terça-feira, 24 de dezembro de 2013

3378) Natal 2013 (25.12.2013)




(Catrin Arno)

... e a esfera armilar do firmamento
como guarda noturna em sua ronda
girou pela interface da redonda
película do céu que nos protege.
Mesmo um sujeito como eu, herege,
olha o céu e se sente agasalhado.
É “O Vazio”?  Não.  É o meu Sagrado.
Uma infinita bolha de matéria
onde brotam a glória e a miséria
no minúsculo grão da vida humana.

Falar nisso... Já faz uma semana
que a editora prometeu meu cheque
e eu desenrosco a tampa à long-neck
comemorando o ovo inda não posto.
É dezembro! O espelho mostra um rosto
macilento por noites sedentárias
mas de rugas, somente as necessárias;
no futuro talvez virá a hora
que eu lembrarei da minha vida agora
e é capaz de eu achar que fui feliz.

Besteira! Tô melhor que o meu país.
Tocando a bola no meio de campo
e não me falta a gig, o bico, o trampo
com que pagar as contas fim de mês.
Acha pouco? Eu também, mas quem não fez
contabilismos pela madrugada,  
o “vai tanto” e o “noves fora nada”,
como o refém que orça o seu resgate
com usura e malícia de mascate
maquilando o Haver no fim do dia?

Dezembro se perfuma em alegria
como incenso de pira funerária
e cada um vai misturando a vária
paleta de emoções de que é capaz.
Eu só peço um minuto, um só, de paz;
e me sossega a bulição da mente.
Abro o caderno, anoto algum repente,
abro uma cerva, “aquéto” o coração,
abro a memória, a imaginação...
e as duas me aconchegam no que eu sou.

E o meu PC, que nunca mais travou?
E dor daqui, que nunca mais doeu?
Quem sabe o mundo enfim desaprendeu
a dar defeito? Pense num progresso!
Quando o placar é bom, tudo que eu peço
é que o jogo consinta em ser jogado.
Ah, meu corpo, resíduo “escangalhado
mas glorioso, como um Garibaldi”,
e que ainda não quer chutar o balde
(é de Lobato a citação). É cedo.

Pois venha a neve. As renas, o arvoredo
onde os clichês bimbalham, o espumante,
os presentes, a multidão cantante
dos sem-teto ao redor da manjedoura,
a pílula-placebo que se doura,
ilusão que é real, posto que existe;
como o mundo de Skyrim ou de Myst
este é feito de enredo, som, imagem,
é tudo que nos basta, na viagem
entre um silêncio e outro em queda lenta.

A vida canta. A vida luta e tenta
ser razão de si mesma e seus cuidados.
Basta abraçar alguém de olhos fechados
e de repente o mundo é mais real.
Certo dia... surpresa! Olha o Natal,
este rito plangente de emboscada,
a vida, a força mais temida e amada,
a única que temos... Então vinde,
companheiros, e a todos ergo um brinde
sob este céu parado em movimento...


3377) Começos de livros (24.12.2013)





Começar bem um livro é meio caminho andado, e alguns começam tão bem que seu trecho mais famoso acaba sendo a frase inicial (o que, aliás, me deixa sempre em dúvida quanto à qualidade de todo o resto do romance). Não posso deixar de indicar os modelos de sempre: Cem Anos de Solidão, Um Conto de Duas Cidades, O Processo, Lolita, Grande Sertão: Veredas, Gravity’s Rainbow, Neuromancer...

O saite Infoplease (http://bit.ly/19jCNAR) publicou uma lista dos “100 Melhores Começos”, que relaciona todos estes e mais alguns. O que é uma boa chance para conhecer novidades. Toni Morrison começa seu Paradise dizendo: “Eles atiraram primeiro na garota branca”. É o tipo da abertura que me faz anotar mentalmente o livro e pegá-lo na primeira oportunidade para ler pelo menos a primeira página. Sempre é bom começar uma história “in media res”, no meio dos acontecimentos. A coisa arranca tão rápido que o leitor fica com medo de pular fora e torcer o tornozelo.

Simpatizei com o espanhol Filipe Alfau, que começa seu Chromos com: “No momento em que alguém aprende inglês, começam as complicações”. E com a desconhecida Anita Brookner que, de certo modo, o ecoou em The Debut: “Aos 40 anos, a Dra. Weiss sabia que sua vida tinha sido arruinada pela literatura”. Num outro diapasão não há como não dar um pulo na poltrona ao ler a abertura de The Crow Road de Iain M. Banks: “Foi no dia em que minha avó explodiu”.

A abertura nos joga de corpo inteiro na história, seja com o flash de uma época ou de uma paisagem, seja com o retrato instantâneo do protagonista ou de um personagem qualquer, cuja vividez nos serve de isca para continuar lendo o resto.

Por outro lado, nos joga também na mão do narrador, que, se for hábil, impõe desde logo o tom e a cadência da sua cantiga. Todo romance bom tem uma cantiga, tem um jeito de contar e de dizer, tem uma escolha de sonoridades e de ritmos. Não é só o que se diz, é o jeito único e inimitável de dizer. Como o de Flannery O’Connor em The Violent Bear it Away: “O tio de Francis Marion Tarwater estava morto somente há metade de um dia quando o rapaz ficou bêbado demais para terminar de cavar sua cova, e um negro chamado Buford Munson, que tinha vindo encher um garrafão, teve que terminar de cavá-la e depois arrastar o corpo da mesa onde ele ainda estava sentado e sepultá-lo de modo decente e cristão, com o sinal do Salvador na cabeça do túmulo e terra bastante por cima para não deixar que os cachorros o puxassem para fora”. Ambiente, meio social, pessoas, crueza de linguagem, vem tudo na primeira pincelada, e cabe ao autor continuar à altura dela.