quinta-feira, 23 de maio de 2013

3193) O normal literário (23.5.2013)





Certas discussões parecem aqueles intermináveis bate-bocas de bêbado em mesa de bar em que, quinze minutos depois, todo mundo passa de novo pelo mesmo assunto e ninguém se lembra de que tudo aquilo acabou de ser falado.  É o que acontece com o debate entre literatura de gênero e literatura “mainstream”. Gênero a maioria das pessoas entende o que é: é o romance policial, de terror, de faroeste, de capa-e-espada, de ficção científica... Mas o que é literatura “mainstream”?

Me vem à mente aquele camelô de DVDs na Rua da Carioca, que anunciava sua variedade de produtos: “Tem erótico, ação, suspense e normal!...”. Ou então aquelas duas donas de casa no supermercado, à minha frente, uma delas mexendo nos detergentes e dizendo à outra: “Tem esse aqui que é limão, esse outro é maçã, e esse aqui é normal”. Percebi que por “normal” ela queria dizer “neutro”, ou seja, aquele Limpol translúcido, sem um perfume artificial específico.

Quando classificamos os gêneros, o que chamamos de “mainstream” acaba sendo aquele tipo de literatura neutra, sem nenhuma característica especial, sem nada de muito específico: isso é o normal. Não haveria nenhum problema, talvez, se num mundo tão controlador como o nosso a palavra “anormal” não tivesse uma conotação tão criminalizante, tão ameaçadora. “Que tipo de literatura você faz?” “Faço literatura anormal”. A primeira coisa que o entrevistador pensa é que você escreve sobre deformações psíquicas ou sobre monstruosidades morais.

“Normal”, em nossa língua (ou pelo menos na língua da imprensa, na qual vivo mergulhado) é uma coisa cujo gráfico é uma linha horizontal sem grandes sobressaltos. Algo que não se afasta muito da medianidade, da mediocridade. Sem nenhum atributo que chame a atenção. Uma média aritmética, sem pontos muito altos e sem pontos muito baixos, sem defeitos que a prejudiquem e sem qualidades que incomodem os demais. Ser normal, na literatura, é ser incolor, inodoro e insípido como um copo dágua.

De 100 em 100 anos esse conceito muda. Em 1880 ser normal na literatura brasileira era ser melodramático, sentimental e romântico; hoje é escrever romances urbanos violentos ou introspectivos. Herdamos de outras literaturas esse modelo do romance realista, e qualquer desvio dessa receita é considerado uma anormalidade. Os novos escritores enveredam todos nessa raia, porque o “normal” equivale à Série A do campeonato literário; é aquela onde jogam ou jogaram os grandes campeões. (Notem que não falo dos “best-sellers”, que criam suas próprias regras, e sim da literatura valorizada pela crítica e pela academia. São elas que definem os parâmetros do que é normal.)