra baixo (“pra simbolizar a inversão de valores morais”).

Quando o filme ficou pronto, foi inscrito num festival na Alemanha. Mas o dinheiro da Quadra já tinha acabado, e Clodoaldo não pagou a ninguém. 

O pessoal rompeu com ele, e passou a beber no bar de Dionísio, que era perto. Por vingança, nem avisaram a Clodoaldo quando receberam a notícia de que o filme tinha ganho o prêmio especial da crítica. “Quem manda ser xexeiro?”, resmungava Duda. “E se ele se animar, vai querer fazer um longa e aí lascou-se tudo.”






3498) Palavras intraduzíveis (14.5.2014)



(alemão: "Uma cara que tá pedindo pra levar um murro")

Este saite (http://tinyurl.com/qbl6zgw) tem 23 ilustrações interessantes baseadas num conceito que sempre me fascina: palavras que existem numa língua mas não em outras. A gente tem a noção meio ingênua de que para tudo existe uma palavra específica, mas a verdade é que toda língua tem termos que só podem ser traduzidos com longas explicações e circunlóquios. Eis alguns exemplos:

Fernweh (alemão) – sentir saudade de um lugar onde nunca se foi. 

Papakata (Ilhas Maori) – ter uma perna mais curta do que a outra. 

Tingo (ilha da Páscoa) – furtar gradualmente todas as posses de um vizinho, apenas pedindo emprestado e não  nãnão não o devolvendo. 

Tsundoku (japonês) – o ato de deixar um livro sem ler, depois de comprá-lo, tipicamente guardando-o junto a outros livros na mesma condição. 

Waldeinsamkeit (alemão) – a sensação de estar sozinho num bosque.

Pochemuchka (russo) – uma pessoa que faz muitas perguntas. 

Aware (japonês) – a sensação doce-amarga de um momento breve e passageiro de beleza transcendental. 

Gattara (italiano) – uma mulher idosa e sozinha que se dedica a gatos perdidos. 

Won (coreano) – a relutância, da parte de uma pessoa, de abandonar uma ilusão. 

Ilunga (tshiluba) – uma pessoa disposta a perdoar qualquer tipo de abuso pela primeira vez, tolerá-lo uma segunda vez, mas nunca uma terceira. 

Prozvonit (tcheco) – o ato de ligar para um celular e dar apenas um toque, para que a outra pessoa ligue de volta, fazendo-nos economizar dinheiro ou créditos.

Note-se que não é a sensação ou a idéia que são intraduzíveis, pelo contrário, em geral são noções que entendemos facilmente. Mas não temos uma única palavra para exprimir essa idéia. Mais ou menos. A pessoa que tem uma perna mais curta do que a outra é chamada no Nordeste de “29-30”, não sei porque (talvez para indicar numericamente a pequena diferença entre as duas). Gente que faz muitas perguntas é “perguntador”. Nos outros casos (e nos demais termos que não transcrevi aqui), não tem jeito, é preciso uma descrição. Não temos palavras diretas.

Esta é uma das muitas questões delicadas que um tradutor precisa enfrentar, porque mesmo uma língua tão familiar a nós como o inglês está cheia de pequenos substantivos ou verbos que lá são usados com toda naturalidade mas para os quais o português não se deu o trabalho de criar um equivalente em escala 1:1.  Quando um termo assim aparece, obriga-nos a alongar explicativamente uma frase que tinha outro ritmo, outro formato, outra intenção. Às vezes até passa, com autores de prosa mais diluída e extensa; mas naqueles prosadores onde tudo é exato, tudo é compacto, tudo é ritmicamente encaixado e preciso... aí o bicho pega.


terça-feira, 13 de maio de 2014

3497) Jair Rodrigues (13.5.2014)



O Brasil chorou a morte de Jair Rodrigues, aos 75 anos, com aquela ponta de remorso de toda platéia que empurrou um artista para a prateleira dos fundos e só lembra das suas qualidades quando percebe que o perdeu. Sou um desses, porque, embora não ficasse imune à simpatia pessoal e ao talento do cantor, não ouvia um disco inteiro dele há mais de trinta anos.  Fazer o quê?  O Brasil é assim. Ninguém pode ser novidade de novo a cada ano, embora alguns tentem heroicamente. O lado positivo é que, na música brasileira, quem foi muito famoso durante alguns anos conseguirá viver de shows eternamente, se souber cuidar da própria agenda. Quando viajo pelo interiorzão do Brasil, nunca deixo de ver faixas ou cartazes no clube local anunciando o show de alguém cujo nome não aparece na TV há décadas. O Brasil é grande, e uma fama residual, bem administrada, dura pelo resto da vida.

