segunda-feira, 31 de março de 2014

3461) A palavra websaite (1.4.2014)



Na escola somos tantas vezes punidos por erros de ortografia que, das duas uma: ou o sujeito manda tudo pro inferno e continua a escrever “concerteza”, ou vira um Inquisidor espanhol, de fogueira em punho, pronto para imolar o primeiro que der uma escorregada.  Eu, por mim, acho que o pior erro de escrita é o que muda o sentido do que se estava querendo dizer, o que prejudica a comunicação. Não sendo assim, é um pecado menor, como mau hálito ou maus modos à mesa. Feio pra danado, mas fácil de corrigir.

Leitores vêm às vezes me corrigir o modo como escrevo certas palavras.  As mais notórias são “saite” e “websaite”.  Sempre tem um bom samaritano para me explicar que são termos em inglês, e que se escrevem “site, website”.  Beleza.  Acontece que uma das dinâmicas apropriativas da língua portuguesa é justamente esquecer como as palavras são escritas na língua de origem, e escrever o modo como nós as pronunciamos aqui. Funcionou assim com futebol, abajur, mídia (cujos originais são “foot-ball”, “abat-jour”, “media”) e mil outros.  Bato de novo numa das minhas teclas preferidas: a linguagem é primeiro falada e escutada, só depois é escrita e lida. Nosso caminho intuitivo para formação de palavras é o som, não as letras com que aludimos a ele.

A grafia inglesa “site” nos sugere instintivamente a pronúncia “síte”. Já com “saite” não tem dúvida nenhuma. Já se cogitou (e ainda se pratica) a substituição por “sítio” (“vi isso num sítio na Internet”), mas aos meus ouvidos isso não encaixa 100%. Sítio me parece uma palavra muito contaminada por outros usos. Saite é uma palavra nova para um conceito novo.

Já me brandiram triunfantes um argumento: “Então, por que escrever websaite, e não uebsaite?”.  Explico.  Esse dáblio inicial não tem perigo de ser confundido com o som de “vê”, até pela quantidade de Williams, Washingtons, etc. à nossa volta.  Nunca vi nenhum novato dizer “vebsaite”. Conserva-se a pronúncia, e neste caso conserva-se a grafia. Uma solução salomônica, que nos ajuda a identificar com presteza todo esse campo temático (“webmaster, web design”, etc.) através da letra escrita, sem prejuízo do som pronunciado.

Não espero que a língua portuguesa vá consagrar essa grafia só em atenção a minha modesta pessoa. Mas a língua é assim. As novas formas são propostas por qualquer um, como eu e você. Nunca saberemos a mecânica que faz umas dessas formas “pegarem” e outras não. (Corrigindo: não temos, por enquanto, meios confiáveis de averiguar por que motivo umas pegam e outras não.)  Cabe a cada um que propõe uma forma saber pelo menos explicar por que a está propondo. O resto é com o tempo e o vento.


domingo, 30 de março de 2014

3460) Escolhendo títulos (30.3.2014)



Ainda sobre a questão do título de um livro (ou de uma obra de outra natureza, mas que comporte um título): sua escolha deveria ser objeto das mesmas discussões madrugada adentro que os casais geralmente fazem para escolher o nome de um bebê.  Com um fator de dificultação a mais, porque o nome do bebê basta ser interessante e agradável, não tem a obrigação de condensar a essência do bebê (que nem existência tem ainda, coitado, quanto mais isso), ao passo que título de livro precisa ser tão elucidativo quanto um nome próprio, tão personalizado quanto uma impressão digital e tão expressivo quanto um rosto.

No blog de Marcelino Freire “Ossos do Ofídio” (http://bit.ly/N2DOm8) li uma divertida discussão de Clarice Lispector com dois colegas. Ela queria intitular um livro seu A veia no pulso. Fernando Sabino foi contra, porque achou que o título sugeria Aveia no pulso. João Cabral disse que o título era ótimo, que não se tratava de um cacófato, e que as veias e o pulso são coisas que a mente associa uma à outra sem muito esforço, de modo que só um idiota entenderia errado. Aliás, o livro acabou se chamando A Maçã no Escuro – muito melhor, pelo meu gosto.

O jovem romancista perseguia o escritor veterano e enchia-lhe o saco pedindo sugestão de título para um romance. Um dia o cara se encheu e disse: Me diga uma coisa. Aparece algum tambor no seu livro? O rapaz: Não, não aparece.  Ele: Bom. Tem alguma corneta? O rapaz: Claro que não!  Ele:  Então está aí seu título: Sem Tambor nem Corneta!

Esse tipo de definição por exclusão lembra o conselho de Mark Twain de que sempre que se fosse criar uma biblioteca a primeira coisa a fazer seria não comprar os livros de Jane Austen. “Mesmo que nenhuma outra obra venha a ser comprada,” dizia Twain, “só pelo fato de não ter nenhum livro dessa senhora já será uma excelente biblioteca”.

Que ave misteriosa e insondável, a Coruja da Desinspiração, habitava o campanário mental de Machado de Assis, quando ele, a certa altura, anunciou que seu próximo romance seria intitulado Último?  (Não foi: é o atual Esaú e Jacó).  Ver que mesmo um indivíduo capaz de alguns títulos primorosos, como é o caso de Machado, considera usar um título tão torto e instável como Último, mostra que nenhuma fórmula esgota as possibilidades da resposta lá fora, de centenas, de milhares de pessoas diferentes. Você está acostumado a ler Os Pardaillans, ou Anos de Tormenta ou A Mansão Misteriosa, aí de repente ergue um livro no balcão da livraria e lê: Um Pouco Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo, você se pergunta que palavrão é aquele. Aí compra – porque o título inquietou. 


sexta-feira, 28 de março de 2014

3459) É o jeito (29.3.2014)




Sim, o jeito é manter a cabeça fria, o olho focado, a mão pronta, os pés afastados, os nervos zumbindo acesos como um cabo de alta tensão de Itaipu.  

Cruzar correndo a superfície do lago, confiando na tensão superficial daquela água pouco sujeita a ondas. 

Saltar na hora do atropelamento para sair do chão no primeiro impacto e cair depois no vácuo do carro, que já seguiu seu caminho.  

Driblar uma bala perdida não é mais difícil do que fintar um miúra abufelado.  Não tem perigo que a gente não consiga eludir, não tem catástrofe que não se possa atenuar, não tem beco sem saída onde não haja uma janela baixa que alguém deixou só encostada, não tem estava-escrito que a gente não possa pedir vistas no processo e reabrir um questionamento.

É o jeito. 

Seguir em frente como a água do rio, escorrendo por onde der passagem, ou como a ave de arribação que não tem a mínima idéia de como está se orientando mas sabe que um dia chega.  

Claro que a batalha é ferrenha e muitos tombam pelo meio do caminho, e é bem provável que eu tombe também, só que não vou tombar aqui, vou tombar, se for o caso, lá depois daquela volta da estrada, depois daquela montanha bem azulzinha, mas aqui, não.  

O jeito é teimar, o jeito é continuar respirando, antes de tudo o mais, e o fato de que hoje respirei em paz o dia todo resolveu estes 95% dos meus problemas, então que venha o restante.

O jeito é tentar não dar murro em ponta de faca, não abrir janelas na parede a golpes de cabeça, não pular do prédio sem reparar se a providencial carroça-de-feno está estrategicamente colocada no ponto exato.  

Também é preciso saber tergiversar, sofismar, botar panos quentes, tapar o sol com uma peneira, ficar acordado a noite inteira, fazer redemunho de carrossel. Jeito pra tudo tem, a vida é uma bolinha que vem e você tem só que ficar rebatendo, a vida toda ela vindo e você rebatendo, porque quando erra só erra uma vez.

Jeito. Quando você menos espera, em pleno começo do Dilúvio, você se lembra que tinha feito uma arca trinta anos atrás, só pra se divertir durante uma tarde!..  

