quinta-feira, 27 de junho de 2013

3223) O colecionador maluco (27.6.2013)




(Marcelo Grassman)

Há uma frase de H. G. Wells capaz de intrigar qualquer leitor. Disse ele, no transcorrer de uma argumentação qualquer: “Um milionário maluco que encomendasse obras-primas apenas para queimá-las acabaria descobrindo não ser capaz de comprá-las”. Meu primeiro entendimento foi de que se um maluco comprasse quadros de Renoir e Van Gogh e os incinerasse, logo ninguém lhe venderia telas, para que não atrapalhasse o mercado. Ou talvez com um horror diante de tal crime, porque até contrabandistas e falsários têm amor à verdadeira arte. (Não é por desdém a ela que fazem o que fazem.)

Mas suponhamos que Hans Rottensteiler, pintor berlinense, falecido num sanatório após trinta e um anos de dissipação e ziquizira deixou apenas onze quadros, todos agora valorizadíssimos. E suponhamos que esses quadros remanescentes começassem a ser queimados, um a um, em circunstâncias inesperadas, valorizando proporcionalmente os quadros restantes... Para ficar óbvio que o criminoso é o que sobrar por último, com os quadros mais caros. (Embora este último se jure inocente e ansioso para se livrar dos quadros.)

Ou então que o verbo “encomendar” no enunciado não fosse a ordem peremptória de “Tragam-me um Toulouse Lautrec, dois Gauguins e um Francis Bacon!”. Fosse assim: o milionário contrata um muralista para pintar centenas de metros quadrados de superfície, com um projeto grandioso e uma execução impecável, apenas para ser queimado na noite da vernissage. Na hora combinada, todos subiriam para um belvedere, e o mural arderia em chamas. Câmaras e celulares seriam proibidos (e mesmo assim alguém filmaria).

Podemos também reinterpretar o “não poderia comprá-las” do final. Não poderia porque, devido às flutuações da Bolsa e à quebra da Lehman Brothers, nosso bom milionário hoje só tem de portentosas as dívidas. Mora num apartamento, sustentado por um industrial que se apiedou dele. Vive pelos restaurantes (tem uma mesada razoável de seus ex-sócios, todos aliás se deram muito bem na nova época) pedindo assinatura em listas de subscrição para que ele some três milhões de dólares e consiga comprar o Chagall que ambiciona ver arder.

Há um conto de John Crowley em que um homem constrói uma máquina do tempo e pode ir ao passado e trazer de lá apenas uma coisa, uma coisa que ele próprio possa carregar consigo. (Não vale uma pirâmide, portanto.) Ele vai à Guiana, e traz um selo, lançado no dia exato para onde ele viajou. É um selo único e valiosíssimo. O simples aparecimento de uma coisa tão frágil seria uma baita sacudidela num mercado. Não precisava ser a Mona Lisa: um retangulozinho de papel valendo milhões e ceifando vidas.