O primeiro grande momento de Jair foi a “Disparada” de Geraldo Vandré e Théo, que ele defendeu num festival com um vigor poucas vezes visto. Foi aquele caso feliz do intérprete ideal para uma música diferente. Campeã do festival junto com “A Banda” de Chico Buarque, ela mostrou naquele momento de intensa renovação que a música regional era uma fonte inesgotável de vigor, com uma potência épica que estava sendo redescoberta por músicos como Sérgio Ricardo, Edu Lobo e outros.

Outro grande momento de sua carreira foi seu programa de TV ao lado de Elis Regina. Mais uma vez, o caso feliz de dois intérpretes de gosto musical parecido e estilo parecido: exuberante, pra-fora, a plenos pulmões. Ver os dois juntos na TV, para minha geração, produzia uma irresistível vontade de correr para o violão mais próximo e tentar compor algumas músicas. Felizmente obedeci a este impulso.

O terceiro momento marcante de Jair foi a famosa “Deixe que digam, que pensem, que falem... Deixa isso pra lá, vem pra cá, quê que tem... Faz mal bater um papo assim gostoso com alguém?”.  Era o “samba da mãozinha”: Jair marcava o ritmo com um vaivém da mão espalmada que para alguns tinha um sentido obsceno mas que na verdade era apenas o suingue musical de quem canta (e rege a banda) com o corpo inteiro. Como Lenine me mostrou anos depois, foi o nosso primeiro “rap”, nossa primeira música canto-falada (OK, pode ter havido outras antes, mas foi a primeira para nossa geração). Era ainda samba mas já era alguma coisa além do samba.  Mais uma vez, um intérprete incontrolavelmente expressivo que projetava em diferentes ritmos e gêneros uma maneira pessoal de fazer as coisas. Jair teve nesses momentos a criatividade e os recursos técnicos para tornar seus esses diferentes tipos de canções alheias.


domingo, 11 de maio de 2014

3496) O Eu poético (11.5.2014)



Fernando Pessoa defendeu em inúmeros textos em prosa (e até em poemas) o conceito de poesia dramática, a poesia que em vez de ser uma confissão intensamente pessoal do autor é uma poesia meio teatralizada, onde o autor inventa pessoas e situações e fala em nome desses personagens imaginários. Ele fez isto há um século, mas grande parte das pessoas que leem poesia continuam presas a um conceito de Eu Poético que resulta de uma compreensão limitada do lirismo. Vejo muita gente dizer: “Fulano faz poesia lírica, então tudo que ele está exprimindo são os verdadeiros sentimentos dele”. 

O Eu Poético não é uma afirmação de opiniões, é a investigação momentânea de estados emocionais.  Não é o que o poeta pensa oficialmente sobre aquele tema (a amada, o seu país, o destino da humanidade, etc.): é o que ele está pensando naqueles momentos em que se sente motivado a escrever.  Ele pode estar sujeito a emoções momentâneas de entusiasmo, raiva, desespero, euforia, espírito moleque e assim por diante.  Escreverá, naquela hora, movido por esse estado de espírito.  Nada o obriga a dar naquele poema uma opinião definitiva sobre algo.  Como dizia Drummond, “hoje ama, amanhã não ama”. Se produzir um poema hoje e outro amanhã, dizendo o por quê de amar ou de não amar, ambos os poemas, mesmo contraditórios, serão verdadeiros.

A poesia lírica é a impressão mental do presente do poeta, daquele estado emocional que o faz pegar na caneta. Emoções, o poeta as sente o tempo todo, como qualquer pessoa, mas há emoções que começam a se cristalizar em palavras, em imagens verbais, e é como se ele pensasse: “essa aqui eu consigo dar uma forma”. E ele pega na caneta. É uma poesia contraditória, porque o ser humano oscila o tempo todo entre emoções conflitantes. Meu exemplo preferido quanto a isto é a poetisa chilena Violeta Parra. Ela tem uma canção, “Gracias a la vida” (“Gracias a la vida / que me ha dado tanto...”) que é uma das canções mais belas de alegria de viver, capaz de ajudar a tirar alguém de uma depressão.  E escreveu outra, “Maldigo del alto cielo” (aqui: http://tinyurl.com/ocklytn), que é uma canção de maldição, de desespero, de chutar o balde e desistir do mundo. Qual das duas exprime os verdadeiros sentimentos da poetisa? Ambas.