Você cai do arame rumo ao chão sem rede mas alguém rebobina e você sobe às avessas: era um filme, e você não existe. 

Mesmo na jaula dos leões ou no porão dos abutres haverá alguma porta secreta ou gaveta com fundo falso, e você escapa para um universo mais negociável. 

Ninguém pode garantir que o jeito significará necessariamente a salvação, mas o fato é que pra tudo tem jeito.  Sempre tem a terceira face da moeda, a serrilhada. Tem o rio reto, tem o pulo do gato e o salto do cavalo, tem o sexto lado do pentágono e a nobre arte de avançar mais uma casa no tabuleiro.


3458) 1984 de Orwell (28.3.2014)




Reli agora este livro que eu tinha lido apenas uma vez, em 1971, e fiquei pasmo: era exatamente o mesmo livro que eu lembrava.  Claro que durante esse período o cinema (Michael Radford) e o rock (Rick Wakeman) reavivaram a memória, mas não é qualquer livro que grava as coisas assim na memória da gente, como cinzel no metal. 

Nineteen Eighty-Four (o título original é por extenso) já foi apontado como o livro mais depressivo, ou mais pessimista, de toda a literatura, e até como “o livro que matou George Orwell”, pois o autor, trabalhando em condições difíceis, viu sua tuberculose piorar ao longo de 1948, quando concluiu o livro, publicado em junho de 1949.  Ele morreu em janeiro de 1950.

Para muita gente a obra de Orwell foi profética ao criar conceitos como o do Big Brother, que deixou de ser simplesmente a pessoa do ditador paternal, tipo Stálin ou Getúlio, e tornou-se sinônimo da sociedade supervigiada, com uma câmara-tela espiã em cada aposento. (Não literalmente – mas hoje sabemos que qualquer atividade eletrônica nossa é tão sujeita a espia quanto o diário manuscrito que Winston Smith escondia em seu apartamento, na esperança de que ninguém o revistasse.)  

O reality show que adotou esse nome acabou dando-lhe uma curiosa e atual conotação.  O Big Brother não é apenas alguém que vigia você. É alguém que faz você querer vigiá-lo o dia inteiro, passar o dia pensando nele, na programação dele, e se viciar nas imagens oferecidas por ele 24 horas por dia.

Criação de Orwell, a palavra “duplipensar” (doublethink) é muito citada mas não se incorporou à nossa linguagem, se bem que o hábito do duplipensamento seja cada vez mais generalizado. Sem duplipensar ninguém sobrevive. 

Políticos que mudam de lado e de credo com a maior das convicções, e num estalar de dedos “trocam o sinal” de seus aliados e adversários. Senhoras e senhoras respeitáveis que às escondidas mantêm vícios proibidos (drogas, sexo, etc.). Funcionários públicos trabalhando para um governo que desaprovam. 

Casais que traem e escondem.  Amigos que mentem e escondem.  Pais e filhos que mentem e escondem uns dos outros.  Isso é invenção dos tempos modernos?  Não: é da natureza humana, e volta em qualquer sociedade decadente, ou sob pressão. 

Por um lado, é a hipocrisia (e a cautela) de quem não pode revelar o que pensa. Por outro, é a disponibilidade permanente que se induz na população para que abrigue na mente idéias opostas. 

O povo tem que estar pronto para achar que “X” é bom e que “X” é ruim. Nunca se sabe de qual das duas opiniões o Big Brother vai precisar para seus objetivos, que, de qualquer modo, ninguém jamais saberá quais são.






quinta-feira, 27 de março de 2014

3457) Numa casca de noz (27.3.2014)



Vi uma postagem numa rede social, numa troca de idéias entre tradutores, comentando um livro que traduziu assim um título em inglês: A História das 40 Horas de Devoção em uma Casca de Noz. O original deve ser algo como The History of the 40 Hours’ Devotion in a Nutshell. A expressão “in a nutshell” tem o sentido de: “de forma resumida, de forma compacta, em poucas palavras”. Talvez tenha origem na famosa frase do Hamlet de Shakespeare: “O God, I could be bounded in a nutshell, and count myself a king of infinite space—were it not that I have bad dreams.”  Algo como: “Oh, Deus, eu podia ser trancado numa casca de noz e me considerar um rei dos espaços infinitos, não tivesse os sonhos maus que tenho”.

Dessa fonte clássica, talvez, veio a expressão popular “in a nutshell”, ou quem sabe ela já era popular no tempo do dramaturgo. Em todo caso, é uma dessas frases feitas, em torno de uma imagem fortemente concreta, de que a língua inglesa é rica. “Money makes a hole in his pocket” poderia ser traduzido por “dinheiro na mão dele é vendaval”, mas a imagem física da frase original suportaria ser vertida diretamente. (Ressalva: o personagem estaria deixando de dizer um clichê banal, e dizendo uma frase aparentemente fora do comum.) “I put my foot in my mouth yesterday” é mais visual do que, e tão coloquial quanto, “rapaz, eu ontem paguei o maior mico”.

Expressões populares tipo provérbios, comparações, frases feitas, aforismos, usam muitas vezes de uma força imagética que tanto tem de vívida quanto de meio sem sentido. Falar de corda em casa de enforcado?  Cor de burro quando foge?  Contar com o ovo no cu da galinha?  Pegar ar (=irritar-se)? E quando a gente traduz expressões estrangeiras, elas têm expressões de função equivalente em português, mas usando imagens completamente diversas. E algumas dessas frases, traduzidas com aquela literalidade de Millôr Fernandes em The Cow Went to the Swamp, ficam muito engraçadas, porque ninguém as diz assim em português. 

Muitas vezes a gente precisa traduzir “drunk as a lord” por “bêbado como um gambá”, mas “bêbado como um lorde” passaria imagem diferente, um contexto diferente; passaria uma ironia diferente, e como tal seria uma frase com luz literária própria. Outras não transporiam tão bem; mas quando alguma frase transpõe, o resultado literário pode ficar interessante. Se um sueco traduzir “Fulano pegou ar” para o idioma sueco conseguindo transmitir a idéia de algo inflável que vai inchando até estar bufando e a ponto de explodir... Se ele traduzir assim, pode ficar mais interessante do que a expressão equivalente lá deles.


quarta-feira, 26 de março de 2014

3456) Ferrovia subterrânea (26.3.2014)


“The Underground Railroad” foi uma organização clandestina criada nos EUA para facilitar a fuga de escravos.  Era uma série de endereços ao longo de uma linha, como uma linha de metrô onde em cada “estação” era possível esconder-se, descansar, alimentar-se, etc., mas o trajeto entre uma e outra geralmente era feito pelos fugitivos na base do “cruze os dedos e seja o que Deus quiser”.  Há um bom livro que reúne histórias de escravos e abolicionistas: Forbidden Fruit – Love Stories from the Underground Railroad de Betty DeRamus (New York, Atria, 2005).  De pouso em pouso, os escravos fujões se afastavam cada vez mais, indo rumo ao Norte, já que a maior parte da mão-de-obra escrava vivia no Sul.

Não sei se houve algo parecido aqui no Brasil, mas Joaquim Nabuco em Minha Formação (1900) faz referências às atividades abolicionistas de André Rebouças. No capítulo 21 de seu livro, Nabuco transcreve um itinerário redigido por Rebouças para a fuga de escravos paulistas rumo ao Ceará:

“Caminho de Ferro Subterrâneo do Alto São Francisco ao Ceará Livre. Estação inicial: São Paulo, junto ao túmulo de Luís Gama. Segunda estação: Pirassununga.  Terceira estação: Cachoeira de Mogi-Guaçu.  Quarta estação: Em pleno sertão, com rumo de Nordeste; o Sol deve amanhecer à direita e cair, à tarde, à esquerda.  Quinta estação: Piunhi, nascente do rio São Francisco, acompanhando sempre o belo rio, abundante de peixes e de frutos deliciosos.  Sexta estação: De um lado Goiás livre; do outro o sertão da Bahia, onde não há capitães-do-mato.  Sétima estação: Na Vila da Barra, onde começam as grandes cachoeiras do São Francisco.  Oitava estação: No varadouro das águas do São Francisco, para as do Parnaíba. Nona estação: no Paraíso – no Ceará Livre.”

