domingo, 27 de janeiro de 2013

3094) A Larica (27.1.2013)




(ilustração de Gustave Doré para Pantagruel, de Rabelais)




A Larica é uma entidade que se apossa – por meios ainda não reconhecidos pela ciência convencional – do corpo desprevenido de um ser humano, e passa a dominá-lo, em seu próprio e parasítico proveito, sempre que ele o permite. O principal sintoma de um indivíduo possuído pela Larica é uma fome inegociável. Se a mesa estiver vazia, o sujeito é capaz de roer a toalha.

Por que tem este nome? Ninguém sabe. Ouvi uma explicação dando conta de que em Cuba, ao que parece, existe uma expressão popular dizendo que: “En la vida del boémio existe la madrugada pobre, y existe la rica”. Não sei se as palavras são exatamente estas, mas La Rica passou a ser um sinônimo daquelas madrugadas insones em que uma mente doentiamente ativa fica impulsionando um corpo a noite inteira de um lado para o outro de um apartamento, fazendo-o esbarrar nos móveis, perder o rumo e ir parar na cozinha quando visava o banheiro, mas de qualquer maneira já que este lugar onde ao que parece eu estou agora é a cozinha, então deve haver uma geladeira, muito bem, eis geladeira. Tudo confere. O que tem dentro deste tupperware? Bora esquentar, e quando comer a gente descobre. 

A Larica funciona assim. Ela é uma entidade pouco nítida para mim que, agnosticamente, não dou a mínima para orixás ou elementais terrestres ou consciências semióticas. Só sei que funciona. O sabor do que se come em Larica é sagrado. Não venham me dizer que a coquilha-de-são-jaques é mais saborosa do que o macarrão-parafuso-com-carne-moída trazido de volta à vida neste instante, mediante ficção científica, cibernética, microondas e pensamento positivo.

Um pão de anteontem redunda na mais saborosa torrada que já chiou num grill. Há maravilhas inexploradas, toda uma fractal de sutilezas possíveis no mix entre o purê de batatas e o arroz. As frutas, então, são um universo à parte. Basta pensar na pletora de líquidos em que uma fruta pode ser mergulhada com proveito gastronômico e chegaremos a números galácticos. Não subestime as bolachas; qualquer substância achatada posta entre duas delas tem, por milagre estrutural, seu sabor enriquecido.

A Larica nos leva de volta à essência sagrada do ato da alimentação, tão banalizado pelos comerciantes de secos-e-molhados e tão aristocratizado pelos gurmês. Só sobreviveremos se destruirmos alguma coisa. Precisamos tirar de algum lugar a energia que nos mantém em movimento. Se um bicho come, ele está interagindo com o Universo num dos seus níveis mais primais, onde a frivolidade não tem vez. O bicho consome energia do Universo. O Universo a fornece, de olho nele. Está contabilizando. Um dia, vai pedir de volta. Algum problema?