quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

3366) A mãe do Estrangeiro (11.12.2013)



(foto: J. Henri Lartigue)

“Mãe morreu hoje. Ou pode ter sido ontem, sei lá.” É assim que eu traduziria, usando meu estilo pessoal de discurso, o famoso começo do romance O Estrangeiro de Albert Camus. Seria assim que o personagem do livro diria essas frases, se fosse eu. Claro que isso não vale para uma tradução literária, porque esta se destina ao público, e o tradutor não está ali para colocar seu discurso pessoal (sua forma espontânea de usar as palavras) à frente do discurso do personagem, do discurso do autor. Ele está a serviço de ambos.

Uma nova tradução em inglês do romance, de Sandra Smith, provocou discussões interessantes em The Guardian (aqui: http://bit.ly/1d3haBL), em que a tradutora, os jornalistas e os leitores comparam diferentes enunciações dessa frase. Não é uma discussão estéril, porque grande parte do encanto do livro reside na voz distanciada, alienada do narrador Meursault, um cara que se envolve nos acontecimentos como se não os entendesse por completo: a mãe morre, ele mata um homem, é condenado à morte, e o tempo todo descreve aquilo como se não fosse com ele.  Preservar esse tom embotado, não-envolvido, é essencial para o livro, e o tradutor deve se esforçar para mantê-lo.

Smith comenta que a frase original francesa (“Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas.”) tem sido traduzida de modo diferente por cada tradutor. Ela escolheu dizer: “My mother died today”, invertendo a ordem do original. Por que? Diz ela: “No francês, a ênfase vem muitas vezes no final da frase, quando em inglês é no começo. Achei que dizer ‘Today my mother died’ soaria meio desajeitado e não teria o mesmo peso.”  Smith também comenta as diferentes nuances que a palavra “mãe” tem em cada língua: “Escolhi “minha mãe” porque pensei em como uma pessoa contaria a outra que a mãe tinha morrido.  Meursault está falando diretamente ao leitor. (...) No resto do livro, usei “mama” porque soa como o “maman”, e também porque eu tinha consciência de que uma audiência britânica preferiria “Mum” e leitores americanos diriam “Mom”, e eu precisava de algo que funcionasse dos dois lados do Atlântico”.

São nuances de tratamento que entre nós se manifestam: mamãe, mãinha, mãe, minha mãe... Formas diretas de tratamento ou formas indiretas de referência que denunciam graus diferentes de intimidade, e mesmo origens geográficas. Tudo isto com uma frasezinha de nada, mas crucial para estabelecer um tom, uma voz narrativa, um personagem que se define pelo modo como escolhe (conscientemente ou não) falar. Não existe frase fácil. A que parece mais fácil é a mais traiçoeira. Em tradução, the book is never on the table.