Nabuco avalia esse texto de Rebouças como “pura fantasia, mas tão cheio para todos nós de vestígios de sua originalidade, de toques de sua generosa sensibilidade, quase impessoal”. 

Foi por acaso que descobri esse “exército das sombras” protegendo os negros dos EUA. Joguei “underground railroad” no Google para fazer uma pesca de livros de FC que usassem essa imagem. Por que?  Por causa do romance de Emilia de Freitas A Rainha do Ignoto (1899), descrevendo uma ilha no litoral do Ceará, onde se chega por um trem subterrâneo, num reino só de mulheres. O livro tem influências feministas e abolicionistas.  Na época em que a autora cearense escreveu, a expressão devia circular na imprensa abolicionista da época, e o que fez ela?  Recriou fisicamente essa expressão que antes era meramente metafórica.  No livro dela, entra-se numa gruta, pega-se o trem subterrâneo, chega-se à ilha.


terça-feira, 25 de março de 2014

3455) Escrever em 360 graus (25.3.2014)




(ilustração: "Random Access", Gilbert Gorsky, 1998)


Um professor nos disse uma vez: 

“Imagine toda a cena que quer escrever. Não somente o que vai ser de fato escrito, mas tudo o mais que há em volta. Faça o que for escrito refletir esse em-volta, que ficou apenas subentendido”.  

Isso era numa oficina, se bem me lembro em torno da cena de uma discussão ou briga dentro de um bar. Dois personagens numa mesa começam uma altercação, insultam-se, berram, agarram-se, e ficam brigando durante uma página inteira.  A pergunta do professor era: o bar estava vazio? Ninguém por perto? Ninguém se meteu?  Ninguém reclamou do barulho?  Ninguém olhou? Cadê as reações das pessoas em volta?

Era isso que Raymond Chandler tentava mostrar quando comparava o romance policial “hardboiled”, que ele ajudou a aperfeiçoar, com os romances policiais ingleses dos anos 1920. Nos livros norte-americanos, dizia ele, “há uma impressão maior de cenário, como se a mansão de Cheesecake Manor existisse de fato, e não apenas a parte mostrada pela câmara.”  

Este último detalhe mostra a ironia dele com o artificialismo de Hollywood, pois num filme, para mostrar uma discussão como aquela do bar, nem sempre é preciso construir o bar inteiro, basta construir as partes que a câmara vai enquadrar.  

Mas o escritor (até porque trabalha “a custo zero”) tem a obrigação de imaginar cada cena em 360 graus, não necessariamente para mostrar, mas para convencer o leitor de que o que não foi mostrado também existe.

Geralmente nos satisfazemos com a primeira idéia, quando é boa, e deixamos de ir em busca da segunda, que seria ainda melhor.  

Quando Billy Wilder estava fazendo Five Graves to Cairo, o ator/diretor Erich von Stroheim (um daqueles carecas durões tipo Vin Diesel) interpretava o marechal alemão Rommell, “a Raposa do Deserto”. O maquiador foi lhe aplicar um bronzeamento no rosto, para indicar que ele estava exposto ao sol africano. Stroheim avisou: “Deixe branco da testa pra cima, para todo mundo ver que eu estava de quépi”.

Stroheim, aliás, é o mesmo cara que ao dirigir um filme na época do cinema mudo exigiu que a campainha da casa (do cenário) funcionasse de verdade. Alguém ironizou: “O público vai escutar?”  E ele: “Não, mas o ator que está dentro da casa vai, e é diferente a reação de alguém ouvindo uma campainha de verdade e se virando, e a de alguém que meramente recebeu instruções para se virar”. 

Mesmos em livros profissionais, de autores consagrados, vê-se o tempo todo cenas que ocorrem em lugares públicos mas parecem ter ocorrido dentro de uma bolha, ou de um aquário, como se só os personagens da cena fossem reais e o resto fosse uma projeção de “chroma key” ao fundo.



domingo, 23 de março de 2014

3454) Distrito Vermelho (23.3.2014)



Dioclécio (nome de fantasia para efeito do presente texto) me confidenciou isto durante um litro de Ballantine’s e um pato-ao-maracujá, no terraço do “Silverado”, uma palhoça à beira-mar onde um publicitário bem sucedido pode beber a sós com um escritor desempregado. O comercial deles concorria a um prêmio, na Europa. A agência bancou a ida dele e da esposa ao festival. Dois dias antes, a caçula dele teve uma pneumonia. A esposa, heroicamente, ofereceu-se para ficar, e ele iria buscar o prêmio dele.  Lá vai Dioclécio, sozinho, fora do Brasil pela primeira vez, para Amsterdam.

“Bebi menos e extrapolei menos do que planejei no voo de ida,” explicou ele. Para a maioria dos homens casados, a mera sensação de não estar sendo vigiado produz uma resposta eufórica de tal magnitude que se basta a si mesma.  As esposas deveriam relaxar e ver a novela. O máximo que 53,7% deles ousarão é ficar bêbados a sós num quarto de hotel.

Na primeira brecha lá vai Dioclécio para o Red Light District. “Fui ver as atrações típicas,” defendeu-se ele, “vi até o Museu Van Gogh!...”  Era uma madrugada de inverno dezembral, mortífero, matador. “Foi engraçado,” disse ele, “vi que ela era brasileira porque dançava legal, e tinha uma camisa da Seleção Brasileira na vitrine. Achei que lá dentro podia evitar o frio, que era de deixar o rosto da gente dormente, paralisado, meu Deus, que coisa.”

Um minuto depois Dioclécio estava dentro da cabine e tentava explicar à mulher que na verdade não pretendia manter relações com ela, ooops, mas sendo assim, ok, calma, tudo bem, claro, na boa, mas agora, agora que podemos respirar, será que ela sabe o quanto está sendo explorada? E ela lhe diz: “Conterrâneo, bem se vê que você nunca teve que dar pra não passar fome. Isso aqui é bom demais. Garantia estatal, fiscalização sanitária, pagamento garantido, e, vou te contar, aqui aparecem mais nerds deslumbrados do que serial-killers com problemas. Nunca trabalhei tanto, daqui a pouco vou ter que botar meia-sola, porque a demanda é impressionante. Volte pro Brasil e dê lembrança à ordem e ao progresso.”

Vejam como é bom frequentar o Primeiro Mundo! Dioclécio pegou o prêmio e voltou para casa, um novo homem, para viver uma nova vida. “É engraçado,” disse-me ele, “resolvi largar meu emprego justamente na hora em que aquela garota me deu de bandeja a melhor das desculpas para ele...”  Comprou um lugar na Serra, perto de uma cachoeira, começou a fabricar pão, a dar aulas de violão, e a família me parece muito feliz desde então; inclusive nunca mais a menina teve pneumonia.  Então de alguma maneira deve ter sido uma mudança positiva.


sábado, 22 de março de 2014

3453) A Ameaça Estranha (22.3.2014)



O universo da pulp fiction (policial, ficção científica, terror, fantasia, faroeste, guerra, aventura marítima, aventura com automóveis, romance de amor...) é vasto.  Tão vasto que nele floresceu uma planta exótica, como a orquídea-vampira imaginada por H. G. Wells: a história de “weird menace”, que poderíamos traduzir pobremente como “ameaça estranha”. É um subgênero limítrofe entre o policial e o terror, porque envolve uma história de crime, só que desencadeada por pessoas (e transcorrida em ambientes) que vêm diretamente do romance gótico ou daqueles seriados dos anos 1930 cheios de vilões exóticos, grotescos, mais próximos dos quadrinhos de super-heróis do que da literatura.