Poetas sempre usaram o que Pessoa chamou de poesia dramática, mas geralmente se limitavam a ser um personagem; no máximo dois ou três, e mesmo assim parecidos, não-contraditórios. O Modernismo teve essa fator de libertação. Quando o poeta diz “eu”, não fala apenas em seu nome, fala em nomes de pessoas que ele nunca foi, mas que o leitor talvez tenha sido ou seja, e por isto se identifica.


sábado, 10 de maio de 2014

3495) Mini-contos de terror (10.5.2014)




(Minha contribuição ao gênero chamado Dark Quarks – contos de terror em duas frases.)

1) Na esperança de engravidar, ela recitou preces, fez simpatias, preparou um berço, e toda noite ia olhar para ele. Uma noite havia alguém lá. 

2) O chão cedeu durante a fuga e ele afundou até a cintura numa lama espessa.  Quando tentou nadar seus braços ficaram presos. 

3) Quando a luz do elevador apagou, ele ficou aborrecido.  O medo só começou quando ouviu um rangido profundo e o elevador começou a mover-se lateralmente, cada vez mais depressa.

4) Ao enfiar o pé na bota esquerda e amarrar os cadarços experimentou com prazer aquela sensação protetora. Ao enfiar o outro, sentiu a ferroada na sola do pé. 

5) Ele morava sozinho, e levantou no meio da noite para atender as insistentes batidas na porta da frente. Somente ao acender a luz da sala viu o braço descarnado que começava a se enfiar por baixo da porta. 

6) Ele percebeu que tinha se perdido na caatinga, e desceu do jipe para se orientar pelas estrelas. Quando o jipe arrancou sozinho, começou o rumor na mata.

7) Morando à beira de um bosque, sempre achou que seus inimigos eram os lobos. Até o dia em que fugindo de um lobo caiu dentro de um poço vazio e aí começaram seus problemas. 

8) O poema saiu inteiro, num jato, como se já viesse pronto, uma, duas páginas, os dedos voando no teclado, perfeito. “Deseja salvar as alterações?” “Não”.

9) Brincando no parque, a garotinha foi seguida por um homem mal encarado. Assustada, pediu carona no carro de uma moça, respirou aliviada, mas a motorista parou o carro na esquina e o homem entrou no banco traseiro. 

10) A festa do casamento foi divina, a viagem agradável, o hotel da lua-de-mel era um paraíso. Mas ela não esperava que na suíte nupcial estivessem quatro amigos do marido, fumando e bebendo, à espera.

11) Acordou num lugar desconhecido, numa cama de metal, coberto de ataduras ensanguentadas. Antes que pudesse sequer pensar, um celular começou a tocar dentro do seu estômago. 

12) O quarto à noite começou a se encher de mosquitos formando uma nuvem alongada, quase sólida. A nuvem esvoaçou até perto da cama e desligou o ventilador para ficar mais à vontade. 

13) Ao ouvir o terceiro sinal, ajeitou o black-tie, o smoking, flexionou os dedos e dirigiu-se para o palco, pressentindo rumor de casa cheia. Chegando ao proscênio, deparou-se com mil e duzentos caiapós armados e pintados para a guerra. 

14) Uma ventania súbita e um vozerio na rua o levaram à janela, de onde avistou a praia, seca, numa extensão de centenas de metros. Procurou o mar com os olhos e o viu no horizonte, erguendo-se até a metade do céu, como uma naja armando o bote.


sexta-feira, 9 de maio de 2014

3494) Reescrever os clássicos (9.5.2014)



Rola na internet uma polêmica sobre a edição de obras de Machado de Assis, reescritas para alcançar um público mais amplo, substituindo palavras consideradas difíceis, como “sagacidade”, por palavras como “esperteza”.  A intenção é tornar Machado mais conhecido pelas gerações mais jovens, as quais, por motivos que nem adianta começar a discutir num espaço tão curto, têm um vocabulário pequeno. (Por alguma razão, autoridades sempre acham que a melhor maneira de curar o vocabulário reduzido dos leitores é obrigar os escritores a diminuírem o seu.)

Gosto de ver adaptações de obras literárias para o cinema, o teatro, a ópera, as histórias em quadrinhos, os videogames e assim por diante. Geralmente acho que o resultado das adaptações é ruim, mas isso não cancela a importância da tentativa. Temos inclusive livros com adaptações destinadas aos jovens, feitas por Paulo Mendes Campos, Orígenes Lessa, Monteiro Lobato, muita gente boa. Mas nessas edições sempre se fez uma ressalva, enfatizando termos com “adaptar”, “recontar”, “nas palavras de”, etc.  Sempre que peguei um desses livros, sabia que não era o original. O perigo, creio, está em começar a publicar as obras de Machado de Assis sem a prosa de Machado de Assis, e atribuir o resultado a ele.