As revistas mais famosas especializadas (mas não exclusivamente) em histórias de weird menace foram Dime Mystery, Horror Stories, Terror Tales, Uncanny Tales... Era um mercado fértil, onde algumas revistas surgiam, ficavam no mercado alguns meses e sumiam para sempre.  A história básica do gênero envolve o herói, a mulher e o vilão, que é sempre excêntrico.  Pode ser um supercriminoso como tinham sido Fantomas e Fu Manchu, ou um cientista louco, um monstro de algum tipo. O vilão se apossa da mulher, às vezes do casal, a quem submete a sevícias, ameaças, etc.  E o herói, quase sempre um sujeito comum, precisa invadir o castelo ou a mansão sombria, acessar o porão ou o laboratório, matar as feras ou os zumbis que protegem o espaço, driblar as máquinas e as armadilhas espalhadas por toda parte, matar o vilão e resgatar a mocinha.

Algumas revistas de weird menace custam caríssimo hoje (vão de cem a mil dólares) no mercado de sebos nos EUA. Capas e ilustrações mostram, de modo reiterado, mocinhas seminuas (roupas rasgadas, pernas e seios à mostra) sendo submetidas a torturas, amarração, maus tratos, e sendo manipulada por monstros, mortos-vivos, etc.  São um capítulo importante na construção do imaginário sado-masoquista norte-americano, em que o sexo está associado a imagens de violência, sujeição, ameaça de tortura, deformações físicas, criaturas bizarras. O melhor estudo que conheço é The Shudder Pulps de Robert Kenneth Jones (Fax Collector’s Edition, 1975), que vale inclusive pela fartura de ilustrações em p&b, e tem capítulos com títulos saborosos como “The Defective Detective”, “From the Esoteric to the Erotic”, “Foul Fiends and Fair Maidens” e “Gothicism’s Last Gasp”. E de fato ela representou a última (até agora) encarnação da literatura gótica tipo terror + erotismo, como The Monk (1796) de M. G. Lewis ou o Manuscrito de Saragoça (1815) de Jan Potocki.


sexta-feira, 21 de março de 2014

3452) Rivaldo (21.3.2014)




Aposentou-se um dos melhores jogadores brasileiros dos últimos vinte anos.  Rivaldo está com 41, provavelmente não tem problemas financeiros, e se eu tivesse feito dez por cento do que ele fez já estava aposentado há muito mais tempo.  Rivaldo é um dos jogadores menos carismáticos que já ganharam finais de Copa ou foram eleitos o melhor do mundo.  Ele é aquele cara caladão, arredio, que não gosta de muito gracejo nem de muita conversa fiada.  Meio sertanejo nesse modo que parece carrancudo mas na verdade é só cauteloso, principalmente num meio em que os jogadores são obrigados a agir como garotos-propaganda de si mesmos, do time, da seleção, de um monte de produtos que os financiam. Rivaldo deve ter feito lá seus comerciais; todo mundo fez; mas não é propriamente aquele cara que um empresário perca o sono querendo associar a ele a sua marca.

Diz-se que Rivaldo não gostava de pagode, não bebia, não era de muita conversa, embora fosse correto e atencioso com os colegas. Jogadores assim se impõem quando há respeito técnico (em geral, quando um cara é craque todo mundo percebe) e um equilíbrio de convivências. Jogador extrovertido e risonho vai pro Cazaquistão sem falar nem inglês e se dá bem, fica amigo de todo mundo.  Já o carrancudo cria clima até na casa onde mora.

O futebol de Rivaldo tinha aqueles passes de cinquenta metros de Zezinho Ibiapino, de Gérson, de Falcão, uma matada de bola perfeita, um chute seco da entrada da área que ele botava onde queria. Ficou meio marcado na Seleção por algumas derrotas, ainda na fase olímpica, mas o que ganhou depois apagou tudo.  

Muitos jornalistas concordam que o maior jogador da Copa de 2002 não foi o craque oficial (Oliver Kahn) nem o artilheiro (Ronaldo), e sim o nosso macambúzio armador, que fez com frieza e talento alguns gols decisivos e facilitou gols alheios. Na final contra a Alemanha, machucado, teve parceria nos dois gols de Ronaldo. O que fez no Barcelona está preservado em DVDs e YouTubes.  Gosto de lembrar uma vitória por 3x2 no Nou Camp cheio, com três gols dele, o último no último minuto, de bicicleta. O mundo veio abaixo. Pensam que aquele barulho começou com Messi?

Rivaldo é como aqueles cantadores velhos que, quando o vento do mundo ficou mais frio, não fazem festa nem fazem despedida.  Sabem que o momento torrencial já passou e que não precisam se espremer até a última gota.  Quando sentem que não estão mais à altura da grande arte, quando sentem que a arte deles já está indo embora e eles ficando para trás, não avisam a ninguém, não querem homenagem, não querem incomodar ninguém. Quando chega o ano que vem, eles simplesmente não viajam mais.


quinta-feira, 20 de março de 2014

3451) "Trapaça" (20.3.2014)



(Amy Adams, Jennifer Lawrence, Amy Adams)

American Hustle (David O. Russell, 2013) é um desses filmes de golpe-sobre-golpe, em que dois ou mais grupos de criminosos (policiais, espertalhões, mafiosos, etc.) se misturam e cada pessoa começa a representar um papel duplo, e às vezes triplo, para que a cilada tenha sucesso, uma cilada que o espectador está e não está sempre a um passo de compreender por completo.  Feliz o filme que deixa nesse espectador a sensação de que o conseguiu.

Um golpista que deixa tão evidente sua tentativa de disfarçar a careca e a barriga que todo mundo se esquece de verificar seus dados. Uma inglesa que só falta dizer que é de London, Texas.  Um agente federal cheirado de pó até a raiz dos cabelos, trincado como uma explosão num cofre-forte, bolando esquemas rocambolescos para enjaular políticos corruptos usando vigaristas-em-xeque como isca. Uma loura burra que, a golpes de lourice e esperteza consegue acabar o mundo e melhorar de vida.

A história é em cima dos dois casais principais; entre os coadjuvantes estão Robert DeNiro e Jeremy Renner (de The Hurt Locker). Existem alguns filmes de golpe (de assalto a banco, p. ex.) onde o enredo é complicado como um mecanismo de relógio, e os personagens ficam parecendo robôs que entram, batem as horas e se afastam. Este aqui pertence talvez a um subgênero onde a história inteira (o golpe, a verossimilhança que o conto-do-vigário precisa ter aos olhos da vítima) depende de um mundo de pequenos detalhes, mas os personagens, em vez de recitarem os papéis direitinho, extrapolam, têm crises, arrependem-se, mudam de idéia ou têm uma idéia melhor em cima da hora, e isso joga o roteiro para o alto, em parafuso.

Outra coisa. O filme se passa em 1978, tem ambientação e figurinos ótimos de época, trilha sonora inevitavelmente pra-quebrar-tudo. Os seios das atrizes principais, Amy Adams e Jennifer Lawrence, são a cara daquele tempo pré-silicone, pré-Photoshop.  Mulheres daquela faixa não usavam soutien, tinham os peitos caídos, mostravam-nos sem mimimi e achavam-se lindíssimas. As duas fazem isso com brilhantismo. No mundo de hoje, regido por “personal musculators”,  peito caído é pior que passaporte vencido. Vivam os anos 1970, em que o culto ao corpo ainda não tinha arrastado todas as mulheres do mundo para uma Esparta regida por publicitários e fotoshopeiros. Neste filme, os figurinos das duas atrizes foram (aos meus olhos leigos, porém atentos) uma viagem em flash-back por aquela época, que cortejou o artificialismo mas teve uma surpreendente vitalidade. Um tempo em que as mulheres se expressavam mais dançando do que posando para retratos.



quarta-feira, 19 de março de 2014

3450) Senhores e escravos (19.3.2014)




(Frederick Douglass, 1818-1885)


Maîtres et Esclaves foi o título dado em francês ao nosso Casa Grande & Senzala (1933)  de Gilberto Freyre.  Um livro clássico e polêmico desde o início, remexendo nas camadas inconscientes e coletivas da civilização do açúcar, e reorientando discussões sobre escravidão e raça.  

Já li Freyre escondido de alguns amigos, para os quais ele era um burguês que negava a existência de racismo no Brasil.  Freyre era um burguês, sim, mas, como ele mesmo observa em O Camarada Whitman (1948), “burguês não no seu sentido marxista mas no francês, no flaubertiano, em que se contrapõem não burguês e proletário, mas burguês e artista”.  É medida do seu talento e de sua complexidade ter sido burguês e artista com intensidade igual.

Freyre descascou muitas camadas emocionais dos séculos de contato íntimo entre famílias brancas e escravos pretos. Citei dias atrás Joaquim Nabuco, em Minha Formação (1900), falando dos laços de afeto entre senhores e escravos. Naquele livro, Nabuco anota em seu diário, em 1877, durante sua estadia nos EUA: 

“19 de junho. Os jornais têm hoje um fato interessante: a visita feita por Frederick Douglass ao seu velho senhor, que deixou na adolescência, para começar a vida de aventuras que o levou até a ser ‘marshall’ em Washington e o grande orador da abolição que foi. ‘Vim antes de tudo,’ disse Douglass, ‘ver meu velho senhor, de quem estive separado quarenta e um anos, apertar-lhe a mão, contemplar-lhe o velho rosto bondoso, brilhando com o reflexo da outra vida’”.

Nabuco diz que essa cena o comove mais do que A Cabana do Pai Tomás. A reconciliação entre o ex-escravo e o ex-dono, que ele não via desde os dezoito anos, se deu após a Guerra da Secessão e a emancipação dos escravos, quando Douglass já era escritor e orador famoso, e já tinha até se candidatado a vice-presidente dos EUA.  

E olha que, segundo os registros, o Capitão Thomas Auld, nos velhos tempos, entregou Douglass a um feitor tido como “amansador de escravos”, para meter a chibata no rapaz e fazê-lo desistir de ler e de discutir idéias. (Não conseguiu, claro.)

O episódio, que Nabuco considera “uma das mais profundas e penetrantes apresentações do fato moral complexo da escravidão”, se deu no contexto de uma nação ensanguentada e partida ao meio por uma Guerra Civil que deixou quase 700 mil mortos. 

Parece que naquele momento valeu mais a pena, para ambos, deixar que as feridas cicatrizassem, e tentar reunir cidadãos de boa vontade para renegociar o futuro. 

A escravidão foi um crime que só deixou três respostas possíveis: a vingança, o perdão e a justiça.  Difícil é definir a natureza e a medida de cada uma.






terça-feira, 18 de março de 2014

3449) Bernard e Jean-Claude (18.3.2014)




Bernard Madoff é o cidadão responsável pela maior “pirâmide” financeira já desmascarada nos EUA, onde essa maneira de lesar os incautos se chama “Ponzi scheme”.  Madoff pegou bilhões de dólares de milhares de pessoas e de empresas, falou que estava aplicando e que iria pagar belos dividendos.  Quando alguém cobrava, ele tirava do “bolo” para pagar aquele cliente. O “pobrema” é que em casos assim o bolo vai ficando cada vez menor, e se uma certa quantidade de gente cobrar o seu ao mesmo tempo, a banca vai quebrar. A de Madoff quebrou em 2009. Ele fez desaparecer 65 bilhões em economias alheias, faliu milhares de clientes, e está cumprindo 150 anos de prisão sob o número 61727-054 numa cadeia na Carolina do Norte.

Madoff parece com um daqueles implacáveis “tycoons” em quem Philip Marlowe vive a tropeçar na Califórnia, mas muito mais parecido com ele é um personagem real, um francês chamado Jean-Claude Romand, que durante anos foi diante da família um médico que trabalhava na Organização Mundial de Saúde e todo dia deixava sua casa na França e cruzava a fronteira suíça. Romand vivia, na verdade, gastando as economias de seus amigos e parentes. A polícia descobriu que ele não era sequer médico, nem trabalhava em Genebra: ficava zanzando, passeando, lendo revistas médicas. As pessoas que lhe entregavam dinheiro começaram a querer o seu. Ele começou a ficar sem. E, no seu caso, desencadeou uma chacina familiar que ficou na história; há um livro e um filme, chamados O Adversário.  (Aqui, textos meus a respeito: http://tinyurl.com/mqahfyy, http://tinyurl.com/lfwqbzy)

Alguns bancos já faliram com meu dinheiro dentro, mas, felizmente, sempre deram um jeito de serem devorados por uma baleia confortável, e, quando precisei, meus caraminguás estavam intactos, felizes, abanando os andrajos na minha direção. Dois personagens: fico olhando o esquema faraônico de um e a tragédia shakespeariana do outro.  O fato de Romand ter podido ocultar seus trambiques da esposa, dos filhos, das autoridades, mostra que era um sujeito capaz de passar uma imagem de confiança, de serenidade. Ele não devia ser (a não ser na reta final da catástrofe) um sujeito que gaguejava, que caía em contradição. Madoff passou décadas enfrentando o mercado financeiro mais lupino do mundo, além da imprensa e dos advogados de Manhattan. Como durou tantos anos? A resposta: eram homens que infundiam confiança. Indivíduos acima de qualquer suspeita.

E na verdade tanto Bernard quanto Jean-Claude não são ninguém.  São apenas dois casos trágicos em que o Espírito do Nosso Tempo habitou um indivíduo inteiro de uma só vez, e o fez arder até o fim.


domingo, 16 de março de 2014

3448) Uns títulos (16.3.2014)



Quando Raymond Chandler lançou o romance The Little Sister em 1946 um amigo questionou alguma coisa a respeito do título, e ele respondeu, por carta: “Meu título pode não ser muito bom. É somente o melhor a que eu pude chegar sem forçar muito. Minhas idéias a respeito de títulos são meio peculiares.  Eles nunca devem ser provocativos de maneira óbvia, nem falar de assassinato. Devem ser bastante indiretos e neutros, mas o formato das palavras deve ser pouco usual. Não consegui isso, neste caso.  No entanto, como já disse um grande dono de editora, título bom é o título de um livro de sucesso.  Assim de improviso ninguém seria capaz de dizer que The Thin Man (O Homem Magro, de Dashiell Hammett) é um grande título.  O Falcão Maltês é, sim, porque tem rima e tem ritmo, e obriga a mente a fazer perguntas”.

Veja-se como ele se preocupa com a busca de uma certa sonoridade, refletida nessa rima interna “al-al” (“Maltese falcon”) no livro de Hammett.  O que Chandler não comenta, e até hoje nunca o vi tocar nesse assunto, é a curiosa simetria de alguns dos seus títulos, os que eu chamo “das dimensões”: The Big Sleep, The High Window, The Little Sister, The Long Goodbye.  Grande, alto, pequeno, longo. Ele usou isto quase com certo abandono, mas deixou claro que não era uma fórmula obrigatória, encaixando Farewell, my Lovely, The Lady in the Lake e Playback

Fórmula fixa mas rica em combinações: resquício da pulp fiction.  Os romances de Perry Mason, que ele tanto elogiava, tinham fórmula fixa: O Caso do X...... X...... (palavras com a mesma inicial).  Ellery Queen tinha sua famosa série de romances “nacionais”: O Mistério do Ataúde Grego, do Sapato Holandês, do Chapéu Romano, da Cruz Egípcia....  Cornell Woolrich tem dez ou doze livros com a palavra “dark” ou “black” no título. A fórmula testada quatro vezes por Chandler é mais sutil.  Ela se assemelha à da série de romances de John MacDonald em que cada título sugere uma cor.