Machado é as-palavras-de-Machado, assim como Van Gogh é as-pinceladas-de-Van-Gogh. A arte de um escritor é feita de suas escolhas verbais, sua opção por palavras comuns ou extraordinárias, seu modo de organizar as frases, os termos específicos e bem pensados que ele emprega, sempre com intenção estética. Todas as pessoas que leem e entendem Machado de Assis viram algum dia essas palavras pela primeira vez, não entenderam, tentaram deduzir pelo contexto, e foram em frente. Ninguém entende uma palavra nova na primeira vez que a encontra. É preciso a repetição, em outros contextos.  Se tirarem isso do leitor, que chance de aprender lhe restará?

Mexer nisso pode ter intenções didáticas, mas deve-se deixar claro ao leitor que aquilo é a adaptação de uma obra de Machado, não é o livro que Machado escreveu. Vai dar certo? Sei lá.  Talvez estejam, com a melhor das intenções, formando uma geração de pessoas incapazes de ler Machado de Assis.  Ler Machado é acessar o vocabulário de Machado, as figuras de linguagem de Machado, o tornear das frases que ele fazia como ninguém. E que é preciso tempo para assimilar, entender, ser capaz de saborear. Eu não gostaria de ver Capitu, a “cigana oblíqua e dissimulada”, ser transformada por um redator qualquer em “cigana indireta e fingida”. Porque quando uma coisa começa desse jeito, é desse jeito que acaba.



quinta-feira, 8 de maio de 2014

3493) Contracapa de WhatsApp (8.5.2014)



(ilustração: Ron Miller)

&  no discurso político, a veemência é um mero ensaio para a violência  

&  o mais democrático do carnaval é o direito de sair à rua sem usar nenhuma fantasia  

&  o tempo que me resta é curto demais para que eu o desperdice lendo o que não me agrada, não me tumultua, não me ilumina  

&  um poema é a rachadura na vidraça por onde o sol surpreende com um arco-íris  

&  não adianta exigir honestidade aos desonestos, é como exigir vegetarianismo aos felinos  

&  toda letra de bolero se torna possível depois das duas da manhã  

&  ser fã é considerar a si próprio um mero efeito colateral de algo mais importante  

&  a política é a arte da esperança obrigatória, da amnésia por conveniência, do regateio infinito  

&  você sabe que está ficando importante quando todo mundo começa a lhe prestar favores sem você nem pedir  

&  aquela sensação de pequeno lorde inglês estudando entre atiradores de bumerangue lá num outback da vida  

&  confiar, mas verificando; desconfiar, mas discretamente  

&  dá pena pensar em todas as gírias brilhantes que se evaporaram sem chegar ao papel  

&  basta uma coisa dentro de uma mochila para varrer Manhattan do mapa  

&   a memória é uma ponte elástica ligando o passado ao futuro  

& até hoje nenhum cientista conseguiu provar por a+b que é possível provar alguma coisa por a+b  

&  a gente se esforça tanto e no fim vira apenas o rei da gafe, o campeão do mico, o especialista em meter os pés pelas mãos  

&  criança de rico é bonsai, criança de pobre é erva daninha  

&  toda comida tem algo de veneno  

&  o sujeito está com o saldo bancário no vermelho e ainda passa uma tarde preocupado com a Conjetura de Riemann sobre os números primos  

&  inventou um vibrador que diz “quer casar comigo?” e ficou rico  

&   certos jogos de futebol deixam a alma da gente mais massacrada do que a grama onde aconteceram  

&  mandar é como obedecer: depois que o cara acostuma aquilo vai por si só  

&  um apartamento flutuando sobre o abismo até que alguém abre a porta  

&  ser imortal é estar condenado à prisão perpétua sem chance de fuga  

&  a única vez que tentei conversar com uma árvore ela me disse: vai correr, aproveita que tem perna!  

&  há duas maneiras de perder uma mulher: tratá-la como um mero animal, e tratá-la como alguém sem animalidade nenhuma  

&  o poeta é um voyeur clandestino espiando as frestas dentro de si mesmo  

& ainda veremos políticos contratando romancistas para escreverem biografias deles onde tudo deu certo  

&  depois de uma noite de bebida incessante e escrita furiosa, eu apago a luz e me aconchego aos ácaros  

&  você paga a vida com a vida, e o que o mundo lhe dá é troco  &