The Lady in the Lake é um livro quase todo fora de Los Angeles, mas L. A. está toda no título.  É interessante que quando ele começou a escrever The Long Goodbye queria usar o título Verão em Idle Valley.  Parece um título de matéria-paga em revista náutica, mas Chandler provavelmente queria usar esse ambiente para contrastar com uma história sórdida e cruel.  Já o título de um dos seus contos, “No Crime in the Mountains” (“Nada de crime nas montanhas”), tem ritmo, quase rima, e soa parecido com uma multidão de outros, além de fazer a cabeça pensar: sim, mas se não houve crime, então o que é que há?  A tradução tenta manter a cadência interna típica do verso. Só que trocando as cinco sílabas do original por oito nossas.


sábado, 15 de março de 2014

3447) Pênalti perdido (15.3.2014)




Eu estava sentado com Zé Maguinho no Bar da Tripa. Eram treze horas pingantes de sol na moleira do tempo.  Na mesa à nossa frente a rapaziada veio depositando o isopor em forma de bala de canhão, as duas tigelinhas fumegantes de fava com charque, o limão recém-cortado, a pimenta boquinha, a pimenta lavareda, a farofa torrada, e as duas lapadas de Matuta que erguemos um para o outro com solenidade, fizemos tim, e vupt. 

O Brasil não sabe, mas Zé Maguinho é o maior craque surgido em Campina Grande depois dos abalos sísmicos da tal Copa de 2014, por uma série de razões, dali em diante os campeonatos regionais voltaram a ser os centros da atenção e da felicidade geral, pois quando um cara nasce pra ser torcedor nunca lhe falta alguém por quem torcer. Zé Maguinho, armador estilo clássico, foi tricampeão 2016-17-18 pelo Treze. Alto, magro, estilo de guerreiro zulu, lá no São José ele lembrava o saudoso Assis, e em Zé Pinheiro o saudoso Araponga. E dito isto, está dito o mais importante.

A gente tinha estudado juntos no Estadual, foi companheiro de farra, acompanhei a glória do tri e depois vibrei com a ida dele para o futebol russo, o mais rico do mundo. Agora ele estava de férias na Serra, e tínhamos marcado naquele bar, onde ninguém viria tietá-lo. A certa altura, perguntei pelos pênaltis. Comigo ele comentaria aquilo de peito aberto, o que não fez na imprensa internacional. 

Zé Maguinho tinha perdido dois pênaltis cruciais, jogando pelo “Racha-zaque”, como ele chamava o time dele. Batedor oficial do time, no jogo de ida da final perdeu um, no último minuto, com placar 0x0. “O time saiu de campo morto, mas foi leal comigo,” disse ele.  Na final, no domingo seguinte, um pênalte no começo do segundo tempo... e ele perde de novo. “Peguei muito embaixo”, foi só o que disse. O time jogava pela vitória. E antes do jogo acabar, novo pênalti. Zé Maguinho ofereceu a vez. Alguém bateu e fez o gol do título.

“Foi esse o que eu perdi de fato,” disse ele. “Sabe por que? Porque eu desisti de tentar. Li isso num livro: só se perde quando não se tenta.  Mas isso foi meses depois desse jogo.”  Brindamos e viramos outra lapada, que desceu cauterizando tudo. Zé Maguinho, irresponsável, maconheiro, raparigueiro, cuja única leitura era legenda de filme pornô, subiu pelas asas do futebol até um mundo de aeroportos e livros de auto ajuda.  E agora, diante de mim, produzia sua primeira interpretação filosófica do que lhe acontecera.   E era um cara de muita sorte, a quem a torcida local era grata, porque lá, por um pênalti só, já vi muito futuro craque ser amarrado e arrastado por uma Ferrari do estádio aos subúrbios, onde se larga o que restou dele.


sexta-feira, 14 de março de 2014

3446) Os dois escorpiões (14.3.2014)




(Josef Stálin, Bernard Madoff)

O Comunismo era um escorpião feito de ferro, cimento, vapor, eletricidade, com duzentos milhões de células humanas. Karl Marx dizia que o comunismo só poderia ser estabelecido num país plenamente desenvolvido e industrializado, como a Inglaterra ou a Alemanha de seu tempo.  Por uma dessas ironias da História, Lênin tentou implantá-lo na Rússia, o país mais vasto do mundo, e um dos mais atrasados, embora tivesse uma elite refinada, cavalheiresca e culta. Confirmando a advertência de Marx, não deu certo. Lênin morreu no meio do caminho e foi substituído por Stálin, um dos exemplos mais rematados de gangster que a história já conheceu.  Questionar o comunismo alegando Stálin é como questionar o Islã alegando Saddam Hussein. Se Marx tivesse visto a Revolução Russa teria ficado furioso com as liberdades filosóficas e partidárias tomadas por Lênin. Se visse Stálin, daria um tiro nos miolos.  Lênin tinha muitos defeitos (inclusive caretice poética e cinematográfica) mas era um pensador de verdade e um ativista de verdade, numa só pessoa.  Já Stálin era um Al Capone  canastrão, cercado de ghost-writers.  Como todo gangster bem sucedido, tinha faro de fera e olho de rapina quando se tratava de guerras ou de intrigas palacianas.  O Stalinismo começou a afundar com sua morte, mas só terminou quando caiu o Muro de Berlim.  O Comunismo (sua versão soviética) suicidou-se ritualmente por excesso de concentração, de centralização, de fechamento e colapso em black-hole.

Já o nosso confortável Capitalismo está morrendo por excesso de Liberdade, ou melhor, pela enorme plasticidade com que esta importante palavrinha se encaixa em qualquer discurso. A atual mega-crise financeira cujo abalo mais forte foi em 2008 parece ser uma combinação de filosofias de lucro a qualquer custo e lealdades a qualquer preço.  Não o espectro comunista, mas o fantasma da liberdade: “o mercado tem que ser livre”.  Ou seja, eu devo ser livre para mudar as regras do jogo que meu time está disputando.  Houve um desmonte programado de fiscalizações, atividades de agências reguladoras, trocas de poder, vitórias pirotécnicas de um grupo de investidores sobre outros. Na América, a terra natal do dinheiro eletrônico, isso virou um jogo, onde até mesmo os bilhões ficam em segundo plano. Mais importante do que ser rico é ter desempenho nesse complicado RPG, um game que esses grandes investidores praticam a sério. A URSS morreu de concentração centrípeta, os EUA vão morrer de espiral centrífuga.  O Capitalismo é um escorpião feito de néon, silício, LCD, vapor browniano e filamento incandescente de carvão.





quinta-feira, 13 de março de 2014

3445) Nota Onze (13.3.2014)



Li uma historieta certa vez em que um aluno, depois de fazer uma excelente prova subjetiva (com pequenas dissertações respondendo cada pergunta) queixou-se ao professor de ter ficado com a nota 9,5.  O professor respondeu: “Nove e meio significa que você acertou tudo. Pra tirar 10, você vai ter que me ensinar algo que eu não sabia.”  Eu diria que cada professor, por mais incompreendida que seja sua matéria (pense Física, pense Matemática) encontra de vez em quando um aluno que se destaca de todos os outros. No meio de quarenta da turma ou de quinhentos do colégio, ele chama a atenção pelo seu brilho numa matéria.  Em papo de sala dos professores, já vi um colega mostrando aos outros uma prova e dizendo: “Essa garota fez uma prova tão boa que eu tive vontade de dar onze. Um 10 me pareceu uma nota chocha.”

Você só se destaca naquilo onde você excede, e mais, naquilo que você excede por conta própria, por exuberância sua, e não por cobranças vindas de fora.  O aluno que faz uma prova impecável, toda respondida bem direitinho, leva para casa um 10 e acha que abalou.  Nem sempre.  Às vezes uma prova nota 10 nos deixa a sensação de que aquele aluno aprendeu apenas o necessário para acertar tudo, mas se a prova tivesse uma pergunta a mais ele talvez não soubesse respondê-la.

O ideal seria que todos os alunos tivessem um bom nível de entendimento e de aplicação, fizessem provas satisfatórias, etc. Nunca vai acontecer, principalmente num meio social irregular como o nosso.  E é bom que não aconteça. Prefiro os desníveis da vida real do que uma grande proficiência coletiva mas de forma robotizada, impessoal, onde todo mundo é aluno modelo mas é incapaz de ir além do que está sendo ensinado. O objetivo do ensino é jogar os alunos numa situação em que eles esqueçam “o que cai na prova” e aprendam mais do que seria necessário: só então vão surgir os que excedem.

O professor sabe reconhecer, entre os bons alunos (nem falo no restante), qual é aquele que está simplesmente na busca aplicada por uma boa nota, e aquele que está absorvendo o assunto da matéria por interesse próprio, por entusiasmo próprio. É esse que eu chamo de “Aluno Nota Onze”, porque muitas vezes ele, na excitação de pesquisar por conta própria, acaba trazendo aspectos da matéria que o professor não tinha abordado, trazendo problemas novos, propondo soluções diferentes. E não é raro esse papo de “o aluno ensinar algo ao professor”. Eu já ensinei coisas que professores meus conheciam menos do que eu; e quando professor fui ensinado por alunos que dedicavam àquele assunto mais tempo e mais energia do que eu.  É assim mesmo. É a respiração normal do ensino.


quarta-feira, 12 de março de 2014

3444) Nosso racismo (12.3.2014)



No balanço de vida que faz em Minha Formação (1900) Joaquim Nabuco registra os sentimentos contraditórios e sofridos de abolicionistas brasileiros que eram de famílias escravocratas.  Ter escravos não causava a essas famílias mais dramas de consciência do que causa, às de hoje, o fato de ter cozinheiras e babás. Fazia parte do tecido social, e se estava funcionando a contento, quem ia mexer?  Quem se dispôs a mexer foram os abolicionistas, beneficiários do sistema, mas dispostos a sacrificar-se junto com ele. E ainda tiveram que ouvir as piadinhas inevitáveis: “Como assim, seu pai tinha 300 escravos e você quer acabar com a escravidão?...”

No famoso capítulo “Massangana” desse livro, Nabuco reconstitui momentos de sua infância, lembra sua Madrinha cercada de escravos, e a noite da morte dela, com ele ainda menino. Lembra o desespero dos escravos que não sabiam o que seria feito deles a partir daí: “A mudança de senhor era o que havia mais terrível na escravidão, sobretudo se se devia passar do poder nominal de uma velha santa, que não era senão a enfermeira dos seus escravos, para as mãos de uma família até então estranha. (...) O que mais me pesava era ter que me separar dos que tinham protegido minha infância, dos que me serviram com a dedicação que tinham por minha madrinha, e sobretudo entre eles os escravos que literalmente sonhavam pertencer-me depois dela.”

Nabuco aponta inúmeras vezes um sentimento que admira: o sentimento de gratidão dos escravos para com aqueles senhores que os tratavam bem, cuidavam de suas famílias, não usavam de castigos. Numa espécie de Síndrome de Estocolmo antecipada, os escravos se afeiçoavam aos senhores: “Não só esses escravos não se tinham queixado de sua senhora, como a tinham até o fim abençoado... A gratidão estava toda do lado de quem dava. Eles morreram acreditando-se os devedores”.

Muitos abolicionistas responderam a essa gratidão com um sentimento simétrico: a necessidade dela. Depois da enorme desumanidade que foi a escravidão, a única coisa capaz de contentar os que lutaram pelo seu fim seria o agradecimento dos libertos.  Uma parte substancial da nossa elite tornou-se refém do perdão dos negros. Sem esse perdão, sem a garantia de um “agora estamos quites” teria servido pouco a Abolição. Serviu em parte; continuam a existir dois Brasis, e o Brasil branco continua refém da gratidão dos negros por algum benefício recebido. E enquanto essa gratidão problemática for a melhor alternativa para o ódio racial e o sentimento de vingança que existe em outros países, é com a cobrança dela, a expectativa dela, que é preciso conviver.


terça-feira, 11 de março de 2014

3443) "Inside Llewyn Davis" (11.3.2014)



É um daqueles filmes dos irmãos Coen onde um artista desnorteado e sincero vive a dar com a cara nas portas do mundo (Barton Fink), ou uma daquelas tertúlias etnológicas pela música rural norte-americana (E aí, meu irmão, cadê você?).  Um daqueles filmes cheios de piscadelas para aficionados e ao mesmo tempo daquelas terríveis rodovias enxergadas através do parabrisa de um carro à noite, quando sentimos que naquele momento tudo aquilo é real e mesmo sendo um filme qualquer coisa pode acontecer.

Llewyn Davis é um cantor de música folk que percorre os bares do Greenwich Village num daqueles momentos mágicos do espírito, a New York de 1961, semelhante à Londres de 1890, à Paris de 1925, ao Rio de Janeiro de 1958. Um foco cultural aceso numa cidade capaz de lhe ser receptiva. O Village abrigou poetas beatniks, teóricos da contracultura, cineastas de vanguarda, mas os cantores de protesto ou de tradição étnica (aqueles irlandeses de suéter, que conseguem fazer uma consoante ter sonoridade interna equivalente à de uma vogal) também são a cara daquela época.  Ficou Bob Dylan como o mais famoso, mas basta ler as Crônicas dele próprio: ele lembra músicos dos bares daquele tempo que talvez não tenham nem verbete na Wikipedia.  Samuel R. Delany também conta em suas memórias que por pouco não recitou poesias num bar na mesma noite em que um tal de Bob Dylan ia cantar. Esses filmes de época são sempre pedaços da biografia de alguém, estão ligados à vida pessoal de alguém. 

Llewyn Davis é talentoso, é bom sujeito, mas vive metendo os pés pelas mãos e dando com os burros nágua. Curiosamente, este filme me lembrou o Não Estou Lá que estilhaçou a biografia de Bob Dylan em vários personagens específicos.  Llewyn Davis é um daqueles Dylans iniciais, parelho ao negrinho que se diz chamar Woody Guthrie e ao personagem cowboy-de-sapatos de Christian Bale. Minha teoria é de que existe mesmo um arquétipo chamado O Bardo, e cada um desses caras traz algumas canções dele. Somos heterônimos dele, mas na verdade é ele quem escreve tanto a obra do poetinha romântico quando a do profeta apocalíptico. Uma espécie de Mega-Fernando-Pessoa, que escreve tudo, e tem alguns bilhões de heterônimos.

Cada verso da gente foi escrito pelo Bardo, usando o rudimentar instrumento que é nosso estilo pessoal, nossa nitidez e limitação. O Bardo precisa de vários transmissores para chegar aos humanos. Todos os poemas de qualquer poeta são do Bardo, que por consequência é o próprio Llewyn Davis. Uns vão em busca do Hall of Fame, mas aí tem um que consegue entrar na Marinha Mercante e consegue enfim descobrir quem é.


domingo, 9 de março de 2014

3442) Literaturas leves (9.3.2014)



(manuscrito de Dostoiévsky)


Escreve-se em parte para imitar quem veio antes, e em parte, também, para se distinguir de quem veio antes.  

É a dinâmica óbvia de qualquer atividade humana. Você aprende o que já existia, mas torna-se um potencial introdutor de ruído significante, de anormalidade criativa no sistema, de algo que depois venha a ser assimilado, e passe a fazer parte da forma ou da própria constituição desse sistema. 

Tudo avança dessa maneira, seja o romance de aventuras serializadas dos anos 1920 ou os projetos de motores de Fórmula Um.

Não se deve confundir literatura com ficção. A ficção (romance, conto, novela, etc.) é uma fatia robusta mas limitada. Cartas, ensaios, sermões, tudo isso é literatura, e tudo isso pode vir a ser Grande Literatura (que é tudo que algumas pessoas admitem que “é literatura”). Basta ser uma demonstração de técnica e inovação explorando ao máximo as possibilidades do gênero, dentro das limitações técnicas, do espírito e das obsessões de cada escritor.  

Pode haver mais Grande Literatura numa carta ou num diário íntimo do que em muitos romances.

O conceito varia devagar, mas varia; e varia de país em país, não só ao longo do tempo. Em algumas épocas do passado, e em algumas culturas de hoje, ser literário é ser rebuscado; em outras é o contrário, pela dinâmica natural de contraste.  Gênios de um século já retornaram à obscuridade no próximo e foram resgatados (e vítimas de mal-entendidos cheios de boas intenções) 200 anos depois.

Se os Sermões do Padre Vieira e os Lusíadas de Camões continuam legíveis hoje é porque foi deles que herdamos grande parte das maneiras de dizer de hoje. Se textos escritos 200 anos depois deles nos parecem ininteligíveis é porque não deixaram influência, não serviram de modelo, não se incorporaram à maneira coletiva de dizer as coisas.

Não é porque estamos escrevendo um texto não-literário que devemos abrir mão da literatura. Os relatórios de prefeito escritos por Graciliano Ramos foram o primeiro sinal de que ele estava trazendo à nossa língua uma maneira pessoal de dizer as coisas, quaisquer coisas, inclusive as mais banais e as mais burocráticas.

Não existe nenhum tipo de texto onde seja impossível instilar Grande Literatura; o que há é que nem sempre isso é desejável, por motivos que o bom senso deve sempre reconhecer. Mas não há literatura leve, ou melhor, ela só o é por opção. 

Pode-se fazer Grande Literatura numa letra de funk, num anúncio de detergente, num editorial político, num encarte de CD, num trabalho de conclusão de curso, num bilhete pra uma rapariga, numa cantiguinha infantil, num post de rede social. É só querer e ser capaz.





sábado, 8 de março de 2014

3441) Chandler e Ian Fleming (8.3.2014)



Raymond Chandler, o criador de Philip Marlowe, e Ian Fleming, o criador de James Bond, se conheceram em abril de 1955, quando Chandler, que era meio irlandês (por parte de mãe), e tinha estudado na Inglaterra, retornou àquele país depois de muitos anos. Já era um escritor rico, famoso, paparicado por jornalistas e socialites. Fleming estava longe do sucesso, tendo publicado (sem grande repercussão) apenas 3 aventuras de Bond: Casino Royale, Live and Let Die e Moonraker. Ele recorda que Chandler foi gentil, elogiou Casino Royale, mas “parecia incapaz de falar de outra coisa a não ser a perda recente da esposa, e falava disso de maneira tão aberta e franca que me embaraçou e ao mesmo tempo me despertou grande afeto por ele.” Um biógrafo de Fleming registra que os elogios e o incentivo de Chandler (os dois continuaram se correspondendo) foram cruciais para que Fleming não desistisse de escrever.

Numa visita seguinte, em 1958, os dois gravaram uma entrevista conjunta na BBC cujo áudio original, em 4 partes, está aqui: http://bit.ly/1gCUPfZ. (Há uma transcrição, meio incompleta mais útil, aqui: http://bit.ly/1bMG3FX). A esta altura, Chandler (que morreria no ano seguinte), mantinha o humor ácido e a inteligência, mas estava num período brabo de alcoolismo, enquanto Fleming curtia seu grande momento de sucesso. Tinha acabado de lançar From Russia with Love e Dr. No, e na conversa menciona o próximo livro a sair, Goldfinger. Chandler tinha acabado de escrever o que seria seu último livro, Playback, do qual Fleming lê e comenta alguns trechos. Os dois conversam sobre o método mais prático de praticar um crime encomendado, sobre agentes secretos e detetives particulares na vida real, e comentam as características dos seus personagens famosos.

Eram escritores muito diferentes, e sabiam disso. Fleming explica que seu trabalho como jornalista lhe garantia dois meses de férias na Jamaica todo ano, e por isso ele podia lançar um romance por ano. Chandler, um reescrevedor nato, para quem cada capítulo era um parto, comenta que jamais conseguiria escrever um livro em dois meses.  Fleming diz (com naturalidade, sem bajulação): “Ah, mas você escreve livros melhores do que os meus.” E Chandler: “Mesmo assim. O meu livro mais rápido me custou TRÊS meses.” Fleming sugere que os ingredientes básicos do thriller são ritmo, violência, sexo e uma boa história. E Chandler complementa: “E mistério. O mistério não precisa ser o de quem matou Sir James na biblioteca, mas o de descobrir que situação era aquela, o que cada uma daquelas pessoas pretendia, e que tipo de gente eram elas.”




sexta-feira, 7 de março de 2014

3440) Brasil Oficial (7.3.2014)



Atender o chamado da Pátria.  Valores ocidentais.  Anseios da população.  Nesta quadra da vida pública.  Perpetuar-se no poder.  Sempre se pautou.  Riquezas nacionais.  Maquiagem contábil.  Táticas eleitoreiras.  Figura ímpar de estadista.  Descontentamento do baixo clero.  Artimanhas jurídicas.  Ocupou a tribuna.  Linchamento midiático.  Malversação de fundos.  Lição das urnas.  Protestos justificados.  Convocado ao Palácio.  Instâncias superiores.  Prerrogativas legais.  Justas reivindicações.  Alegações infundadas.  Mobilização nacional.  Atitudes impatrióticas.  Imaturidade política.  Afronta às instituições.  Valores democráticos.  Preceitos fundamentais.  Sem amparo legal. Consciência tranquila.  Conduta ilibada.  Letra da lei.  Acordo de bastidores.  Herança maldita.  Reserva moral da nação.  Apoio incondicional.  Partilha do poder.  Loteamento de cargos.  Consulta às bases.  Dedicação à causa pública.  Guardião dos valores. Denegrir reputação.  Saída honrosa.  Máquina estatal.  Poderes constituídos.  Descalabro político.  Exemplos de probidade.  Presunção de inocência.  Abafar o escândalo.  Poder de barganha.  Provas circunstanciais.  Declarações intempestivas. Aliados de ocasião. Favorecimento irregular.  Custou aos cofres públicos.  Protocolar a denúncia. Preencher o segundo escalão.  Retidão moral.  Dedicação infatigável.  Temperamento atrabiliário.  Indignação cívica.  Sanha reformadora. Espírito público.  Folha de serviços prestados.  Ofensas assacadas contra a honra.   Balelas e invencionices.  Corrupção institucionalizada.  Sob a égide da moral.  Intrigas palacianas.  Austeridade administrativa.  No concerto das nações civilizadas.  Legado político.  Equilíbrio de forças. Soberania popular.  Ordenamento jurídico.  Hostes partidárias.  Aliados históricos.  Camadas profundas da sociedade.  Apelos reiterados.  Compromissos inarredáveis.  Manobras escusas.  Atitudes demagógicas.  Insinuações caluniosas.  Nobres ideais democráticos.  Espírito cívico.  Exercício da cidadania.  Índole ordeira do nosso povo.  Interesses ocultos.  Vantagens indevidas.  Embates parlamentares.  Pescar em águas turvas.  Manto da honradez.  Princípios éticos.  Hipotecar solidariedade.  Poderes discricionários.  Não deixar sem resposta.  Medidas cabíveis. Veemente indignação. Clima de insegurança.  Evolução dos acontecimentos.  A voz das ruas.  Precedente perigoso.  Punição exemplar.  Rigorosa apuração das responsabilidades.  Vandalismo desenfreado.  O mais vivo repúdio.  Ao arrepio da lei.  Reprimir energicamente.  Ameaça à governabilidade.  Prendo e arrebento.